quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A noite


Ave do céu, a noite abriu as asas
e a sombra adormeceu os sons e as cores.
Um manto negro-azul vestiu a tarde,
evola-se em perfume a alma das flores.
Penteia a Lua os pálidos cabelos,
em madeixas, em fios de luar.
Agora toda a música é silêncio,
silêncio grave, sonho a flutuar.
Pulsa em surdina o coração do vento,
embalando em cadência, a folha, o ninho.
Flor-de-lótus no lago adormecido,
o cisne fecha as pétalas de arminho.
Na terra viva de milhões de vidas,
as sementes palpitam e as raízes:
rasgam-lhe a pele ardente as mãos dos homens,
tapam-lhe as mãos da chuva as cicatrizes.
Um frémito perpassa, o vento acorda,
a chuva cai, a noite fecha as asas…
Estrela a estrela, apagam-se as estrelas,
a manhã, casa a casa, acende as casas.
A cor e os sons despertam; canta a fonte
um canto de água, balbuciante e vago.
Surgem da noite os sete véus da aurora,
desfolha-se o arco-íris sobre o lago.

Fernanda de Castro, 70 Anos de Poesia,
Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1989
Foto retirada, com a devida vénia, do blogue de seu filho António Quadros,
fernanda-decastro.blogspot.com,
onde se encontra toda a informação fidedigna sobre a escritora.
Na foto podem ver-se Natália Correia e Ary dos Santos, de quem era amiga, como era, aliás, de José Gomes Ferreira, Almada Negreiros e Drummond. Ary considerou África Raiz de Fernanda de Castro «o poema do século».
«Numa geração e num país que de mulheres quase só conheceu vítimas domésticas, Fernanda de Castro foi uma das poucas personalidades femininas que seguiram em frente.»
(Luísa Schmidt, «Uma mulher de poder» in Expresso, 24/12/94.)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

A ave sobre a cidade

Era noite fechada
na cidade insone,
saí para as ruas,
não sei que buscava:
Achei uma ave!
Achei uma ave!

A noite era dia,
a noite era dia
para quem tinha
achado uma ave.
Ofegante corria,
deslumbrado corria,
a todos mostrava
a admirável ave
que na mão levava.

Mostrava-a feliz
aos vagabundos
e às prostitutas,
às criancinhas
e aos desgraçados
e todos corriam
a meu lado vinham
e todos levávamos
a ave sonhada:
Olhai esta ave!
Olhai esta ave!

Vinham os jovens
e as moças em flor,
a ave pousava-lhes
no bico dos seios;
vinham os poetas
e os operários,
vinham os soldados,
vinham os sábios
e as costureiras:
Esta ave é nossa!
Esta ave é nossa!

A noite era dia
e, cheias as ruas,
éramos um rio
de risos, de lágrimas
de ansiedade;
levávamos o sonho
há muito sonhado,
levávamos a ve:
Onde outra igual?
Onde outra idgual?

Foi quando vieram
os que não querem
nem flores nem aves
assim admiráveis;
de armas nas mãos
traziam o fogo
dos vivos infernos:
Largai essa ave!
Largai essa ave!

Então corri para eles
com a ave na mão,
olhei-os nos olhos
com a ave na mão
e a ave cantava
sem corpo nos galhos
do meu ser violado;
a ave voava
sobre a cidade:
Esta ave não morre!
Esta ave não morre!

Papiniano Carlos, A Ave sobre a Cidade,
Porto, Livraria Paisagem, 1973

Nasceu em Lourenço Marques (Maputo) - Moçambique, em Novembro de 1918. Vai, por isso, fazer no próximo mês 90 anos. Esteve em Abril passado nas Quartas Mal Ditas do Clube Literário do Porto, onde, homenageando o anti-fascista, foram lidos este e outros poemas de pendor neo-realista. Recorde-se o que, um dia, lhe disse numa mensagem Óscar Lopes: «...há muitos anos que sei de cor aquele poema da "Ave sobre a cidade", que ainda hoje é actual e que para mim próprio repito, cada vez mais convicto, através de todas as mudanças: Esta ave não morre! Esta ave não morre!...
É muito conhecido enquanto autor de livros infantis, sobretudo de A Menina Gotinha de Água e A Viagem de Alexandra, mas é também o autor do extraordinário poema Canto Fraternal, comemorativo da derrota do fascismo na Europa em 8 de Maio de 1945.

Eterna esperança


Era aos vinte anos, loira e fina... e amou!

Todos os dias, todos, à noitinha,

Um moço esbelto, de olhos negros, vinha

Falar-lhe como ninguém mais falou.


Mas uma noite, a palpitar, notou

Que ele mais negros os seus olhos tinha:

Ai! que negrume lhe toldou a alminha!

E o moço lindo nunca mais voltou!


Tem setenta anos! Pobrezinha e triste

Rezando e lendo, a acarinhar insiste

A falsa esp´rança que enganada a tem;


E cada noite, pensativa e absorta,

À serva diz, que vai fechar a porta:

- Não feches que ainda pode vir alguém.


