terça-feira, 30 de setembro de 2008

Onda Poética

Ao concluir, no final deste mês de Setembro,
o tema MALDITA POESIA desta Praça,
anuncio, para o próximo dia
9 de Outubro, às 21.30 horas,
o regresso da Onda Poética de Espinho,
agora na sala das sessões da Junta de Freguesia, à rua 23 daquela cidade.
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Desta vez e a partir de agora,
as sessões serão ali realizadas na
segunda Quinta-Feira de cada mês.
Esta versará exactamente o tema do mês deste blogue,
e serão lidos pelos residentes da tertúlia alguns dos poemas aqui postados e outros.
Haverá ainda lugar para a participação do público interessado,
podendo obedecer ao tema ou optar por tema livre.
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Os interlúdios musicais estarão a cargo do grupo
VOZES TRINADAS.
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As alterações agora produzidas na Onda Poética decorreram de um debate interno dos seus residentes, visando, sobretudo, corresponder aos seus objectivos iniciais de ordem formativa, tendentes a sensibilizar os mais jovens para a poesia, os quais, como é sabido, estavam até aqui impedidos por lei de entrar no Casino de Espinho, onde se realizavam anteriormente as sessões.
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Apareçam, amigos!
Façam-nos companhia na nova temporada
e iniciem connosco a segunda década da nossa hisória
ao serviço da poesia, dos poetas e da literatura universal.

Enquanto


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio

e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé

para ver como é;


enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas

e correr pelos interstícios das pedras,

pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;


enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,

órfãs de pais e mães,

andarem acossadas pelas ruas

como matilhas de cães;


enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto

com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,

num silêncio de espanto

rasgado pelo grito da sereia estridente;


enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio

cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas

amassando na mesma lama de extermínio

os ossos dos homens e as traves das suas casas;


enquanto tudo isto acontecer,

e o mais que se não diz por ser verdade,

enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,

o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:


ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.


António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967),
Lisboa, Portugália Editora, 1975

Convite










Poesia

é brincar com palavras

como se brinca

com bola, papagaio, pião.

Só que

bola, papagaio, pião

de tanto brincar

se gastam.



As palavras não:

quanto mais se brinca

com elas

mais novas ficam.



Como a água do rio

que é água sempre nova.



Como cada dia

que é sempre um novo dia.



Vamos brincar de poesia?



José Paulo Paes (Brasil), Poemas para Brincar, Edições Ática, 1990

O poeta beija tudo

O poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade...

E diz assim: "É preciso saber olhar..."

E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos...

E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás...

E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha...

E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso...

E acha que tudo é importante...

E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim...

E reparou que os homens estavam tristes...

E escreveu uns versos que começam desta maneira: "O segredo é amar..."

Sebastião da Gama, Diário, Lisboa, Edições Ática, 1975, 5.ª ed.

«Sebastião Artur Cardoso da Gama dava, naquele ano, aulas na Escola Comercial e Industrial de Estremoz. Era homem muito dado a beijos e a cumprimentos. Essas efusividades acabaram por valer-lhe uma chamada ao gabinete do director: Sebastião ouviu uma valente reprimenda: que o meio era pequeno, que as meninas suas alunas já não eram crianças, que podiam ficar mal vistas, que não era desconfiar da sua seriedade, que sabia, sim senhor, que não era por maldade o que fazia, mas que, por amor de Deus, pusesse termo à beijoquice, que ficava mal, que não era de bom tom, que homem nenhum beijava uma mulher que não fosse a sua. Sebastião, de pé, ouviu até ao fim. Terminadas as palavras do director, chegou-se perto, respondeu-lhe que sim-senhor, rasgou um sorriso, agradeceu, baixou-se e beijou-o na testa.»

Transcrito, com a devida vénia, de Escritos,
in http://parvoicesminhas.blogspot.com/

Palavras (para um panfleto)


as palavras metem-se por baixo das portas
e são os versos (que medo) da insubmissão;
as palavras atacam os poderes atravessadas
nos dentes de uma boca que morde, fala, grita.

as palavras carregadas de sentido estão aqui,
estão nestes versos que te aparecem nas mãos,
como um pássaro de asas de lume e olhos grenat,
como um poema que não se conforma nos livros.

as palavras, cortantes, como essas lâminas, abrem
os pulsos dos anjos insensatos, erguem-se, foices,
ceifando as cabeças dos burros da cidade fechada,
as palavras preenchem os olhos vazios das pessoas.

as palavras distribuem-se como poemas volantes
nas vésperas de um primeiro de maio, em abril,
para que conste e sirva de aviso aos caducos,
para que em cada manhã sejam o pão e a estrela.

as palavras, acreditem ou não, meus caros senhores,
caem do céu nas nossas mãos e os olhos, doidos!,
não acreditam que os ventos as levem para longe,
as palavras escrevem-se para sempre nestas nuvens.

José Viale Moutinho, folheto comemorativo do 25.º aniversário do 25 de Abril, INATEL e Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto

Aos poetas gosto de os ler...


