Camilo,
segundo selo
dos CTT
comemorativo
do nascimento
do escritor
(1925).
Havia na botica um relógio de parede, nacional, datado de 1781, feito de grandes toros de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando subiam, rangiam o estridor de um picar de amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda como quem tira um balde da cisterna. Por debaixo da triplicada cornija do mostrador havia uma medalha com uma dama cor de laranja, vestida de vermelhão, decotada, com uma romeira e uma pescoceira, crassa e grossa de vaca barrosã, penteada à Pompadour, com uma réstia de pedras brancas a enastrar-lhe as tranças. Cada olho era maior que a boca, de um vermelho de ginja. Ela tinha a mão esquerda escorrida no regaço, com os dedos engelhados e aduncos como um pé de perua morta; o braço direito estava no ar, hirto, com um ramalho de flores que parecia uma vassoura de hidrângeas. Este relógio badalara três horas, que soaram ríspidas como as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da Hécate de Shakespeare.
Camilo Castelo Banco, Eusébio Macário,
Porto, Lello & Irmão Editores, s/d
Consta que o relógio que existia no gabinete de trabalho do escritor (cf. imagem) e que ainda hoje se pode apreciar na Casa de S. Miguel de Seide ter-lhe-á servido de modelo para a elaboração deste texto.