domingo, 2 de agosto de 2009

A ressurreição de Lázaro







Van Gogh,
A Ressurreição
de Lázaro






Lázaro bem ouviu as palavras do fazedor de prodígios
ainda que lhe parecessem longínquas
deixou-se ficar de olhos bem apertados
para escapar às lanças agudas da luz
que maçada voltar à vida – pensou devagarinho
para ninguém suspeitar que pensava
nunca dormira um sono tão reparador
num leito macio de esquecimento e outras nuvens

os circunstantes gastaram-lhe o nome
insistiram com ele dobraram-lhe o corpo
sentaram-no no leito ergueram-no
e ampararam-no de pé no meio da sala
foi quando estrugiram as palmas
que foi abrindo dolorosamente os olhos perros
como portões enferrujados de há séculos
por fim levaram-no para a mesa e esvaziaram os copos
enquanto o enchiam de perguntas ininteligíveis
toda a família já trocara de roupa e dançava garridamente

pela madrugada adormeceram sobre o próprio vómito
e Lázaro levou a sua náusea para o quintal

quando o nó das trevas se desfez
o sol foi encontrá-lo enforcado num dos ramos da figueira

a essa hora já o fazedor de prodígios
estava na cidade mais próxima
a abrir os olhos dos cegos
para a vida insuportável

Porto, 9 de Novembro de 2005

Anthero Monteiro, Evangelho Segundo (inédito)
Este poema foi, no entanto, publicado pelo poeta Fernando Morais, no seu belo livro de poesia Quadrar (Apontamentos do Quotidiano), ed. do autor, 2007, num conjunto de páginas dedicadas aos seus amigos, entre os quais, ainda que imerecidamente, fui incluído.