Aos poetas gosto de os ler no sossego da noite. São apelos frágeis e sinceros. Os poetas não possuem poder nenhum. Só o de encobrirem feridas abertas com letras. Apesar de alguns deles conseguirem vibrar todos os sóis nocturnos coalescidos no íntimo mais profundo de cada um, não passam de pássaros feridos em busca de ninho seguro. O rosnar de um canhão é mais terrível. Não existe repouso possível numa ode à alegria de Goethe na boca de um faminto. E isso é perfídia. O poeta não é carrejão da estupidez humana. Não. Nem lenço para as lágrimas amargas dos impotentes. E isso é dramático. O poema mais belo não é mais que isso. Um requintado enfeite na vaidade do ego mais sensível. Nos laboratórios da "Alta criação para a estupidez total do Ser" estuda-se hoje a extinção da profissão de poeta. Provou-se estatisticamente a sua inutilidade. Um bico de obra.
Acontece que qualquer ser vivo se pode transformar num desses fogos fátuos que iluminam, mesmo que fugazmente, a penumbra mais absoluta.
Um defeito tipicamente humano.


Humberto Érre, Bastardos de Deus

Da mais alta janela da minha casa


Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Alberto Caeiro, «O guardador de rebanhos», poema XLVIII,
in Fernando Pessoa, Poesia dos Outros Eus, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007

"Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo."
Joaquim Carneiro, 2003 - óleo s/ tela 60 x 45 cm
in Celestino Portela, Fernando António - o Pessoa, LAF, 2003

O poema


O poema me levará no tempo

Quando eu já não for eu

E passarei sozinha

Entre as mãos de quem lê


O poema alguém o dirá

Às searas


Sua passagem se confundirá

Como rumor do mar com o passar do vento


O poema habitará

O espaço mais concreto e mais atento


No ar claro nas tardes transparentes

Suas sílabas redondas


(Ó antigas ó longas

Eternas tardes lisas)


Mesmo que eu morra o poema encontrará

Uma praia onde quebrar as suas ondas


E entre quatro paredes densas

De funda e devorada solidão

Alguém seu próprio ser confundirá

Com o poema no tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto,
Lisboa, Edições Salamandra, 1964, 6.ª ed.

O Poeta e a Rosa (e com direito a passarinho)


Ao ver uma rosa branca
O poeta disse: Que linda!
Cantarei sua beleza
Como ninguém nunca ainda!

Qual não é sua surpresa
Ao ver, à sua oração
A rosa branca ir ficando
Rubra de indignação.

É que a rosa, além de branca
(Diga-se isso a bem da rosa...)
Era da espécie mais franca
E da seiva mais raivosa.

– Que foi? – balbucia o poeta
E a rosa: – Calhorda que és!
Pára de olhar para cima!
Mira o que tens a teus pés!

E o poeta vê uma criança
Suja, esquálida, andrajosa
Comendo um torrão da terra
Que dera existência à rosa.

– São milhões! – a rosa berra –

Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome!...

E num acesso de ira
Arranca as pétalas, lança-as
Fora, como a dar comida
A todas essas crianças.

O poeta baixa a cabeça.
– É aqui que a rosa respira...
Geme o vento. Morre a rosa.
E um passarinho que ouvira

Quietinho toda a disputa
Tira do galho uma reta
E ainda faz um cocozinho
Na cabeça do poeta.

Vinicius de Moraes, Poesia Completa e Prosa,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1985

Apresentação


Cantar não é talvez suficiente.

Não porque não acendam de repente as noites

tuas palavras irmãs do fogo

mas só porque palavras são

apenas chama e vento.


Eu venho incomodar.

Trago palavras como bofetadas

e é inútil mandarem-me calar

porque a minha canção não fica no papel.

Eu venho tocar os sinos.

Planto espadas

e transformo destinos.

Os homens ouvem-me cantar

e a pele

dos homens fica arrepiada.

E depois é madrugada

dentro dos homens onde ponho

uma espingarda e um sonho.


E é inútil mandarem-me calar.

De certo modo sou um guerrilheiro

que traz a tiracolo

uma espingarda carregada de poemas

ou se preferem sou um marinheiro

que traz o mar ao colo

e meteu um navio pela terra dentro

e pendurou depois no vento

uma canção.


Já disse: planto espadas

e transformo destinos.

E para isso basta-me tocar os sinos

que cada homem tem no coração.


Manuel Alegre, «Praça da Canção»

in Obra Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Circo

Poeta não é gente, é bicho coiso
Que da jaula ou gaiola vadiou
E anda pelo mundo às cambalhotas,
Recordadas do circo que inventou.

Estende no chão a capa que o destapa,
Faz do peito tambor, e rufa, salta,
É urso bailarino, mono sábio,
Ave torta de bico e pernalta.

Ao fim toca a charanga do poema,
Caixa, fagote, notas arranhadas,
E porque bicho é, bicho lá fica,
A cantar às estrelas apagadas.

José Saramago, Os Poemas Possíveis,
Lisboa, Editorial Caminho, 19781, 2.ª ed.

