Anthero Monteiro
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
o senhor z
Anthero Monteiro
numa sessão de poesia
ao fim
de um longo dia de trabalho
um
zero-à-esquerda sempre zangado
sempre
ziguezagueando sempre zangarilhando
na
ingrata e persistente luta para subir na vida
o
senhor z sentia-se exausto
sentou-se
no sofá ligou a tv
e logo
retomou o comando
a
pensar em mudar para um canal
mais
interessante um combate de boxe
seria
uma hipótese de aprender a lutar
por um
lugar mais condigno
ia
premir o botão
mas deixou-se
vencer pelo sono
quando
horas depois acordou
viu-se derrotado também pela resignação
não
seria assim que alguma vez
conseguiria subir
na
ordem alfabética
Anthero
Monteiro (inédito)
domingo, 25 de outubro de 2015
Contragravidade
quando subia a imensa escadaria
desequilibrou-se
e foi estatelar-se lá em cima
desequilibrou-se
e foi estatelar-se lá em cima
pelo menos garantiram-me
que agora está no céu
que agora está no céu
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HUMOR,
Poemas de Anthero Monteiro
terça-feira, 1 de setembro de 2015
Contrastes
todo
este céu que alguns momentos dura
esta
infinita eternidade exígua
este
sabor que perpassou na língua
o
pressentir que todo o mal tem cura
este
sorrir que me visita os lábios
que
anda comigo à hora imprevisível
porque
os meus olhos viram o invisível
e
passei a saber mais do que os sábios
e por
coisas banais muito pequenas
sinto-me
grande às vezes e possante
só
por aquele afortunado instante
em
que mesmo de longe tu me acenas
não
me acena o futuro não sorri
e se
sorrio é só porque sou doido
é um
infinito inferno este céu todo
e
tudo isso vem de ti de ti
vivo
assim dentro desta colisão
de
forças de gigantes tão adversos
onde
morrem e nascem universos
onde
é ínfimo e é enorme o coração
Anthero
Monteiro
16/06/2010
sábado, 22 de agosto de 2015
O poeta vai ao médico
então de que se queixa?
o poeta pede licença para
ler-lhe um poema
o clínico encrespa um
tudo-nada as feições
mas condescende sou todo
ouvidos
como não foi treinado para
ser todo ouvidos
espera impaciente
que o fim chegue depressa
e o poema era curto afinal
só isso? pergunta
sim doutor é só isto o que
sinto
mas nunca conseguiria
dizer-lho de outra forma
o doutor gatafunha umas
linhas
num papel timbrado
pronto pode levar este meu
à farmácia
mas doutor não percebo uma
não se preocupe
eles lá foram treinados
para ler qualquer rabisco
Anthero Monteiro
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Poemas de Anthero Monteiro
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Servir
passou a
vida ao serviço dos demais
do próximo
ou do distante
do indivíduo
ou da multidão
de quem
tinha pouco ou muito mais do que ele
o seu lema
era servir sem ver a quem
quanto a
servir-se
servia-se
apenas à mesa
o suficiente
para manter o vigor
e poder
continuar a servir os outros
também se
servia de algum descanso
pelos mesmos
motivos
servia-se
ainda do sol e da chuva
das amoras
nos valados
dos trilhos
dos bosques e das mo ntanhas
dos
miradouros para o indizível
da secreta
companhia das estrelas
de tudo
quanto é naturalmente de todos
um dia de
repente deixou de servir
e como nem
sequer conseguia mexer-se
recebeu a
recompensa que nunca reivindicara:
ficou ali
mesmo transformado
em estátua
jacente
Anthero
Monteiro
Primeiro encontro
Foto: A.M.
