sábado, 22 de agosto de 2015
O poeta vai ao médico
então de que se queixa?
o poeta pede licença para
ler-lhe um poema
o clínico encrespa um
tudo-nada as feições
mas condescende sou todo
ouvidos
como não foi treinado para
ser todo ouvidos
espera impaciente
que o fim chegue depressa
e o poema era curto afinal
só isso? pergunta
sim doutor é só isto o que
sinto
mas nunca conseguiria
dizer-lho de outra forma
o doutor gatafunha umas
linhas
num papel timbrado
pronto pode levar este meu
à farmácia
mas doutor não percebo uma
não se preocupe
eles lá foram treinados
para ler qualquer rabisco
Anthero Monteiro
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quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Servir
passou a
vida ao serviço dos demais
do próximo
ou do distante
do indivíduo
ou da multidão
de quem
tinha pouco ou muito mais do que ele
o seu lema
era servir sem ver a quem
quanto a
servir-se
servia-se
apenas à mesa
o suficiente
para manter o vigor
e poder
continuar a servir os outros
também se
servia de algum descanso
pelos mesmos
motivos
servia-se
ainda do sol e da chuva
das amoras
nos valados
dos trilhos
dos bosques e das mo ntanhas
dos
miradouros para o indizível
da secreta
companhia das estrelas
de tudo
quanto é naturalmente de todos
um dia de
repente deixou de servir
e como nem
sequer conseguia mexer-se
recebeu a
recompensa que nunca reivindicara:
ficou ali
mesmo transformado
em estátua
jacente
Anthero
Monteiro
Primeiro encontro
Foto: A.M.
ribeiro
nunca tinha visto o mar
viera do
interior nortenho
com os olhos
apenas acostumados
às corcovas
das montanhas
e à
infinitude das noites estreladas
vasconcelos
esse conhecia bem o oceano
atravessara-o
desde a sua ilha
para ser
também nosso condiscípulo
de internato
quase todos
chegaram do litoral
e os outros eram
amiúde atraídos
pela linha
líquida do horizonte
numas férias
acampámos todos
perto da foz
de um rio modesto
nas dunas
que antecedem o areal
aplanado
pelas ondas
bastava
subir a encosta
e logo
teríamos aquela aparição
de plenitude
e incomensurável
o momento
mais esperado seria assistir
ao primeiro
encontro entre ribeiro e o mar
todos
esperavam o olhar de espanto do colega
uma centelha
de deslumbramento
uma
interjeição de assombro
perante o
inefável
mas ribeiro
era uma água quase parada
e continuava
sem pressas a colocar os prumos
a bater as
estacas a prender a lona
como quem antegosta
o melhor do prato
deixando-o
para o fim
a
impaciência desaguou no desânimo
do lado de
lá da duna seguia-se uma planura
de areia e
uma bola começou por ali a rolar
sob o
impulso dos nossos pés descalços
só muito
depois ribeiro subiu o declive
e silente
discreto vagaroso
como quem se
acerca de um leão
e humilde
como arroio que vai ter com o oceano
foi descendo
até à areia mais húmida
foi
Vasconcelos na baliza quem deu o sinal
o jogo
coagulou ali por minutos
e todos
quiseram assistir
àquele
primeiro encontro
o moço ali
parado e reverente
enchendo os
olhos de infinito
até que uma
onda mais afoita e mais humilde
veio
beijar-lhe os pés
ele
baixou-se e estendeu-lhe as mãos
num
cumprimento que era já um abraço
depois
desatou a correr
deitou-nos a
língua de fora
e veio
integrar o jogo logo reatado
Anthero Monteiro
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