Tempo de Poesia



Todo o tempo é de poesia.
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.
Todo o tempo é de poesia.
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.
António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967),
Lisboa, Portugália Editora, 1975

Poetogénese

E após três dias de intenso trabalho, antes que finde Setembro, continuamos a reunir, nesta Praça, todo o tipo de poemas subordinados ao tema MALDITA POESIA. No próximo mês mudaremos de assunto.
Mas também convém respirar um pouco e talvez... reflectir sobre este já imenso acervo de textos, em que se entrecruzaram poemas mais clássicos e mais modernos, poemas de ontem e de hoje, poetas de várias escolas e ideologias, as mais diversas formas de pensar sobre o próprio acto de criação poética. Numa Praça convivem todos. É assim que a queremos, apesar de uma evidente selecção. Só assim a poesia mostra que está viva e nós também, porque não queremos escamotear a sua história tão velha como o mundo ou estrangulá-la com imposições e limites.
São múltiplas as concepções sobre a Poesia. Basta ver o conceito que transpira dos dois últimos poemas postados acerca da própria criação poética, aquilo a que poderíamos, salvo erro, chamar Poetogénese.
Bukovski concebe o acto criador como uma espécie de Big Bang, um parto espontâneo, e o poeta uma espécie de Deus ou, no mínimo, um eleito à espera do momento propício. Para Casimiro de Brito e Rosa Alice Branco, o poema é fruto de uma «batalha silenciosa» (a tal hesitação entre som e sentido, de que fala Valéry) e é filho de um parto induzido e doloroso: um bisturi apura-o e depura-o, extraindo-lhe os ruídos, para que, enfim, possa oferecer-se como uma música muito próxima do silêncio.
Pessoalmente, acerca desta questão poetogenética, gosto de pensar que as duas formas são possíveis, umas vezes excluindo-se, outras completando-se. Mas o acto poético parece-me um pouco mais complexo. A meu ver, vários processos poderão nele comparecer, simultaneamente ou não: a aspiração, a inspiração, a transpiração e a conspiração. Para não me alongar, traduzo estes termos para outros, ainda que não totalmente equivalentes: vocação, invocação, acção e provocação.
Reparem: eu disse "simultaneamente ou não". Por isso, tudo me parece um pouco mais complicado e talvez seja assunto sobre o qual nos devamos debruçar mais atentamente numa próxima reflexão.
Entretanto, prossigamos com a nossa compilação poemática.

A arte da escrita


1

A criação do poema: batalha

silenciosa

entre o som e o sentido.


2

Autor? Amante? Se ficas o mesmo

depois dessa viagem,

não fizeste viagem nenhuma


3

Não há poema para si;

não há poema sem Outro, a quem, cego,

se ofereça.


4

O salto imprevisível

da escuta para a escrita.


5

Aceitar, absorver, engolir

tudo: metáforas, inspirações -

o caos, a contaminação

da rua e do cânone e da corte. Depois

o estilete, o estilo, a minha maneira.


6

O poema está mais quente

na boca de quem o canta

do que no ouvido de quem escuta.


7

Um poema não se escreve. O poema

é escrito no momento preciso

em que é o corpo de si próprio

e pouco tem já a ver com a mão de quem escreve.


8

A emoção em arte é uma espécie

de música, parece dada

mas não foi (...) foi composta

e depois parida

com muita dor (ainda que a não sintas).


9

Depurar, depurar. O poema

nasce das palavras

que ficam pelo caminho.


10

A palavra não diz nada,

único dizer é o silêncio.


Casimiro de Brito / Rosa Alice Branco,

Animal Volátil, Porto, Edições Afrontamento, 2001

Então queres ser escritor?

Se não sai de ti a arder
apesar de tudo o resto,
não o faças.
a menos que sem quereres saia do teu
coração e da tua mente e da tua boca
e das tuas tripas,
não o faças.
se tens de estar horas sentado
a olhar para o ecrã do computador
ou curvado sobre a
máquina de escrever
à procura de palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes porque queres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens de estar sentado a
reescrever e a reescrever,
não o faças.
Se te cansa só de pensar nisso,
não o faças.
se estás a tentar escrever
imitando alguém,
esquece.
se tens de esperar até que saia de ti
aos berros,
sê paciente.
se nunca sair de ti aos berros,
faz outra coisa qualquer.

se primeiro o tens de ler à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou aos teus pais ou seja lá a quem for,
não estás preparado.

não sejas como tantos escritores,
não sejas como tantos milhares de
pessoas que se julgam escritores,
não sejas monótono e aborrecido e
pretensioso, não te sufoques
com amor próprio.

As bibliotecas do mundo
bocejaram e adormeceram
por causa de tipos como tu.
não os sigas.
não o faças.
a menos que te saia
da alma como um míssil,
a menos que estar parado te
leve à loucura ou
ao suicídio ou ao homicídio,
não o faças.
a menos que o sol que tens dentro de ti
te esteja a queimar as entranhas,
não o faças.

quando chegar o momento,
e se tu foste escolhido,
vai acontecer
por si mesmo e assim continuará
até que morras ou ou que isso morra em ti.

não há alternativa.

e nunca houve.