Eugénio de Castro, Descendo a Encosta, (1924)

Foto in http://www.passeiweb.com/.

Coimbra, 1869 /1944. Introdutor do Simbolismo em Portugal. Oaristos (1890) é a sua obra decisiva. Miguel de Unamuno considerou Constança (1900) "a sua obra mais profundamente portuguesa".

Toada para as mães acalentarem os filhos


Ó Desgraça! Vai-te embora,
Que esta linda criancinha
Andou no meu ventre e agora
Trago-a nos braços. É minha!…

Do berço, segue-me os passos;
Onde eu vou, seus olhos vão…
E quando a aperto nos braços
- Abraço o meu coração.

Quando o seu choro receio,
Embalo-a, faço que aceite
A alegria do meu seio
Na brancura do meu leite…

E quando assim não descansa,
Que tristezas me consomem!
- Mas antes chore em criança
Que depois, quando for homem…

Se ao dá-lo ao mundo sofri
Tormentos, ânsias mortais,
Desgraça, vai-te de aqui,
O que pretendes tu mais!?

Bate as asas, mas ao voares
Não me apagues esta estrela.
Se alguém de aqui precisares,
- Aqui me tens, em vez dela.

Tocam às ave-marias.
Foi-se o sol. Não vem a lua.
Luzinha que me alumias,
Que sorte será a tua?…

Riquezas tenhas tão grandes,
E tal bondade também,
Que ao redor donde tu andes
Não fique pobre ninguém.

Que a todos chegue a ventura:
Toda a boca tenha pão,
Toda a nudez cobertura,
Toda a dor, consolação…

Mas se o oiro é mau caminho,
- Antes tu venhas a ser
O pobre mais pobrezinho
De quantos pobres houver.

Iremos por esses montes
Altos e azuis como os céus…
Que onde há frutos e onde há fontes,
Está a mesa de Deus!

E, quando a neve cair
E as seivas adormecerem,
Iremos então pedir…
(Aceitar o que nos derem!)

Andaremos à mercê
Dos génios bons e dos falsos,
Léguas e léguas a pé,
Rotinhos, magros, descalços…

E onde houver urzes e tojos,
Pedras que rasgam a pele,
Porei o corpo de rojos
- Passarás por cima dele!

Dorme, dorme, meu menino,
Foi-se o sol. Nasceu a lua.
Qual será o teu destino?
Que sorte será a tua?…

Se um crime tens de fazer,
Antes fique vago um trono,
Antes um palácio a arder,
Do que uma enxada sem dono…

Se, porém, no teu destino,
Há tão cruentos sinais,
Dorme, dorme, meu menino,
- Não tornes a acordar mais!…

Augusto Gil, Luar de Janeiro,
Sintra, Edições Mnuscrito, 1984
Lordelo do Ouro, 1873 / Lisboa, 1929. Alguns consideram-no um poeta menor e, de facto, Eugénio de Andrade não o incluiu na sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, nem sequer na sua selecção de Poemas Portugueses para a Juventude. Mas, tirando João de Deus, algum outro poeta escreveu poesia com tanta naturalidade e simplicidade como ele? Além disso, poucos poemas da nossa literatura, exceptuando talvez o "Cântico Negro" de José Régio, obtiveram mais popularidade do que a sua "Balada da Neve".

O mundo do menino impossível

Fim da tarde, boquinha da noite
com as primeiras estrelas
e os derradeiros sinos.

Entre as estrelas e lá detrás da igreja,
surge a lua cheia
para chorar com os poetas.

E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:
o sol e os meninos.

Mas ainda vela
o menino impossível
aí do lado
enquanto todas as crianças mansas
dormem
acalentadas
por Mãe-negra Noite.
O menino impossível
que destruiu
os brinquedos perfeitos
que os vovós lhe deram:

o urso de Nürnberg,
o velho barbado jugoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpés,
o carrinho português
feito de folha-de-flandres,
a caixa de música checoslovaca,
o polichinelo italiano
made in England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos Aires
moviendo la cola y la cabeza.

O menino impossível
que destruiu até
os soldados de chumbo de Moscou
e furou os olhos de um Papá Noel,
brinca com sabugos de milho,
caixas vazias,
tacos de pau,
pedrinhas brancas do rio...

“Faz de conta que os sabugos
são bois...”
“Faz de conta...”
“Faz de conta...”

E os sabugos de milho
mugem como bois de verdade...

e os tacos que deveriam ser
soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...

E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas mansas
longe das mães
presas nos currais de papelão!

É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!

A mamãe cochila.
O papai cabeceia.
O relógio badala.

E vem descendo
uma noite encantada
da lâmpada que expira
lentamente
na parede da sala...

O menino poisa a testa
e sonha dentro da noite quieta
da lâmpada apagada
com o mundo maravilhoso
que ele tirou do nada...

Xô! Xô! Pavão!
Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
Seu soninho sossegado!

