quarta-feira, 30 de março de 2011

Outra viagem



Já nos campos de Jaén
amanhece. O comboio,
nos seus luzentes carris,
vai tragando matagais,
alcacéis,
terraplenos, pedregais,
olivedos, casarios,
pradarias e cardais,
montes e vales sombrios.
No postigo embaciado,
passa esta dobadoira
do campo de primavera.
A luz do tecto cintila
do meu vagão de terceira.
Entre grandes nuvens brancas,
ouro e trigo;
E a névoa da manhã
a fugir pelos barrancos.
Este insone sonho meu!
Este frio
de acordar sem ter dormido!
Ressoante,
arquejante,
o comboio. E o campo voa.
Na minha frente, um senhor
sob a manta adormecido;
e um frade; e um caçador
- o cão aos pés estendido.
Contemplo a minha bagagem,
meu velho saco de couro;
e recordo outra viagem
até às terras do Douro.
Outra viagem: aquela
pela terra de Castela
- pinheiros na madrugada,
entre Almazán e Quintana!
Ai, alegria
de viajar em companhia!
Ai, união,
que a morte rompeu um dia!

Ah, mão fria
que apertas meu coração!
Anda, comboio, caminha,
fumegando,
carregando
teu batalhão de vagões,
fatigando
bagagens e corações!
Solidão,
sequidão.
E tão pobre vou ficando
que já nem ao certo estou
comigo, nem sei se vou
só comigo viajando.

António Machado, Campos de Castilla, 1912 / Trad. David Mourão-Ferreira

Espanha, 1875-1939

segunda-feira, 28 de março de 2011

Canção

Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas:
Umas vivem em mansões, outras em tugúrios;
Não há contudo lugar para nós, meu amor, não há contudo lugar para nós.

- Outrora tivemos uma pátria e pensávamos que isso era justo.
Olha o mapa, e ali a encontrarás.
Não mais podemos lá voltar, meu amor, não mais podemos lá voltar.

- O cônsul deu um murro na mesa e disse:
«Se não têm passaporte, estão oficialmente mortos.»
Mas nós ainda estamos vivos, meu amor, mas nós ainda estamos vivos.

- Aí em baixo, no adro da igreja, ergue-se um velho teixo:
Em cada primavera floresce de novo;
Velhos passaportes não podem fazê-lo, meu amor, velhos passaportes não podem fazê-lo.

- Fui a uma repartição; ofereceram-me uma cadeira;
Disseram-me polidamente para voltar no próximo ano;
Mas onde iremos hoje, meu amor, mas onde iremos hoje?

- Fomos a um comício público; o orador levantou-se e disse:
«Se os deixarmos aqui ficar, hão-de roubar-nos o pão de cada dia»:
Estava a falar de ti e de mim, meu amor, estava a falar de ti e de mim.

- Ouvimos um clamor que nem trovão retumbando no céu;
Era Hitler berrando através da Europa:«Eles têm de morrer!»
Oh, nós estávamos no seu pensamento, meu amor, nós estávamos no seu pensamento.

- Vimos um cachorro, de jaqueta apertada com um alfinete;
Vimos uma porta aberta e um gato a entrar;
Mas não eram judeus alemães, meu amor, não eram judeus alemães.

- Descemos ao porto e parámos no cais;
Vimos os peixes nadando como se fossem livres;
Apenas a dez pés de distância, meu amor, apenas a dez pés de distância.

- Passeámos por um bosque, havia pássaros nas árvores;
Não tinham políticos e cantavam despreocupados;
Não eram de raça humana, meu amor, não eram de raça humana.

- Sonhámos com um edifício de mil andares,
Com mil portas e com mil janelas;
Nenhuma delas era nossa, meu amor, nenhuma delas era nossa.

- Corremos à estação para apanhar o expresso;
Pedimos dois bilhetes para a Felicidade;
Mas todas as carruagens estavam cheias, meu amor, mas todas as carruagens estavam cheias.

- Quedámo-nos numa grande planura com a neve a cair;
Dez mil soldados marchavam para cá e para lá,
À tua e à minha procura, meu amor, à tua e à minha procura.

- W. H. Auden, Ten Songs /tradução de David Mourão-Ferreira

domingo, 27 de março de 2011

Ode

- - - - - - - Da capa do livro Harmonika-Zug de Dominique de Roux da Gallimard

Empresta-me o teu grande ruído, o teu doce andamento,
O teu nocturno deslizar através da Europa iluminada,
Ó comboio de luxo! e a música tão angustiante
Que sussurra ao longo de teus corredores de couro dourado,
Enquanto por detrás das portas lacadas, com loquetes de cobre pesado,
Dormem os milionários.
Cantarolando percorro os teus corredores
E sigo a tua corrida até Viena e Budapeste,
Misturando a minha voz às tuas cem mil vozes,
Ó Harmonika-Zug!