Charles Bukowski
(tradução de Anthero Monteiro)

Como ser um grande escritor


tens que apanhar muitas mulheres
belas mulheres
e escrever uns tantos poemas de amor decentes

e não te preocupes com a idade
nem com os novos talentos

bebe apenas mais cerveja
cada vez mais cerveja

vai até ao hipódromo
pelo menos uma vez por semana

e ganha nas apostas
se for possível

aprender a ganhar é difícil,
qualquer um pode ser um bom perdedor

e não esqueças o teu Brahms,
o teu Bach
e a tua cerveja.

não sejas exigente contigo
dorme até ao meio-dia

evita os cartões de crédito
ou pagar seja o que for a prazo

lembra-te que não há neste mundo
um pedaço de cu que valha mais do que 50 dólares (isto em 1977)

e se tens capacidade de amar
ama-te a ti mesmo primeiro
mas permanece sempre consciente
da eventualidade de total derrota
seja por boas seja por más razões

um sabor prematuro da morte
não é necessariamente uma coisa má

Fica fora das igrejas e dos bares e dos museus
e sê paciente como a aranha
o tempo é a cruz de todos nós
mais o exílio a derrota e a traição

Fica com a tua cerveja
a cerveja é sangue contínuo
uma amante contínua

agarra numa boa máquina de escrever
e enquanto os passos vão e vêm
para além da tua janela

bate forte bate forte
nessa coisa

faz disso uma luta de pesos pesados
faz como o touro na primeira investida

e recorda os cães velhos
que lutaram de maneira excelente:
Hemingway Céline Dostoievsky Hamsun

Se acreditas que não se tornaram loucos
em minúsculos quartos
como está a acontecer-te agora
sem mulheres
sem comida
sem esperança

então ainda não estás pronto

bebe mais cerveja
há tempo
e se não há
tudo bem na mesma


Charles Bukowski
(tradução de Antero Monteiro)

brinquedos






verdadeiramente nunca tive brinquedos
a não ser as pedras das veredas
por onde um dia me arrastou
a única ovelha que pude cavalgar

fiz corridas com os coelhos e as raposas
até às luras lá em baixo perto do moinho
e conheci o senhor sapo-concho
na lentidão das histórias da minha avó

experimentei a luz de mil sóis profusos
nas corolas dos pampilhos
aprendi a humildade no recato das violetas
a métrica da primeira palavra difícil nas miosótis
a música secreta do infinito nos arrebóis
e a vaidade no tanque onde desconfiei da morte
no asco das salamandras

aprendi sobretudo a divertir-me com as palavras
ali pertinho debruçadas dos lábios
joguei sempre com elas às escondidas
levantei-lhes as saias
enrodilhei-me com elas no barro da criação

apedrejei a minha infância
quando encontrei a raiva das alcunhas
mas flori de verdade o meu sorriso virgem
quando julgando magoar-me
me apelidaram de poeta

Anthero Monteiro, Desesperânsia, Corpos Editora, 2003

Os poetas

Ao Albano Martins

É preciso ler os poetas
na sua língua
com rodelas de tomate
e um fio de azeite
ao correr de cada verso.

É preciso chorar
as lágrimas que eles insistem
em soltar no silêncio
de indecisas madrugadas.

É preciso ouvir
o modo como caminham cantando
contra os muros revestidos
pelo arrepio das barbáries.

É preciso aprender com eles
a arte tranquila de habitar a brisa
em Maio
e dedilhar
o alaúde lunar
por baixo dos aloendros.

É preciso dizer que eles são poetas
perigosíssimos seres de olhos carregados
do mais doce sumo das cerejas.

São poetas e voam
como pombas na sílaba do mel.

São poetas e guardam com horror
a memória de terras
profanadas.

Nascem em Lisboa
Dublin
em Granada ou num gueto
de Varsóvia.

Se alguém te perguntar
ó meu irmão
diz que eles são poetas.
Bebem pétalas caminham
sobre a água das palavras.

São poetase
venham de onde vierem
nasceram sempre ao teu lado
meu irmão
na raiz
do perfeito coração.

José Fanha, in O Soldadinho de Chumbo
http://zefanha.blogspot.com/

O poema original

Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

José Carlos Ary dos Santos, «Resumo» in Obra Poética,
Lisboa, Edições Avante, 1994, 4.ª ed.

Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já se não fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

José Carlos Ary dos Santos, «Resumo» in Obra Poética,
Lisboa, Edições Avante, 1994, 4.ª ed.

Razão de ser


Escrevo. E pronto.

Escrevo porque preciso,

preciso porque estou tonto.

Ninguém tem nada com isso.

Escrevo porque amanhece,

e as estrelas lá no céu

lembram letras no papel,

quando o poema me anoitece.

A aranha tece teias.

O peixe beija e morde o que vê.

Eu escrevo apenas.

Tem que ter por quê?


Paulo Leminski, in Melhores Poemas, S. Paulo, Global, 1999, 4.ª ed.

Motivo


Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.


Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

- não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

- mais nada.


Cecília Meireles, in Darcy Moreno, Cecília Meireles, Rio de Janeiro, Agir, 1996

Conjugação


A construção dos poemas é uma vela aberta ao meio

e coberta de bolor

é a suspensão momentânea dum arrepio num dente

fino

Como Uma Agulha


A construçãpo dos poemas

A CONS

TRU

ÇÃO DOS

POEMAS


é como matar muitas pulgas com unhas de oiro azul

é como amar formigas brancas obsesssivamente junto

ao peito

olhar uma paisagem em frente e ver um abismo

ver o abismo e sentir uma pedrada nas costas

sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente


NUM TÚMULO EXAUSTIVO


António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995

Teoria poética


O poema não diz como dizem as ruas da cidade,

as avenidas, as alamedas, as praças, as rotundas,

as artérias privilegiadas dos detentores de sentidos.

