terça-feira, 23 de março de 2021

LA BELLE SAISON

 

Place de la Concorde

À jeun perdue glacèe
Toute seule sans un sou
Une fille de seize ans
Immobile debout
Place de la
Concorde
À midi le
Quinze
Août

Jacques Prévert


VERÃO

Em jejum perdida gelada
sozinha sem um pataco
Idade dezasseis anos
De pé com ar estupefacto
Praça da Concórdia
Quinze de
Agosto
Meio-dia
Exato.

Jacques Prévert
Tradução de Anthero Monteiro



sexta-feira, 12 de março de 2021

O relojoeiro

 














Álvaro & Anthero
nas Quartas Mal Ditas do
Clube Literário do Porto (2008)
Foto Anthero Monteiro

(para Álvaro Pinto da Silva)

quando visito o meu amigo álvaro
ele vem abrir-me a porta e um sorriso
retira a lupa que traz assestada num dos olhos
para ver as tripas dos maquinismos
e guia-me através do seu privativo
labirinto do tempo

ali surgem em profusão e confusão
carrilhões colunas torres e pedestais
quadrantes coroas pontes e básculas
pêndulos e pesos aros e rodas e engrenagens
ponteiros e molas e cabelos metálicos
chaves de corda e parafusos minúsculos
cronómetros engenhos relógios
de muitas idades estilos e formatos

não não é dono do tempo mas todas aquelas
vitrinas e armários e gavetas cheias
de preciosas velharias e novidades
são propriedade sua

somos amigos desde velhos tempos
e eu um quase centenário admirador
do seu génio inventivo ele um cirurgião
tantas vezes convocado para acorrer
às taquicardias e bradicardias
das engrenagens das mais altas torres
que comandam momento a momento
a vida das grandes cidades

e é um grande privilégio passar
meia hora ali no reino de cronos
e do meu amigo álvaro
que mesmo não sendo dono do tempo
dá-me sempre sem eu lhe pedir
uns largos minutos grátis de atenção

Anthero Monteiro
(2008)

quarta-feira, 10 de março de 2021

Ressonância magnética

 












entras num túnel

uma caverna toda polida

e deitas-te como se fosse 

o teu caixão

 

melhor fechar os olhos

para tentar adormecer

meia hora ou a eternidade

tanto faz

 

mas não adormeces ainda

mesmo com os ouvidos tamponados

escutas martelar freneticamente

como se fosse na tampa do teu ataúde

 

deixa-te estar sossegado

e parado no espaço e no tempo

há sempre montanhas de assuntos para aprender

e tu estás a treinar

para saber estar quieto

ad aeternum

 

quinhentos anos depois

de te fecharem à chave

se algum dia te encontrarem

verão como foste um aluno distinto

assim deitado de costas

sôfrego de infinito

mas sem nunca teres mudado

de posição

 

27/11/2020

Anthero Monteiro


sexta-feira, 22 de novembro de 2019

ECLIPSE TOTAL




era quase meio-dia e a professora
mandou-nos embora que fôssemos
depressa para casa porque dentro
de meia hora iria ficar noite cerrada

mas no caminho para casa ficava o nosso
habitual estádio um longo carreiro
de quatro metros de largo
nem tanto entre dois pinhais

algum receio tomara conta do coraçãozito
de cada rapaz o sol começara a empalidecer
ia decerto desmaiar de chofre por completo
mas uma pequena bola de trapos começou
a rolar na congosta e aos pontapés
volvidos breves minutos já o medo fora
fintado uma centena de vezes

a bola já passara repetidamente
os marcos de pedra 
já se gritara e repetira golo
e como sempre o sentido de jogo
de cada equipa mudava aos cinco
para tudo terminar aos dez

a noite prometida ficara por um vago
crepúsculo o sol desmaiado voltara
a si lentamente não fora o fim do mundo
apenas um delíquio de alguns minutos

na aula seguinte explicou-nos a professora
que a lua se colocara de permeio entre a terra
e o sol mas houve quem acreditasse
que fora um astro diminuto a que chamávamos bola
que nos eclipsara o medo a lua a terra o sol
e o próprio eclipse

Anthero Monteiro
21 nov. 2019

Anthero Monteiro, 21 novembro 2019

sábado, 11 de maio de 2019

O botão













Eu sou rico, tenho tudo,
dizia o senhor Pimpão.
Olhe que não, olhe que não,
responde assim um miúdo,
falta-lhe um botão
no sobretudo
e com esta chuva tamanha
e esta manhã tão fria,
ainda apanha
uma pneumonia.

14/05/2019

Anthero Monteiro

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Poesia ao natural




















escoou-se a manhã

do alto da eternidade
o sol riu-se de mim que meço o tempo
fez murchar as horas
e não floriu em mim um só poema

entretanto
mal o sol rompera
desabrolhou uma corola
no vaso da varanda
sub-reptícias mais outra
e outra
e outra

e muito antes da primeira meia-hora
já a flor tinha escrito um poema
inimitável

Anthero Monteiro
(inédito)

De mãos atadas















De mãos atadas             a liberdade
De mãos atadas             meu riso aberto
De mãos atadas             é que se evade
De mãos atadas             meu voo certo

De mãos atadas             rebento a grade
De mãos atadas             encho o deserto
De mãos atadas             não tenho idade
De mãos atadas             tenho o céu perto

De mãos atadas             mas que ironia
De mãos atadas             temores são vãos
De mãos atadas             é a harmonia

De mãos atadas             somos irmãos
De mãos atadas             aleluia

De mãos atadas             nas tuas mãos

Anthero Monteiro,
Canto de Encantos e Desencantos
Porto, Corpos Editora, 2.ª edição