- Senti pela primeira vez toda a doçura de viver,
Numa cabine do Norte-Expresso, entre Wirballen e Pskow.
Deslizava-se através das pradarias onde os pastores,
Ao pé de grupos de grandes árvores semelhantes a colinas,
Estavam vestidos de sujas e cruas peles de carneiro…
(Oito horas da manhã no outono, e a belíssima cantora
De olhos violeta cantava na cabine ao lado.)
E vós, grandes espaços através dos quais vi passar a Sibéria e os montes do Sâmnio,
A áspera Castela sem flores, e o mar de Mármara sob uma chuva tépida!

- Emprestai-me, ó Oriente-Espresso, Sud-Brenner-Bahn, emprestai-me
Os vossos milagrosos ruídos surdos e
As vossas vibrantes vozes de corda de viola;
Emprestai-me a respiração ligeira e fácil
Das altas e delgadas locomotivas, com movimentos
Tão desembaraçados, as locomotivas dos rápidos
Precedendo sem esforço quatro vagões amarelos com letras de ouro
Nas solidões montanhosas da Sérvia,
E, mais longe, através da Bulgária cheia de rosas…

- Ah! é preciso que esses ruídos e esse movimento
Entrem nos meus poemas e digam
Para mim a minha vida indizível, minha vida
De criança que não quer saber nada, a não ser
Continuar eternamente à espera de coisas vagas.

- Valery Larbaud (1881-1957) Trad. David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 25 de março de 2011

Tem gente com fome



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Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu

Solano Trindade

A locomotiva Tchaf


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Ti João, o fogueiro, cuspiu nas mãos, pegou na pá e começou a lançar muito carvão na fornalha.Trraaac-tchi-pum, trraaac-tchi-pum, trraaac-tchi-pum. As pazadas de carvão entravam na fornalha a um ritmo certo e ardiam numa explosão breve.
- Já está boa, Ti João. A pressão já atingiu o máximo, exclamou o maquinista.
- Partiiiida!, gritou uma voz lá ao longe, ao mesmo tempo que se ouvia a corneta do chefe da estação.
- U, U, U, respondeu a máquina ao aviso da corneta.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, faz mais fumo, faz mais fogo, força firme foge-foge nesta viagem sem fim.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, pouca-terra, pouca-terra, puxa-passa, passa-puxa a potência do vapor para a roda pedaleira.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, rilha o ferro, range o rail, roda a roda reduplica a raiva de mil corcéis a escoucinhar furiosos as alavancas da máquina.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, a caldeira a rebentar já não vive, sobrevive aos cavalos de vapor – catrapum e catrapum, catarapum e catrapum – patadas no corpo-aço das alavancas motrizes e vai-que-vem e vem-que-vai são muitas mil toneladas de aço e ferro para arrastar.
Corre, corre comboiozinho, conta-conta a tua história, canta-canta a melopeia – tum, tum, tum e tum, tum, tum – toada música-toante, melodia de viagens cem mil vezes repetidas quase até ao infinito.
O fogueiro afogueado anima a marcha do trem, canta modinhas bonitas, assobia sonhos-sol e os seus cavalos brancos crinas soltas, força livre puxam pela geringonça - tchaf, tchaf, tchaf, tchaf – respondendo com amor àquele duende mágico mascarrado com carvão.

Carlos Correia, A Locomotiva Tchaf

O comboio correio das 10 da noite


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O comboio correio das 10 da noite partia da
minha terra para Lisboa. Fui tantas vezes
com o meu pai levar as cartas. Esperávamos
na gare. Se havia chuva ouvíamos o apito
quando passava à Granja vindo de Óbidos e

depois de correr o vale de S. Mamede.
O que mais me seduzia era o seu peso o negro
da máquina o movimento do êmbolo a nuvem de vapor
correndo toda a gare. Chegava entre videiras e
pântanos. O chefe da estação de

bandeirinha verde dava o sinal de entrada. Era
o intenso barulho os ferros da travagem
o bater das portas as carruagens verdes
enegrecidas, os castanhos wagons. Máquinas de carvão,
a diesel depois. O degrau de madeira ao

longo da carruagem, o romano nas portas I, II, e III.
Anos depois, já de mim se dizia «um homenzinho»
viajei nesse comboio das 10. Partia de
Coimbra, às cinco horas. Pelos campos do Mondego

a água, a matéria do ferro, confundi
com o caos. Reconheço neste comboio a forma
obscura, a intuição ridícula das imagens. A noite
corria de mistura com a triste lâmpada do
corredor, benefício do mistério, fogo fechado pela

trovoada sobre os campos do arroz, sobre o pinhal de Leiria.
Viajava em segunda. Vinha para casa no natal.
Eu tinha um emblema, vermelho e branco dos suíços,
na lapela do sobretudo. O meu irmão, as mãos
gretadas das frieiras sob umas luvas azuis. No

banco em frente,
uma professora de geografia rezava o terço
atenta à formação do espírito científico nascente.
Descolorido amor humano,
fornalha de comboio, coração das coisas a noite
corria fora e dentro da carruagem verde.