O poema, às vezes, tem frio, espera outros lugares

- caminhos das aldeias abandonadas que levam à casa

onde o forno arde ou a lareira crepita com lenha

de cem anos. Os caminhos que anda não se inscrevem

nos mapas, nas cartas topográficas, nos livros de

exercícios de estilo, nos manuais de escrita criativa.


Firmino Mendes, Um Segredo Guarda o Mundo, Guimarães, Pedra Formosa Edições, 1998
Poeta vimaranense, autor de outros obras:
A Terra e os Dias, Invocação e Ofícios, Ilha sobre Ilha, Fronteira Animal.

O poeta é um figurador

o poeta é um figurador, não
consta que fernando conhecesse varão (de
ling. lat., 6, 78:
fictor cum dicit fingo figuram imponit)
e a paisagem de alma: uma convenção
retórica

porque a leitura do efémero transcende
sua minúcias próprias, (e ele)
se torna retórica

e a circunstância: um travelling
palíndromo, nestes desvios
a razão se
perde

Vasco Graça Moura, «Recitativos (1977)» in Poesia 1963-1995,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2001

Autopsicografia



O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Este comboio de corda
Que se chama coração.

1-4-1931
Fernando Pessoa, in Poesia do Eu,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006
"Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo."
Alfredo Luz 1998 - óleo s/ tela 54 x 63 cm
in Celestino Portela, Fernando António - o Pessoa, LAF, 2003

domingo, 28 de setembro de 2008

Ver claro

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede

Página de escrita

Dois e dois quatro
quatro e quatro oito
oito e oito dezasseis…
Repitam! Diz o professor
Dois e dois quatro
quatro e quatro oito
oito e oito dezasseis.
Mas eis que o pássaro da poesia
passa no céu
a criança vê-o
a criança ouve-o
a criança chama-o:

Salva-me
brinca comigo
pássaro!

Então o pássaro desce
e brinca com a criança
Dois e dois quatro…
Repitam! Diz o professor
e a criança brinca
e o pássaro brinca com ela…
Quatro e quatro oito
oito e oito dezasseis
e dezasseis e dezasseis quanto é que faz?

Dezasseis e dezasseis não faz nada
e sobretudo não faz trinta e dois
e de qualquer maneira
eles vão-se embora.
A criança escondeu o pássaro
na sua carteira
e todas as crianças
ouvem a música
e oito e oito por sua vez também se vão
e quatro e quatro e dois e dois
por sua vez desaparecem
e um e um não fazem nem um nem dois
um e um também se vão dali.

E o pássaro da poesia brinca
e a criança canta
e o professor grita:
deixem de fazer palhaçadas!

Mas todas as outras crianças
escutam a música
e as paredes da sala
desmoronam-se tranquilamente.
E os vidros voltam a ser areia
a tinta volta a ser água
as carteiras voltam a ser árvores
o giz volta a ser falésia
e a caneta volta a ser pássaro.

Jacques Prévert
(Tradução de José Fanha)

Os poetas

Nunca os vistes,
Sentados nos cafés que há na cidade,
Um livro aberto sobre a mesa e tristes,
Incógnitos, sem oiro e sem idade?

Com magros dedos, coroando a fronte,
Sugerem o nostálgico sentido
De quem rasgasse um pouco de horizonte
Proibido...

Fingem de reis da Terra e do Oceano
(E filhos são legítimos do vício!)
Tudo o que neles nos pareça humano
É fogo de artifício.

Por vezes fecham-lhes as portas
- Ódio que a nada se resume -
Voltam depois, a horas mortas,
Sem um queixume.

E mostram sempre novos laivos
De poesia em seu olhar...

Adolescentes! Afastai-vos
Quando algum deles vos fitar!

Pedro Homem de Mello, «O Rapaz da Camisola Verde» (1954), in Poesias Escolhidas, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983

defesa

ah esta velha mania
de prolongar na noite o parco dia
e rebuscar na solidão maior
remédio
para o tédio
e para a dor

ah esta velha doença
de alinhar sinónimos de fel
ao longo do papel
e de gravar sinais de desvario
de loucura e de frio
nesta segunda pele

com a crença
de que a estrutura em verso
defendendo o meu íntimo vazio
suportará o peso do universo

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
Corpos Editora, 2003

Trevas


Trevas.
Que mais pode ler
um poeta que se preza?

Paulo Leminski (Brasil), O ex-estranho,
S. Paulo, Iluminuras, 1996

Não há vagas

O preço do feijão não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar (Brasil), Os Melhores Poemas de Ferreira Gullar,
S. Paulo, Global Editora, 1983

À Poesia

















Vou de comboio…Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;

- E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas…

E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei o quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!
Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?
Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?
Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?
Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse…

Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir…

Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
Sei que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão;
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui será louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!

Miguel Torga, «Odes» (1946) in Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2001
Foto do jornalista Miguel Carvalho com a devida vénia

Arte poética


Que o verso seja como uma chave
Que abra mil portas.
Uma folha cai; algo passa voando;
Tudo quanto olhem os olhos criado seja,
E a alma do ouvinte fique tremendo.

Inventa mundos novos e cuida a tua palavra;
O adjectivo, quando não dá vida, mata.

Estamos no ciclo dos nervos.
O músculo está pendurado,
Como recordo, nos museus;
Mas não é por isso que temos menos força:
O verdadeiro vigor
Reside na cabeça.