ribeiro
nunca tinha visto o mar
viera do
interior nortenho
com os olhos
apenas acostumados
às corcovas
das montanhas
e à
infinitude das noites estreladas
vasconcelos
esse conhecia bem o oceano
atravessara-o
desde a sua ilha
para ser
também nosso condiscípulo
de internato
quase todos
chegaram do litoral
e os outros eram
amiúde atraídos
pela linha
líquida do horizonte
numas férias
acampámos todos
perto da foz
de um rio modesto
nas dunas
que antecedem o areal
aplanado
pelas ondas
bastava
subir a encosta
e logo
teríamos aquela aparição
de plenitude
e incomensurável
o momento
mais esperado seria assistir
ao primeiro
encontro entre ribeiro e o mar
todos
esperavam o olhar de espanto do colega
uma centelha
de deslumbramento
uma
interjeição de assombro
perante o
inefável
mas ribeiro
era uma água quase parada
e continuava
sem pressas a colocar os prumos
a bater as
estacas a prender a lona
como quem antegosta
o melhor do prato
deixando-o
para o fim
a
impaciência desaguou no desânimo
do lado de
lá da duna seguia-se uma planura
de areia e
uma bola começou por ali a rolar
sob o
impulso dos nossos pés descalços
só muito
depois ribeiro subiu o declive
e silente
discreto vagaroso
como quem se
acerca de um leão
e humilde
como arroio que vai ter com o oceano
foi descendo
até à areia mais húmida
foi
Vasconcelos na baliza quem deu o sinal
o jogo
coagulou ali por minutos
e todos
quiseram assistir
àquele
primeiro encontro
o moço ali
parado e reverente
enchendo os
olhos de infinito
até que uma
onda mais afoita e mais humilde
veio
beijar-lhe os pés
ele
baixou-se e estendeu-lhe as mãos
num
cumprimento que era já um abraço
depois
desatou a correr
deitou-nos a
língua de fora
e veio
integrar o jogo logo reatado
Anthero Monteiro
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Poemas de Anthero Monteiro
domingo, 28 de junho de 2015
Óculos
vergou-se para recuperar
algo que tinha deixado cair
ajoelhou-se gatinhou numa pequena
floresta de pernas
de cadeiras e por fim volvidos
largos minutos ergueu-se
caído então em desânimo
já nem sequer me lembro daquilo
que ando à procura
algo que tinha deixado cair
ajoelhou-se gatinhou numa pequena
floresta de pernas
de cadeiras e por fim volvidos
largos minutos ergueu-se
caído então em desânimo
já nem sequer me lembro daquilo
que ando à procura
ela observou-o minuciosamente
de alto a baixo e perguntou apenas
como é que queres encontrar
os óculos sem os óculos?
de alto a baixo e perguntou apenas
como é que queres encontrar
os óculos sem os óculos?
Anthero Monteiro
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Poemas de Anthero Monteiro
Tortilha
quando regressou das exéquias
absolutamente só e esfomeado
pôs a sertã ao lume e começou a cortar
as batatas e a cebola em rodelas
bateu dois ovos preparou
pequenas porções de queijo e chouriço
e desencaroçou as azeitonas para a sua tortilha
como só ele sabia fazer
absolutamente só e esfomeado
pôs a sertã ao lume e começou a cortar
as batatas e a cebola em rodelas
bateu dois ovos preparou
pequenas porções de queijo e chouriço
e desencaroçou as azeitonas para a sua tortilha
como só ele sabia fazer
desde que casara
nunca mais confecionara aquele seu prato predileto
porque ela teimava em cozinhar a seu modo
sempre ciosa de excecionais dotes culinários
nunca mais confecionara aquele seu prato predileto
porque ela teimava em cozinhar a seu modo
sempre ciosa de excecionais dotes culinários
deixou tostar por baixo em fogo médio
foi sacudindo a sertã para nada agarrar no fundo
e também se foi descolando alguma da tristeza
que trazia presa ao rés da alma
foi sacudindo a sertã para nada agarrar no fundo
e também se foi descolando alguma da tristeza
que trazia presa ao rés da alma
como ao virar a tortilha com o auxílio de um prato
é imprescindível apurar a atenção
para não queimar as mãos
esqueceu por instantes algum do seu pesar
e lá deixou o fogo dourar a outra face do pitéu
é imprescindível apurar a atenção
para não queimar as mãos
esqueceu por instantes algum do seu pesar
e lá deixou o fogo dourar a outra face do pitéu
depois sentou-se à mesa para provar
a si próprio que ainda sabia fazer uma tortilha
estava deliciosa como antigamente
apesar de uma pitada de sal a mais
e o intrometido sabor de duas lágrimas
a si próprio que ainda sabia fazer uma tortilha
estava deliciosa como antigamente
apesar de uma pitada de sal a mais
e o intrometido sabor de duas lágrimas
Anthero Monteiro
segunda-feira, 22 de junho de 2015
Eleutério
Anthero Monteiro
by Luís Abrunhosa
ninguém acredita mas ele continua
a sustentar aquela vaga lembrança
de ter ouvido junto da pia iniciática
entre os sustos da água e do sal
do primeiro sacramento
a música da palavra eleutério
era um nome esdrúxulo mas bem promissor
infelizmente todos lhe chamam
desde sempre e apenas silva
Anthero
Monteiro
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NOMES,
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sexta-feira, 1 de maio de 2015
Beatriz
Beatriz só sabe dizer
pai
mãe
pão
não
e tim
em vez de sim
e em vez de dizer
Beatriz
diz apenas
tiz
(só não acerta
a última sílaba
por um triz)
ainda só anda pelos monossílabos
não diz copo
nem faca
nem boca
nem olhos
e pra dizer nariz
fica-se pelo niz
os dissílabos só se forem partidos
aos bocados
e os polissílabos ainda vêm longe
de tão complicados
o pai
a mãe
o tio
impacientam-se
eles queriam que ela
que ainda não sabe dizer
desobediente
nem adolescente
nem afluente
nem presente
nem dente
nem pente
nem gente
aparecesse ali a dizer de repente
anticonstitucionalissimamente
Anthero Monteiro
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Poesia infantil
terça-feira, 28 de abril de 2015
Fidelidade
A peça terminava com um beijo apaixonado
do protagonista e da amante.