Meu pai estava na gare.
A longa fita de cabedal para fechar, abrir as
janelas. A rede onde pousava as malas.
Os corridos bancos de madeira ficavam na III.
Um guarda republicano cerrava todas as

noites sobre o azul do capote a portinhola.
O traço do comboio separa o céu da terra sob as estrelas
sob o limite da chama
a arte tanta vez a natureza.

João Miguel Fernandes Jorge, «Exposição» in O Regresso dos Remadores,
Lisboa, Editorial Presença, 1982

No comboio de Florença a Roma














No comboio de Florença a Roma
Mil pessoas, mil destinos
Cada um olhando por sua janela
Ou lendo um livro
Cada qual pensando nos seus
Ou nas suas coisas que não estão ali
Mas alhures.
Ali cada um tem consigo tão só o essencial
O verdadeiramente essencial
O seu próprio corpo
Uma pequena bagagem
Quase aquilo com que a morte os recolherá um dia
Quase só aquilo que os acompanhará
Por toda a eternidade, um dia,
o corpo esse
alguma roupa que o cubra
o anel de noivado. Pouco mais.

No comboio de Florença a Roma
uma velha senhora lê o jornal
como quem lê a vida
passando as folhas das notícias lidas
e esperando que algo exista ainda que
a comova e incite nas folhas que restam
que já vão sendo poucas
ante as folhas passadas
folhas soltas também de Florença a Roma
esquecidas, desperdiçadas, avidamente lidas
distantes já.

Uma casa antiga lá fora
no comboio de Florença a Roma
Janelas trífores e derredor ciprestes
os campos que a luz da lua visitará mais tarde.
Alguém fuma entre carruagens.
Alguém atende o telefone e fala
numa conversa para algures
Ciao cara, nos veidiemi. Augiri.
Outeiros, rios, fios, aves
um castelo velho
choupos debruçados sobre a água
à sombra das ameias destruídas
a torre em ruínas assaltada pela hera.

No comboio de Florença a Roma
Cada destino uma partida
e talvez, quem sabe, uma chegada também
de todos os mais ignorada
Uma vida cada vida, das outras gémea
das outras desconhecida
E apesar disso sentados vão lado a lado
mil destinos
frente a frente mil pessoas
almas passageiras de cidade a cidade
olhando-me e olhando-as eu a elas
cada de nós vendo os outros como eles são
e a si próprio como pensa ser ou gostaria de ser
não como é na verdade e os outros o vêem
ilusões vãs como a paisagem vã escorrendo o vidro.

No comboio de Florença a Roma
longa vai a hora sobre os trilhos
e o silêncio de encontro à chuva
Deixemos que o sono nos vença e nos convoque
Deixemo-lo que se alongue sobre nós
como a tarde cai
e que nos dê sombra e paz, como a primavera
que nos embale no doce contorno das colinas
lá fora
à velocidade das casas
à velocidade das árvores
à velocidade do sonho
No comboio de Florença a Roma.

Fernando Cabrita, in
Revista de Poesía Aullido 15

(Advogado, n. Olhão, 1954)

quinta-feira, 24 de março de 2011

O revisor

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Foto in
www.libertytv.com


Vamos vamos
Toca a despachar
Vamos vamos
Toca a despachar
Há muitos passageiros
Muitos passageiros
Toca a despachar
Há gente na fila
Por toda a parte
Muita gente
Ao longo do cais
Ou nos corredores da barriga da mãe
Vamos vamos toca a despachar
Toca a apertar no gatilho
Tem que haver lugar para todos
Matem-se então uns aos outros
Vamos vamos
Vamos lá
Há que ser decente
Há que dar lugar
Bem sabem que não podem ficar cá muito tempo
Demasiado tempo
Tem que haver lugar para todos
Disseram-vos que era só uma voltinha
Uma pequena volta ao mundo
Uma pequena volta aqui no mundo
Uma pequena volta e... pronto
Vamos vamos
Toca a despachar
Sejam educados
Não empurrem.