Por que cantais a rosa, ó Poetas?!
Fazei com que ela floresça no poema;
Apenas para nós
Vivem todas as coisas debaixo do Sol.
O Poeta é um pequeno Deus.

Vincente Huidobro (Chile), El espejo de Agua, 1916
Tradução de Anthero Monteiro

Balada para os poetas andaluzes de hoje


Que cantam os poetas andaluzes de agora?
Que olham os poetas andaluzes de agora?
Que sentem os poetas andaluzes de agora?

Cantam com voz de homem, mas onde estão os homens?
Com olhos de homem olham, mas onde estão os homens?
Com peito de homem sentem, mas onde estão os homens?

Cantam, e quando cantam parece que estão sós.
Olham, e quando olham parece que estão sós.
Sentem, e quando sentem parece que estão sós.

Será que Andaluzia já não tem ninguém?
Que nos montes andaluzes já não há ninguém?
Que nos mares e campos andaluzes não há ninguém?

Já não haverá quem responda à voz do poeta?
Quem olhe o coração sem muros do poeta?
Tantas coisas morreram, que só resta o poeta?

Cantai alto. Ouvireis que outros ouvidos ouvem.
Olhai alto. Vereis que outros olhos olham.
Pulsai alto. Sabereis que outro sangue palpita.

Não é mais fundo o poeta no seu escuro subsolo
encerrado. O seu canto ascende ao mais aprofundo
quando, solto no ar, já pertence a todos os homens.

Rafael Alberti, Antologia Poética, Porto, Campo das Letras, 1998
Tradução de Albano Martins

Os olhos do poeta


O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol
na noite de angústia que pesa no mundo

Manuel da Fonseca, in Poemas Completos

Fraseador

Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada.

Manoel de Barros, «Memórias Inventadas», in A Infância
com a devida vénia ao amigo e actor Pedro Lamares e ao blogue homónimo
www.pedrolamares.blogspot.pt

Conhecimento e reconhecimento

O conhecimento é muito importante, sem dúvida. O Homem, porém, atinge outra dimensão, quando arranja em si espaço também para o reconhecimento. Ou seja, somos infinitamnete grandes quando nos sabemos pequenos.
Este blogue parece ir de vento em popa, tal o meu entusiasmo de principiante: ainda ontem não passava de um sonho quase longínquo. À noitinha era já um lugarzinho para a poesia. Já começa agora a querer ser a verdadeira Praça.
E tudo isto, porque ontem tive a visita de um amigo e ele soube incutir-me coragem para esta aventura. Coragem e também algum conhecimento: mostrou-me onde era o início do caminho e deu-me alguns conselhos para poder ir prosseguindo.
Esse amigo é o Gilberto Pereira, do blogue Reticências, constante das minhas ligações. Trata-se de um excelente diseur, que me ensinou há muito a gostar de Al Berto e faz parte da Onda Poética de Espinho, que eu, ele e muitos mais fazemos viver há mais de uma década.
É ainda um interessante poeta, como se pode ver no seu blogue, e prepara-se para editar, muito em breve, o seu primeiro livro de poesia.
Para ele, o meu voto de amplo sucesso. E o meu profundo reconhecimento.

O poeta doido, o vitral e a santa morta


Era uma vez um Poeta
Que vivia num Castelo,
Num Castelo abandonado,
Povoado só de medos...

- Um Castelo com portões que nunca abriam,
E outros que abriam sem ninguém os ir abrir,
E onde os ventos dominavam,
E donde os corvos saíam,
Para almoços
Que faziam
De mendigos que caíam lá nos fossos...

Havia no Castelo, ao fim dum corredor,
(Um corredor grande, grande,
Frio, frio,
Como abóbadas sonoras como poços)
Um vitral.

Era um vitral singular...

E é bem verdade que ninguém sabia
O que ele ali fazia,
ao fim daquele corredor,
Naquela parede ao fundo,
Aquele vitral baço e quase já sem cor.

Nem o Poeta o sabia...

Nem o Poeta o sabia,
Muito embora noite e dia
Meditasse
No vitral quase sem cor
Que estava pr'ali na sombra
Do fundo do corredor -
Com ar de quem aguardasse...

Quando, a meio da noite, o Poeta acordava,
Levantava-se e, até dia, delirava.
Era a hora do Medo...

E passeava, delirando, pelos longos corredores,
Descia as escadarias,
Corria as salas.

Sob os seus pés, as sombras deslizavam.
Pelos recantos, os fantasmas encolhiam-se.
E, devagar, bem devagar, no escuro,
Portões abriam-se, e fechavam-se, e gritavam sem rumor.

O Poeta só parava
Diante do tal vitral,
Ao fim do tal corredor...

E sonhava.

Sonhava que, para lá
Daqueles doirados velhos,
Daqueles roxos mordidos,
Que morriam
Sobre o fundo espesso e negro,
Havia...

Mas que haveria?

Qualquer coisa bem ao perto
Que o chamava de tão longe...!

E, mudo, ali ficava até ser dia,
Enquanto os ventos, lá fora,
Fingiam mortos a rir...
Enquanto as sombras passavam...
Enquanto os portões rodavam,
Sem ninguém os ir abrir!

Mas, um dia,
- Eis, ao menos, o que dizem -
O Poeta endoideceu.

E, fosse Deus que o chamasse
Ou o Diabo que lhe deu,
(Não sei...)

