sexta-feira, 25 de março de 2011

No comboio de Florença a Roma














No comboio de Florença a Roma
Mil pessoas, mil destinos
Cada um olhando por sua janela
Ou lendo um livro
Cada qual pensando nos seus
Ou nas suas coisas que não estão ali
Mas alhures.
Ali cada um tem consigo tão só o essencial
O verdadeiramente essencial
O seu próprio corpo
Uma pequena bagagem
Quase aquilo com que a morte os recolherá um dia
Quase só aquilo que os acompanhará
Por toda a eternidade, um dia,
o corpo esse
alguma roupa que o cubra
o anel de noivado. Pouco mais.

No comboio de Florença a Roma
uma velha senhora lê o jornal
como quem lê a vida
passando as folhas das notícias lidas
e esperando que algo exista ainda que
a comova e incite nas folhas que restam
que já vão sendo poucas
ante as folhas passadas
folhas soltas também de Florença a Roma
esquecidas, desperdiçadas, avidamente lidas
distantes já.

Uma casa antiga lá fora
no comboio de Florença a Roma
Janelas trífores e derredor ciprestes
os campos que a luz da lua visitará mais tarde.
Alguém fuma entre carruagens.
Alguém atende o telefone e fala
numa conversa para algures
Ciao cara, nos veidiemi. Augiri.
Outeiros, rios, fios, aves
um castelo velho
choupos debruçados sobre a água
à sombra das ameias destruídas
a torre em ruínas assaltada pela hera.

No comboio de Florença a Roma
Cada destino uma partida
e talvez, quem sabe, uma chegada também
de todos os mais ignorada
Uma vida cada vida, das outras gémea
das outras desconhecida
E apesar disso sentados vão lado a lado
mil destinos
frente a frente mil pessoas
almas passageiras de cidade a cidade
olhando-me e olhando-as eu a elas
cada de nós vendo os outros como eles são
e a si próprio como pensa ser ou gostaria de ser
não como é na verdade e os outros o vêem
ilusões vãs como a paisagem vã escorrendo o vidro.

No comboio de Florença a Roma
longa vai a hora sobre os trilhos
e o silêncio de encontro à chuva
Deixemos que o sono nos vença e nos convoque
Deixemo-lo que se alongue sobre nós
como a tarde cai
e que nos dê sombra e paz, como a primavera
que nos embale no doce contorno das colinas
lá fora
à velocidade das casas
à velocidade das árvores
à velocidade do sonho
No comboio de Florença a Roma.

Fernando Cabrita, in
Revista de Poesía Aullido 15

(Advogado, n. Olhão, 1954)