Jacques Prévert, Palavras/Paroles,
Lisboa, Sextante Editora, 2007 (1949)

quarta-feira, 23 de março de 2011

O lado errado da noite


Santa Apolónia arrotava magotes de gente
do seu pobre ventre inchado, sujo e decadente
quando Amélia desceu da carruagem dura e pegajosa
com o coração danificado e a cabeça em polvorosa
na mala o frasco de 'Bien-Etre' mal vedado
e o caderno dos desabafos todo ensopado
Amélia apresentava todos os sintomas de quem se dirige
ao lado errado da noite

Para trás ficaram uma mãe chorosa e o pai embriagado
o pequeno poço dos desejos todo envenenado
a nódoa do bagaço naquela farda republicana
que a queria levar pra cama todos os fins de semana
e o distinto patrão daquela maldita fundição
a quem era muito mais difícil dizer não
Amélia transportava todas as visões de quem se dirige
ao lado errado da noite

Amélia encontrou Toni numa velha leitaria
entre as bolas de Berlim com creme e o sol que arrefecia
ele falou-lhe de um presente bom e de um futuro emocionante
e escondeu-lhe tudo o que pudesse parecer decepcionante
mais tarde, no quarto de pensão, chamou-lhe sua mulher
seria ele a orientar o negócio de aluguer
Toni tinha todas as qualidades pra ser um rei
no lado errado da noite

Jonas está agarrado ao seu saxofone
a namorada deu-lhe com os pés pelo telefone
e ele encontrou inspiração numa notícia de jornal
acerca de uma mulher que foi levada a tribunal
por ter assassinado uma criança recém-nascida
o juiz era um homem que prezava muito a vida
e a pena foi agravada por tudo se ter passado
no lado errado da noite

Jorge Palma

segunda-feira, 21 de março de 2011

Cópula



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In
www.24heures.ch


No prado, onde as vacas imóveis,
esperam a passagem do comboio, ouve-se um ruído
de ramagens fustigadas pelo vento. Não sei se
é o outono que chega, ou se o verão ainda resiste
à chegada da breve estação. No entanto,
o comboio demora-se; e a vaca que não quis
esperar parou no meio da linha, como uma raiz
metafisica que se meteu na terra e a prendeu,
impedindo-a de fugir à investida da locomotiva.
(O resultado, meses depois,
foi um bezerro a vapor).
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Nuno Júdice, Poesia Reunida (1967 – 2000),
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

El tren de los heridos


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in
Scrapbook
pages blog
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Silencio que naufraga en el silencio
de las bocas cerradas de la noche.
No cesa de callar ni atravesado.
Habla el lenguaje ahogado de los muertos.

Silencio.

Abre caminos de algodón profundo,
amordaza las ruedas, los relojes,
detén la voz del mar, de la paloma:
emociona la noche de los sueños.

Silencio.

El tren lluvioso de la sangre suelta,
el frágil tren de los que se desangran,
el silencioso, el doloroso, el pálido,
el tren callado de los sufrimientos.

Silencio.

Tren de la palidez mortal que asciende:
la palidez reviste las cabezas,
el ¡ay! la voz, el corazón la tierra,
el corazón de los que malhirieron.

Silencio.

Van derramando piernas, brazos, ojos,
van arrojando por el tren pedazos.
Pasan dejando rastros de amargura,
otra vía láctea de estelares miembros.

Silencio.

Ronco tren desmayado, envejecido:
agoniza el carbón, suspira el humo
y, maternal, la máquina suspira,
avanza como un largo desaliento.

Silencio.

Detenerse quisiera bajo un túnel
la larga madre, sollozar tendida.
No hay estaciones donde detenerse,
si no es el hospital, si no es el pecho.

Silencio.

Para vivir, con un pedazo basta:
en un rincón de carne cabe un hombre.
Un dedo solo, un solo trozo de ala
alza el vuelo total de todo un cuerpo.

Silencio.

Detened ese tren agonizante
que nunca acaba de cruzar la noche.
Y se queda descalzo hasta el caballo,
y enarena los cascos y el aliento.