Sei que uma noite, a horas desconformes,
O Doido alevantou-se nu e lívido,
Com os cabelos soltos e revoltos,
A boca imóvel como as das estátuas,
Os olhos fixos, sonâmbulos, enormes...

Pegou do archote,
Desceu, escada a escada, a muda escadaria,
Seguiu pelo corredor.

Em derredor,
As sombras doidas esvoaçavam contra os muros.
Lá muito longe, o vento era um gemido que morria...

Ao fim do tal corredor,
Havia
O tal vitral.

E, de golpe,
Como dum voo em linha recta,
O Poeta-Doido ergueu-se contra ele,
Direito como uma seta...

A cabeça ficou dentro,
O corpo ficou de fora...

E os verdes, os lilases, os vermelhos da vidraça
Laivaram-se de sangue que manava,
E que fazia,
Nas lájeas do corredor,
Um rio que não secava...

Mas, no instante em que morria,
Abrindo os olhos,
- Olhos de tentação divina e demoníaca -
O Poeta pôde ver

.... E viu:

Viu que, por trás do vitral baço, havia
Um nicho feito no muro.
Dentro, iluminando o escuro,
De pé sobre tesoiros e tesoiros,
Estava
Certo cadáver duma Santa
Que fora embalsamada há muitos séculos...

E a Santa, que o esperava,
Despertou,
E, sorrindo-lhe e curvando-se, beijou
A cabeça degolada.

José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo, quasi, 2002

Um poema uma rosa



















Não terá sido um poema
o que te pus nas mãos
para depois me dizeres
que o não entendes

Não foi um poema
foi uma rosa

E não é uma rosa
um poema ininteligível?
E não é a beleza
o maior dos enigmas
tão grande pelo menos quanto a morte?

É verdade
que se não compreendes a rosa
também não foi uma rosa
o que te dei

Mas repara:
não será que no mínimo
tens agora
as mãos perfumadas?


Anthero Monteiro, inédito
Santa Maria da Feira, 6 de Maio de 2005

A metáfora


Encontro o Mestre e digo-lhe que há poetas
que recusam a metáfora
e o Mestre sorri.
A metáfora é apenas a metáfora, diz ele,
e não vale a pena ser a favor nem contra a metáfora,
nem a favor nem contra seja o que for.

As coisas são e não são
à margem
dos poetas com assento
em casas de comércio,
diz o Mestre,
enquanto almoça.

A realidade vale exactamente o que vale o nosso olhar.
A realidade é um peixe, o peixe nosso de cada poema.
E o poeta é uma criança… Um menino
que segue pelos caminhos com bolas etéreas
a subir no ar.

O poeta é um menino com olhos de menino
e uma dor muito funda no seu peito de menino.
O poeta atravessa os pátios da infância
e vai feliz, dizendo
que as breves metáforas que lança ao ar
são apenas planetas de sabão a explodir
sucessivamente sobre a cabeça do mundo.

José Fanha, in O Soldadinho de Chumbo

Tudo foi dito cem vezes



Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte

e cago-vos na tromba

Boris Vian, in Canções e Poemas

Embriaga-te


É preciso estares sempre bêbedo: é a única solução.
Para não sentires o tremendo fardo do tempo
que te despedaça os ombros e te verga para o chão,
é preciso embriagares-te sem cessar.
Mas com quê? Com vinho, com poesia, com mulheres ou com a virtude,
ao teu gosto, mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus dum palácio,
sobre as verdes ervas duma vala,
acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida,
pergunta ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que gira,
a tudo o que canta, a tudo o que fala,
pergunta que horas são.
E o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio,
responder-te-ão: São horas de te embriagares;
para não seres o escravo martirizado do tempo,
embriaga-te, embriaga-te sem cessar
com vinho, com poesia ou com a virtude,
ao teu gosto.
Sê a vida, sente-te vivo, sê tu mesmo.

Charles Baudelaire
Tradução de Anthero Monteiro do texto em francês inserto no blogue http://www.pascalobispoblog.com/

sábado, 27 de setembro de 2008

José, o homem dos sonhos


Que nome dar ao poeta
esse ser dos espantos medonhos?
Um só encontro próprio e justo:
o de josé o homem dos sonhos

Eu canto os pássaros e as árvores
Mas uns e outros nos versos ponho-os
Quem é que canta sem condição?
É josé o homem dos sonhos

Deus põe e o homem dispõe
E aquele que ao longo da vereda vem
homem sem pai e sem mãe
homem a quem a própria dor não dói
bíblico no nome e a comer medronhos
só pode ser josé o homem dos sonhos

Ruy Belo, in Homem de Palavra[s]

O Poeta

Trabalha agora na importação e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta própria,
um desses que preenche cadernos de folha azul com números
de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte.

