terça-feira, 6 de julho de 2010

O pecado muitíssimo original






(Desta vez um texto em prosa, para variar:)








Nos princípios do princípio de Tudo, Deus criou, entre muitas outras árvores, a árvore da ciência do bem e do mal e deixou-a frutificar no jardim do Éden.

E Deus contemplou a sua obra e viu que a árvore da ciência do bem e do mal era boa: dava maçãs golden, variedade americana, em homenagem aos crentes que costumam cantar fervorosamente God save America.

O Senhor Deus provou aquele fruto e achou que era bom. Logo ficou ciente de todo o bem e de todo o mal e aprendeu latim num minuto, que é uma fracção diminuta de eternidade. Por isso chamou à maçã pirus malum, que parece querer dizer mais ou menos isto: de mal a pior.

Como o único emprego de Adão era passar filmes pornográficos no cinema Éden, filmes que afinal só ele via, o Senhor Deus encheu-se de compaixão e convidou-o a cultivar e a guardar o jardim (não se sabe bem de quem, como é evidente). Devia, além do mais, preparar-lhe a sidra com os melhores frutos daquela macieira.
Adão tinha assim o sustento garantido, pois podia comer do fruto de qualquer das árvores do jardim, exceptuando da árvore da ciência. Deus dissera “no dia em que dele comeres, morrerás”, pelo que Adão ficou convicto de que seria enforcado no ramo mais alto da macieira.

Adão encheu-se de tristeza por causa do fruto proibido e da ganância divina que exigia para si todos os frutos e toda a ciência. E Deus quis compensá-lo. No outro dia ao acordar, Adão, que sonhara ter sido vítima de um transplante de medula óssea, deparou com um belíssimo presente: uma mulher.

Deus contemplou a sua obra e achou que era assim-assim: ele nunca gostou de mulheres, caso contrário teria criado Eva em primeiro lugar. Outra hipótese é que, afinal, não era um ser tão perfeito quanto isso, capaz de fazer coisas perfeitas, e quis treinar com o homem. Adão, esse apreciou bastante a obra do criador, tanto mais que estava nua, embora não apreciasse lá muito as tatuagens que ela tinha à volta do umbigo e os piercings que usava no bico dos seios.

Mas Deus, que passava o tempo a criar coisas, para dizer, ao contemplá-las, que todas eram boas, criou também o bicho da maçã e transformou-o em serpente ou cobra.
E contemplando a sua cobra achou que era boa para rastejar e enganar qualquer um com a sua astúcia.

Foi o que a serpente logo tentou fazer:

- Eva! Eva! Leva uma maçã!

- Obrigada, mas não me maces com a maçã, que é proibido colher.

- Quem disse tal coisa?

- Adão já me advertiu de que o Inventor de Maçãs não o permite. É pecado!

- Esse é um pecado muitíssimo original... Mas o Senhor Deus não proibiu que apanhassem as maçãs do chão, pois não? Devo dizer-te que esta fruta é extremamente depurativa, combate a disenteria, a dispepsia, a colite, os cálculos da vesícula, a gota, o reumatismo, a ciática, a eczema e proporciona um sono tranquilo e reparador.

- Onde aprendeste isso tudo? Estudaste medicina?

- Não sabes que, quando não estou aqui no Éden, passo o tempo à porta das farmácias e ouço todas as conversas? Até sei que há um ditado americano que diz “An apple a day keeps the doctor away”. E Deus não vai querer que a sua obra adoeça.

Eva, convencida, e vendo que o dono do jardim tinha adormecido profundamente, exausto de tanta criação e bêbado de sidra, apanhou uma das maçãs caídas da árvore da ciência e logo lhe tirou uma trinca.

Olhou o que sobejava e descobriu, naquele relance, a maçã digital da Macintosh.

Chamou o companheiro e deu-lhe a provar o fruto proibido. Adão provou:

- Não gosto de maçãs como essas. Prefiro camoesas – disse.

- Pois eu ainda assim gosto mais das reinetas. São óptimas para fazer tarte. Só é pena Vovó Donalda ter ido definitivamente para Patópolis. Ela é que sabia fazer tartes de maçã. Nem entendo muito bem por que razão foi despedida.

Adão cuspiu a maçã mastigada no caixote do lixo, por causa de um letreiro que dizia:
“Mantenha limpo o paraíso. Para isso é que ele foi criado.”

Aliás, o jardim ostentava letreiros por todos os cantos:

Proibido colher flores! Proibido calcar a relva! Proibido foguear! Proibido fazer piqueniques! Proibido colar cartazes! Proibido dormir nos bancos! Sentido proibido! Proibido caçar! Proibido pescar! Proibido pecar! Proibido fazer amor! O amor já está feito! Deus é Amor!

E, para prová-lo, Deus acordou naquele instante com uma ressaca dos diabos.

- Diabos me levem! – trovejou ele de cima de uma nuvem negra não prevista pelo Boletim Meteorológico e que ele fez num ápice com o fumo do seu cachimbo – Diabos me levem se não falta ali uma maçã!

- Forreta! – pensou Adão – Queres ver que ele andou a contar as maçãs. Até as que caíram ao chão!

- E eu que julgava que ele era um gajo porreiro! – pensou Eva.

- Acho que vou castigá-los com um dilúvio! – pensou Deus, mas logo se arrependeu. Ia agora gastar 50 ou 60 barragens só para afogar duas pessoas... Deixa juntar mais algumas e depois veremos como é, ou no é!

E o Senhor Deus decidiu amuar durante quarenta dias e quarenta noites. Foi assim que nasceu a Quaresma.

Anthero Monteiro
in Maçãs com Bicho (inédito)