Miguel Hernández, El Hombre Acecha
(1937-1939)

sexta-feira, 18 de março de 2011

Poema da gare da Astapovo








Gare de Astapovo,
onde Tostoi se refugiou
para morrer
in

http://sobreorisco.blogspot.com/


O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se... e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

Mário Quintana

Leia sobre Tosltoi (F. em 20 de Novembro de 1910)
"Um escritor fora do tempo" o meu amigo Manuel Poppe in
http://sobreorisco.blogspot.com/2010_11_01_archive.html

quarta-feira, 16 de março de 2011

A estrada-de-ferro


Foto A.M.
Poesia sobre Carris,
sessão do Quarto Crescente da
Biblioteca Pública de
S. Paio de Oleiros
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A estrada-de-ferro tritura ilusões,
come planícies, bebe descampado
e leva dentro dos seus vagões
os homens e o gado.
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Um dia, sem discursos nem sermões,
tudo foi confiscado e leiloado,
descampado, planícies e vagões,
planícies e vagões e descampado.
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Tudo como laranjas ou limões
nas banquetas de um mercado.
Tudo para aumentar confusões,
tudo com nevoeiro misturado
- e quem comprou os vagões
comprou os homens e o gado.
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Sidónio Muralha, Poemas

terça-feira, 15 de março de 2011

O farnel

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Foto A.M.




No comboio que me levava para longe
fiz esforço para não chorar quando abri o farnel.
Fora feito no dia anterior
em casa, pela minha mãe.
Mastiguei a tristeza, mastiguei
a angústia, mastiguei a vida
mastigando os rissóis.


Daniel Maia-Pinto Rodrigues,
Dióspiro, V. N. Famalicão, Quasi Edições, 2007

Nevada


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in
luiscernuda.com


No Estado do Nevada
Os caminhos de ferro têm nomes de pássaro,
São de neve os campos
E de neve as horas.
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As noites transparentes
Abrem luzes sonhadas
Sobre as águas ou telhados puros
Constelados de festa.
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As lágrimas sorriem,
A tristeza é de asas,
E as asas, sabemos,
Dão amor inconstante.
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As árvores abraçam árvores,
Uma canção beija outra canção;
Pelos caminhos de ferro
Passa a dor e a alegria.
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Sempre há neve adormecida
Sobre outra neve, além no Nevada.
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Luis Cernuda, Um Rio, Um Amor, Os Prazeres Proibidos,
Coimbra, Ariadne Editora, 2003
(poeta e crítico literário andaluz)

segunda-feira, 14 de março de 2011

A meu favor














Foto A.M.




Os meses
menos quentes do ano
são aqueles
em que tenho o vento a meu favor.
Há um comboio
que desliza nos trilhos
pela paisagem plana da linha do sul
e eu exclamo: lá vai ele a meu favor.
Vão a meu favor também todas as aves
mesmo as mais novas já têm instruções
dos pais
ou das dominantes dos bandos
para seguir sempre a meu favor

Daniel Maia-Pinto Rodrigues,
Dióspiro, V. N. Famalicão, Quasi Edições, 2007

Pausa




















Estou aqui e triste
com um livro nas mãos
vazio e ausente
como num enterro.
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Gostaria de entrar
pela História dentro
pisar o passado
comprar o futuro.
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Gostaria de ter
tuas pernas comigo
dois olhos tranquilos
ao acordar tarde.
-
Ajudar a ceifar
o desespero frio
acreditar na fogueira
de todas as forcas.
-
Ouvir o comboio
chegar com a paz
morrer enrolado
num suspiro de alívio.
-
Egito Gonçalves, in
valter hugo mãe (sel. e org.), O Futuro em Anos-Luz, V. N. Famalicão, Quasi Edições, 2001

Como um grande borrão...











Foto A.M.



Como um grande borrão de fogo sujo
O sol posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum comboio longínquo.
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Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.

Também às vezes, à flor dos ribeiros,
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.

Alberto Caeiro

Esta é a terra do Texas Jack






in
marvel.wikia.com




Esta é a terra do Texas Jack.
Terra amarela, terra feia, terra dura,
A terra do Texas Jack....
Onde estão as Aventuras
do Grande Matador de Índios?
Já as rasguei, já as destruí.
Palmilhei mundos, voguei nos mares, cruzei os céus,
Até este deserto de erva ruim,
Termo da longa caminhada.

A amedrontar os Índios,
Brilha,
Na sombra,
A carabina do Texas Jack.
E a sua voz heróica é a única voz heróica,
E o seu vulto de legenda é o único vulto de legenda
Na vida sem legenda.

O comboio rasga o deserto de erva ruim,
Mas a lembrança queda naquele momento último
Em que, pela vez derradeira,
Ergui, num simulacro de heroísmo,
A carabina do Texas Jack.

Depois, na vida prática, não houve mais lugar para o heroísmo,
Nem para as leituras do Texas Jack.
E hoje que o busco neste deserto que o seu vulto habita,
Já não o encontro,
Porque ele já não está dentro de mim.

Joaquim Paço d'Arcos,
Poemas Imperfeitos, Edições SIT, 1952

(Texas, caminho do Novo México, Maio 52)

Ao passar por Espinho









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Foto A.M.
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As ruas nasciam
de dentro dos comboios
e seguiam
direitas ao mar.