Mas como o ator descobriu
a verdadeira mulher entre a assistência
acabou por dar um beijo
na boca de cena.
do protagonista e da amante.
Mas como o ator descobriu
a verdadeira mulher entre a assistência
acabou por dar um beijo
na boca de cena.
Anthero Monteiro
sexta-feira, 24 de abril de 2015
Pulga na orelha
ora uma pulga expedita
irrequieta e irritante
que saltita que saltita
e que se põe num instante
no lugar mais eminente
um dia deu-lhe na telha
sem convite e sem pergunta
de saltar mesmo prá orelha
do presidente da junta…
sim senhor, do presidente!
foi aí que o secretário
que estava a fazer a ata
viu o salto extraordinário
daquela pulga acrobata
mas tão desavergonhada
e pra livrar o colega
do inseto e afugentá-lo
no cachaço lhe pespega
um tremendíssimo estalo…
sim senhor, mas que estalada!
estatelou-se redondo
o presidente no chão
e ao ouvir aquele estrondo
a pulga decide então
pular pró outro parceiro
estava a contar a maquia
que por acaso era escassa
somava e subtraía
ele era o dono da massa…
sim senhor, o tesoureiro!
o secretário espiara
com os olhos o trajeto
do salto da pulga ignara
desse infamíssimo inseto
tão malquisto e ordinário
e zás acerta na nuca
do homem do capital
que até lhe arranca a peruca
e quebra em três um cristal…
sim senhor, lá num armário!
secretário e presidente
presidente e tesoureiro
envolvem-se de repente
com violento berreiro
num terrível pugilato
depois pararam os três
e como belos rapazes
lá decidiram de vez
fazerem ali as pazes…
sim senhor, é mais sensato!
sentaram-se os três à mesa
merendaram conversaram
riram daquela proeza
e finalmente tomaram
junto duma escrivaninha
uma grande decisão
que era a única acertada
pediram a demissão
também não se perdeu nada…
não senhor, nada nadinha!
perder é como quem diz
não é bem como se julga
perdeu a vila de Avis
o rastro daquela pulga.
se ela não estiver defunta
decerto que a esta hora
fugida àquela razia
foi há muito lá pra fora
morder noutra freguesia
sim senhor, ou noutra junta!
Anthero Monteiro
(inédito)
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Poesia Juvenil
João dos Biscoitos
Fui à lata dos biscoitos
tirei um
p’ra não ficar em jejum
não, tirei dois
pra comer outro depois
ou seja, tirei três
dois pra mim, um para a Inês
quer dizer, tirei foi quatro
mais um pra calar o gato
ou melhor, tirei os cinco
a pensar no ornitorrinco
perdão, tirei foi seis
mais um pró dono dos carrocéis
não, ao todo tirei sete
mais um para a Bernardete
desculpem lá, tirei oito
é mais biscoito menos biscoito
tirei um
p’ra não ficar em jejum
não, tirei dois
pra comer outro depois
ou seja, tirei três
dois pra mim, um para a Inês
quer dizer, tirei foi quatro
mais um pra calar o gato
ou melhor, tirei os cinco
a pensar no ornitorrinco
perdão, tirei foi seis
mais um pró dono dos carrocéis
não, ao todo tirei sete
mais um para a Bernardete
desculpem lá, tirei oito
é mais biscoito menos biscoito
Por isso tirei o nono
às escondidas do dono
que é o senhor meu pai
que esconde a lata
sempre que sai
às escondidas do dono
que é o senhor meu pai
que esconde a lata
sempre que sai
E prà conta ficar certa
tirei o número dez
pra dar de oferta
ao meu amigo Moisés
tirei o número dez
pra dar de oferta
ao meu amigo Moisés
E não tirei mais nenhum
como queria
porque a lata
ficou vazia.
como queria
porque a lata
ficou vazia.
Anthero Monteiro
(inédito)
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Poesia infantil
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
Glicínia
Foto in
http://plantasdecasa.blogspot.pt/
é um rosto fechado a tua casa
nem os lábios da porta se entreabrem
nem sorriem seus olhos hialinos
por mais que eu use o pó do teu caminho
por mais que eu aprofunde essa vereda
e dela faça o álveo desta mágoa
a tua casa é concha de refúgio
calcificou o caracol da espera
mal deflagrou o pólen nos espaços
emaranhou-se ao muro uma glicínia
marinhou pelo mês de março fora
e em minha vez foi ver-te na janela
na tua vez floriu em mil sorrisos
e sempre que aí passo lá me acena
a desdobrar-se em ânsias de infinito
línguas de fogo a rescender a azul
queria eternizar a primavera
e ser a tua rua para sempre
Anthero Monteiro,
Canto de Encantos e Desencantos
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