Nuno Júdice, in «Teoria Geral do Sentimento» in Poesia Reunida 1967-2000,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

Ao poeta-diseur Joaquim Castro Caldas - In memoriam


ah joaquim outra vez a fugires de mim
escondido agora num alçapão
a fingires-te pedrado
com apenas cinquenta e dois centilitros de vida

a primeira foi há tempos na rua de belmonte
às duas e meia da matina
nas imediações do pinguim café
levavas no corpo uma carraspana de versos
e nem sequer ouviste a minha saudação

bem sei que só cá vieste ver o sol
mas ninguém esquece como eras capaz
de acendê-lo numa cave à meia-noite
através da neblina dos cigarros dos copos e de todos os excessos
como fazias das segundas memoráveis domingos
e arranjavas maneira de as palavras se abrirem em granadas ou corolas
e como eternizavas os que cedo morrem
como tu supostamente amados dos deuses

cansaste-te de nós e sais porta fora
a pensar certamente que se Freud
vejo-te pronto para emigrar para o pólo norte
um frasco com o cordão umbilical
para teres sempre à mão as raízes
e a mala transbordante de poemas para ler aos pinguins

onde vais amigo? os deuses podem bem esperar
quem disse que eles amam seja quem for
quem te ama somos nós e exigimos-te connosco

além disso estás equivocado sobre os pinguins
eles não existem no ártico

seja como for
convém avisar os ingleses
para que não te deixem passar

Anthero Monteiro, inédito
01/09/08

Dos poetas

ternos caloteiros do corpo dos outros
ladrões de cheiros carinhos que vêm agarrados
mentirosos como um gato mais as liberdades
não sei se por andar rotos falar sozinhos
se por muitos e bons pinóquios bem capazes
de um golpe de estado d’alma às vezes

os poetas…

doidos bobos de reis que os mandam rir
quando certas palavras os despem vão trair
paneleiros de luxo arruaçando o povo
rixeiros de peluche estudantes chumbados
sem os quais os outros não vão às mulheres
não estudam não passam nunca são melhores

os poetas…

disparo? não disparo? para os malmequeres
morrem a ler a sua morte nos jornais
profetas da tristeza traficantes de ciúmes
e que estranhas putas se falam com os deuses
inocentes portadores de um vírus desgraçado
que não se pega mete medo só os mata a eles

os poetas…

parvos mediuns mulas de carga do vão sonho
ao jogo bebem noites e descaem-se nos segredos
carrancas de nau de pedra de repente vivos
abaixo a poesia! longe pode-se ouvi-los
ovelhas negras sitiando o poder aos lobos
mas o caralho meus senhores é que nem mortos

os poetas…

Joaquim Castro Caldas, do baú,
Esposende, Silêncio da Gaveta, 1999

Poeta, “actor de poesia, saltimbanco, lunático praticante, diseur a tempo inteiro”, sem contar dezenas de ofícios que exerceu, para sobreviver, no Norte de África, na Europa e em Portugal, nasceu em Lisboa em 1956, mas estabeleceu-se no Porto no final da década de 80, onde, durante sete anos, dinamizou as famosas noites de poesia das segundas-feiras, no café Pinguim, à Rua do Belmonte. Foi ainda apreciado redactor principal do extinto guia da cidade, “Metro”. Publicou 11 livros, entre os quais: do baú (1999), impressões digitais dos deuses (2001), Convém Avisar os Ingleses (2002), Só cá vim ver o sol (2003), Mágoa das Pedras (2007). Faleceu, aos 52 anos, vítima de doença prolongada, no dia 31 de Agosto último, no Porto, onde, em vários locais, se continua a praticar, à sua imagem e semelhança, o culto das sessões de poesia em várias espaços de diversão nocturna e teatros, conceito que ele criou e difundiu: «a minha função é divulgar, da forma que posso, a utilidade da língua, o prazer da língua» (JN, 01/09/2008). Muito lhe devem os poetas, os diseurs e a literatura em geral.
Esta é uma pequena homenagem de A PRAÇA DA POESIA:.


Não há motivo para te importunar...

Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.

Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.

Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.

Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.

E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?

Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.

José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis

Malditos Poetas

Malditos poetas, que disseram tudo
e tudo tão bem dito!

Malditos poetas, que me deixam mudo,
sem um ai, uma súplica ou um grito!

Raios os partam, cada qual maldito!

Malditos, que roçaram no seu voo,
com asas de veludo
o infinito!

Malditos poetas: Eu os abençoo...


Adolfo Simões Müller

Com licença!

Desculpem a intromissão. Neste momento, pelo menos, preferia que não dessem por mim, o que é, afinal, um contra-senso, para quem entra na blogosfera e logo se sujeita ao olhar prescrutador dos holofotes. Mas prometo não atrapalhar... Atrapalhado (pelo menos com esta nova linguagem para mim) já eu estou...
Como organizador de várias tertúlias poéticas, tenho sentido a falta de uma forma simplificada de um determinado grupo aceder facilmente aos textos que vai ler/dizer em público.
É por isso que me proponho coligir textos poéticos e outros e colocá-los aqui à disposição dos meus colaboradores, sem que possa impedir os outros amantes da Poesia de os desfrutarem também e utilizarem, se necessário.
Será também uma forma de libertar o meu computador de centenas de pastas de textos que fui coleccionando de forma temática e ir reencontrá-los nesta praça sempre que me apeteça.
Este será, por isso mesmo e em princípio, também um blogue temático de Poesia, o que não é tão usual quanto possa parecer.

1.º Tema: MALDITA POESIA

E a abrir, parece que o primeiro tema talvez deva ser a própria Poesia. Designá-lo-ei por MALDITA POESIA, para, de alguma forma, dar conta do quanto ela se me colou ao corpo e à alma e me acompanha como uma inelutável maldição. Entremos, pois, nessa praça assombrada. Com licença!