Os olhos dos meninos
tornavam-se navios
e alongavam
todo o novelo do peito
até ao fim da linha azul
do longe.

As casas abriam as janelas
e sorriam
à limpeza do ar.

Mas isso era no tempo
em que os comboios cantavam
com sotaque lento
e pousavam
por vezes
nalgum ramo de pinheiro
enquanto o mundo descansava
de tão longa caminhada.

José Fanha

domingo, 13 de março de 2011

O comboio de serviço











1

Por ordem expressa do Führer,
o comboio de luxo expressamente feito para o congresso
do Partido em Nuremberg
recebeu o nome simples de COMBOIO DE SERVIÇO.
Os que o tomam prestam com isso um serviço
ao povo alemão.


2

O comboio de serviço
é uma obra-prima da técnica ferroviária. Os passageiros
têm apartamentos privativos. Pelas largas janelas
vêem os camponeses alemães mourejar pelos campos.
Se por acaso transpirassem nesse momento
poderiam tomar banho
em cabines cobertas de ladrilhos.
Um subtil sistema de luzes permite-lhes
ler à noite, de pé, sentados ou deitados, os jornais
com as grandes reportagens sobre os benefícios do regime.
Os vários apartamentos
comunicam entre si por linhas telefónicas
tal como as mesas dos grandes dancings cujos clientes
podem pedir às mulheres das mesas vizinhas
o preço que cobram.
Sem sair da cama os passageiros também podem
ligar o rádio, que transmite as grandes reportagens
sobre os erros dos outros regimes. Jantam,
se assim o desejarem, no respectivo apartamento, e fazem as
respectivas necessidades
em privadas privativas revestidas de mármore.
Cagam
na Alemanha.

Bertolt Brecht,
Poemas, Lisboa, Editorial Presença, s/d

Là-bas, je ne sais où...

Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa? Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.
Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstracta e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida –
“E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?” –

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se – dizem – que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...

Álvaro de Campos, in
Fernando Pessoa, Poesia dos Outros Eus, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007

A bênção da locomotiva







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A obra está completa. A máquina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas, antes de partir mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.

Como ela é com certeza o fruto de Caim,
A filha da razão, da independência humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,
E convertam-na à fé Católica Romana.

Devem nela existir diabólicos pecados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais
Saem da natureza, ímpios, excomungados,
Como saímos nós dos ventres maternais!

Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra,
Extraí a heresia ao aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d’Inglaterra,
E há-de ser com certeza um pouco protestante.

Para que o monstro corra em férvido galope,
Como um sonho febril, num doido turbilhão,
Além do maquinista é necessário o hissope,
E muita teologia... além de algum carvão.

Atirem-lhe uma hóstia à boca fumarenta,
Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
E lancem na caldeira um jorro d'água benta,
Que com água do céu talvez não possa andar.

Guerra Junqueiro,
A Velhice do Padre Eterno, Porto, Lello & Irmão Editores, 1967 [1886]

Castigo pró comboio malandro







Foto in
www.rna.ao/
radio luanda



passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem

o comboio malandro
passa

Nas janelas muita gente
ai bô viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender

hii hii hii
aquele vagon de grades tem bois
muú muú muú

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança
"Mulonde iá késsua uádibalé
uádibalé uádibalé..."
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
O fogo que sai no corpo dele
Vai no capim e queima
Vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho

Se na lavra do milho tem pacacas
Eu faço armadilhas no chão,
Se na lavra tem kiombos
Eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles
Mas se vai lá fogo do malandro
- Deixa!-
Ué ué ué
Te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Só fica fumo,
Muito fumo mesmo.

Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
E os brancos chamar os pretos pra empurrar
Eu vou
Mas não empurro
- Nem com chicote -
Finjo só que faço forca
Aka!

Comboio malandro
Você vai ver só o castigo
Vai dormir mesmo no meio do caminho.

António Jacinto
(Angola - 1924 - 1991)

Comboio africano







Agostinho Neto
Foto in
www.pluraleditores.co.ao



Um comboio
subindo de difícil vale africano
chia que chia
lento e caricato

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assentam os rails
e se esmagam sob o peso da máquina
e no barulho da terceira classe

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Lento caricato e cruel
o comboio africano…

Agostinho Neto
(Poeta, médico, 1º Presidente da República Popular de Angola)

À Poesia










Foto:
Miguel Carvalho


Vou de comboio…
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
- E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas…
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei o quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!
Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem querer acordar?

Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?

Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse…

Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
e coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir…

Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão;
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!

Miguel Torga, “Odes” in
Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2001

sábado, 12 de março de 2011

Comboio


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Foto A. M.
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-Aqui (movente ou parada?)
Vou contra a vida que foge
Nos campos que à desfilada
Vão ao invés do que corre.
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Que deus me ilude ou me mente?
Porquê na hora fugaz
Eu julgo que vou para a frente
Se tudo avança para trás?
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Acaso regressa o tempo
Ao que era antes do mal
Nas árvores que recuam
À floresta inicial?
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Natália Correia

Os comboios, à noite


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Foto A.M.
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-Cada vez que oiço um comboio à noite sinto que a vida não acaba. Passam por trás das casas, no fim do bairro, uma fitinha de janelas iluminadas, rápidas, que estremecem as árvores, estremecem as molduras na parede, me estremecem a mim, e a seguir as árvores, as molduras e eu a recompor-nos, e a seguir nada. Uma espécie de vento, talvez, antes de tudo quieto de novo. Na fitinha de janelas iluminadas nunca há pessoas: os comboios, à noite, não transportam ninguém, dirigem-se não sei para onde, não chegam nunca a parte alguma: viajam interminavelmente, sem destino, indiferentes aos apeadeiros vazios, com uma balança, um relógio e uma máquina automática de cigarros, por vezes cães enrolados entre os bancos desertos, por vezes um pedaço de jornal às cambalhotas nas plataformas onde nenhum passageiro espera: os comboios, à noite, viajam insones num mundo morto, com as insígnias dos pronto-a-vestir apagados e os olhos dos manequins ocos nas vitrinas, os dedos delicados, de pasta, imóveis numa linguagem de surdos-mudos que o escuro não entende: um pedido de socorro, um cumprimento, um aviso? (...)

António Lobo Antunes
in “Meu menino, ino, ino” - Visão, 18 de Agosto de 2005

Estação


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Foto A.M.
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Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

Mário Cesariny

Com uma mala na mão



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Foto A.M.

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-Viajar de comboio como na infância.
As árvores e os rios desfilam; nas casas,
por detrás das janelas fechadas, respiram em silêncio
homens e mulheres, crianças que nunca conheceremos.
Lá à frente, ao meio do corredor,
uma senhora de idade conta a um rapaz de bigode
histórias de netos e de filhos e da aldeia
de onde vem. Tão bem vestida. Velhice feliz.
E ele de nariz no ar, quase distraído.
Fala tão alto que durante alguns minutos
é como se fizéssemos nós também parte da família.
Uma rapariga loira lê, de vez em quando
olha pela janela. Atrás de mim
um tipo elegante, de fato cinzento, folheia uma revista.
Um dia nós todos e o comboio que nos leva
teremos chegado ao nosso destino: não haverá
regresso a preparar, mais malas a arrumar, preocupações
a ter com quem está à nossa espera.
Mas por enquanto viajamos, olhamos uns para os outros,
surpreendidos. Há pouco tempo ainda
nem sequer nos conhecíamos. E a rapariga loira
não podia suspeitar da nossa existência.
Se se pudesse entrar na vida das pessoas
que se encontram no comboio como se entra
pela carruagem com a mala pesada na mão.
O homem que acariciava a revista levanta-se,
vejo-o passar. Pede lume à rapariga loira.
Mas ela lê. Ele fixa-a com obsessão,
ia sentar-se no lugar vazio
ao lado dela. Depois hesita, agradece,
e volta ao seu lugar atrás de mim.
Acendo um cigarro eu também
e não posso impedir-me de sorrir.
O comboio avança rapidamente.
Planícies cobertas de neve surgem no meu olhar.
Árvores esguias limitam o horizonte como um muro.
Fumo o cigarro, leio um livro, olho para o tecto.
Depois admiro distraidamente as cores do outono
nas árvores e arbustos da floresta que acaba de passar.
Que velocidade. E que silêncio. Os comboios
modernos são tão confortáveis. Nem sequer
nos arrefecem os pés. Sem saber porquê
oiço-me dizer: meu deus, meu deus.
E dou-me conta, sem olhar,
do ruído que fazem as folhas do livro
que a rapariga loira continua a ler.

João Camilo,
A Mala dos Marx Brothers, Lisboa, Caminho, 1988

À espera de comboio





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Foto in
alfarrabio.di.uminho.pt


Eu esperava serenamente
por um comboio
numa paragem de autocarros
e só chegavam mesmo autocarros
nunca passava um comboio
e entretanto o dia morria
na linha do horizonte do mar
totalmente pintada de vermelho
como sangue esquecido no abismo

Uma senhora de idade perguntou-me
se queria um copo de água
depois de olhar bem para mim
e me aconselhar a procurar
uma estação de comboios
pois ali só paravam autocarros

Também um cavalheiro deu-me
um cigarro e eu não fumo e disse
que se quisesse podíamos conversar
sobre a história de estarmos à espera
numa paragem de autocarros
pela passagem de um comboio
e não de um autocarro qualquer

Eu sabia que o cavalheiro e a velhinha
só me queriam ajudar a olhar mais atentamente
para a realidade que me rodeava
porém não podia aceitar nenhuma
das suas educadas propostas
porque a minha realidade estava definida
e esperava por um comboio
numa paragem de autocarros
e ninguém tinha nada a ver com isso

Na verdade eu só decidira experimentar
a sensação de esperar por um comboio
numa ilha onde apenas existem autocarros
observando o crepúsculo
sem ter outras coisas para fazer

José António Gonçalves (Madeira, 1954 - 2005)
(inédito.06.09.04)

sexta-feira, 11 de março de 2011

No comboio descendente (2)



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O autor:
Foto de ANAAS




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No comboio descendente,
vinha toda a gente em pé,
uns pra dar lugar a um velho,
outros à mãe e ao bebé.
No comboio descendente
de Portimão a Loulé.

No comboio descendente,
vinham todos com ar raro,
uns a dizer: — É barato!
e os outros que era caro.
No comboio descendente
desde Loulé até Faro.

No comboio descendente,
lá voltou a reinação:
uns a tocar concertina,
outros tocando violão.
No comboio descendente
desde Faro até Olhão.

No comboio descendente,
ia muita gente gira,
uns dançando o corridinho,
outros a dançar o vira.
No comboio descendente
desde Olhão até Tavira.

No comboio descendente,
nunca se viu coisa assim:
uns a falar Português,
outros Grego, outros Latim.
No comboio descendente
Tavira - Castro Marim.

O comboio descendente
não chegou ao fim da linha.
Descarrilou, de repente,
por causa de uma galinha.
Por um triz, matava a gente
toda, toda que lá vinha.

Era o desastre total!...
Mas o maquinista, idóneo,
meteu pela Nacional.
No meio de um pandemónio,
foi ter a Vila Real,
por graça de Santo António.

Anthero Monteiro,
A Sara Sardapintada, Porto, Corpos Editora, 2004

No comboio descendente


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Foto: A.M.
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No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada.
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No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela
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No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão
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Fernando Pessoa

POESIA SOBRE CARRIS: novo tema


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Foto: A.M.
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Se tivéssemos dúvidas sobre o hipótese de considerar os comboios como um tema poético, bastaria reler a Ode Triunfal de Álvaro de Campos:
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Eia comboios, eia pontes, eia hotéis, à hora de jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia! (...)
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E até os grandes desastres de comboios são bem-vindos à máquina de escrever do poeta.
Mas há muito mais na poesia destes monstros de ferro, que começam já a desaparecer: há as esperas, as partidas e as chegadas, a aspiração de viajar e conhecer, as saudades que apressam o regresso, o relógio da gare, as paisagens que voam ao nosso encontro, as pontes e os túneis, a noite e o dia, as histórias que se ouvem, as personagens que se encontram na carruagem, aquele ritmo que nos embala os sonhos.
Vamos assim partir para mais uma aventura:
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POESIA SOBRE CARRIS.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Vem caçar gambozinos: poesia juvenil na Onda Poética









Na próxima quinta-feira, dia 10 de março, nova sessão da ONDA POÉTICA na Junta de Freguesia de Espinho, subordinada ao tema





VEM CAÇAR GAMBOZINOS

Vem caçar gambozinos
jovem d'olhar brilhante
e eterno coração
vem
sem nada trazer na mão
e esperes não
que eu t'empreste
meu alçapão
vem
e aprende à tua custa
que a vida não é senão
uma eterna caçada
aos gambozinos
esse animal feito de sonho
e ilusão
e que assim mesmo
vale a pena a perseguição

João Melo,
in org.Inês Pupo, 101 Poetas,
Lisboa, Editorial Caminho, 2007

terça-feira, 1 de março de 2011

Quartas Mal'Ditas: POESIA & CINEMA


Quarta-feira, 2 de março 2011
no Piano-Bar do
Clube Literário do Porto
Rua Nova da Alfândega
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a habitual sessão mensal das
QUARTAS MAL'DITAS
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Tema:
POESIA & CINEMA
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Leituras por:
Amílcar Mendes
Ana Almeida Santos
Anthero Monteiro
António Pinheiro
Cláudia Pinho
Diana Devezas
Luís Carvalho
Mário Vale Lima
Rafael Tormenta
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Convidada especial:
Cláudia de Sousa Dias
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Guião/Coordenação:
Anthero Monteiro
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Comparece, participa, divulga, por favor.