Jorge de Lima, Obra Completa – Vol. I,
Rio de Janeiro, Editora José Aguilar Ltda, 1959, 1.ª ed.

N. em União dos Palmares - Brasil, 1893. F. no Rio de Janeiro, 1953.
Poeta essencialmente, mas também contista, romancista, dramaturgo, ensaísta, pintor.
Um dos escritores brasileiros mais representativos da linha experimentalista do Modernismo e do vanguardismo estético.

A noite-viúva

Uma pequena angústia sentida nos joelhos
Como o bater do próprio coração
E é a noite que chega
Não a noite-diamante
Mas a noite-viúva a noite
Sete vezes mais impura do que eu
Em passo obsceno em obscena força
Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome
Noite de amor que de longe me defendes
Escrevo o teu nome contra a noite obscena
Que a meu lado espera seduzir-me
Levar-me consigo
À porca solidão onde trabalho
À insónia sem margens ao vinho solitário
Duma pequena angústia
Escrevo todos os teus nomes
Puxo-os para mim tapo-me com eles
Na noite da surpresa
Noite feroz da surpresa
Noite do amor atacado de perto e conseguido
Alto e convulsivo
Noite dos amantes deslumbrados
Iluminados pelo demónio mais puro
Noite como uma punhalada ritual no invisível
Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra
Esta noite este murmúrio esta invenção atroz
A que chamam o dia-a-dia
Estas quatro minúsculas patas
Venenosas da angústia

Escrevo o teu nome cruel
Puro e definitivo.

Alexandre O'Neill, Tomai lá do O'Neill!,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1986


Em 1962, O'Neill respondeu ao Questionário de Proust, no Jornal de Letras e Artes (17/01). Algumas das perguntas / algumas das respostas:

Qual é para si o cúmulo da miséria moral?
A exploração do homem pelo homem.

Quais as heroínas masi admiradas da vida real?
As mondadeiras.

Que capacidade mais aprecia no homem?
A capacidade de se sacrificar por uma causa justa.

Qual a sua ocupação favorita?
A conversa amena.

Qual a maior das desgraças?
A trabalheira de Sísifo.

Que cor prefere?
O azul marinho.

A flor de que mais gosta?
A rosa.

O pássaro que lhe merece mais simpatia?
O pardal. Mas há um que tem um nome lindo: o abelharuco.

In A Phala n.º 88 - Set 2001
Foto: um abelharuco para O'Neill (da Wikipédia)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Promoção do livro, da leitura (de mim próprio?)

Alguns dirão que me promovo e não deixa de ser verdade: todos os dias me sinto um pouco mais sábio, ainda que mais esquecido (e de mim também).
Na passada quinta-feira, eu estava lá, como estive dezenas de dias da minha vida, também junto dos mais pequeninos (estes têm dois/três anos), a promover o livro e a leitura e, certamente, a promovê-los também. É ao pé deles que eu me sinto mais promovido.
Li-lhes pequenos contos, conversei com eles, mostrei-lhes os cantos da Biblioteca da minha terra, à frente da qual me promovo há cerca de trinta anos, sem, contudo, receber um cêntimo por isso. Isso é que seria despromover-me.
E vivam os livros e a biblioteca e a leitura e a poesia, que também lhes leio! E vivam as crianças! E viva eu mais um tempito, enquanto espero que alguém queira substituir-me...
(Um obrigado à Rosa Dias que ali esteve comigo, certamente a promover-se também...)

Vilegiatura

O sossego da noite, na vilegiatura no alto;
O sossego, que mais aprofunda
O ladrar esparso dos cães de guarda na noite;
O silêncio, que mais se acentua,
Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro ... Ah, a opressão de tudo isto!
Oprime como ser feliz!
Que vida idílica, se fosse outra pessoa que a tivesse
Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada
Sob o céu sardento de estrelas,
Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo!

Vim para aqui repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa,
Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,
A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.

Sempre esta inquietação mordida aos bocados
Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo.
Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos
Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta.
Sempre, sempre, sempre
Este defeito da circulação na própria alma,
Esta lipotimia das sensações,
Isto...
(Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o dedal de uma outra.
Cismavas, olhando-me, como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter em que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo.
Olhaste conscientemente para mim, e disseste:
"Tenho pena que todos os dias não sejam assim" —
Assim, como aquele dia que não fora nada...
Ah, não sabias,
Felizmente não sabias,
Que a pena é todos os dias serem assim, assim:
Que o mal é que, feliz ou infeliz,
A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,
Consciente ou inconscientemente,
Pensando ou por pensar
Que a pena é essa...
Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas,
Molemente estendidas.
Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.
Que será feito de ti?
Sei que, no formidável algures da vida,
Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz.
Por que o não haverias de ser?

Só por maldade...
Sim, seria injusto...
Injusto?

(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo.)

............................................................................

A vida...
Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.

Álvaro de Campos, in Fernando Pessoa, Poesia dos Outros Eus,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2007

O teu rosto...

O teu rosto

é como a noite

que envolve

o cair do dia...

fecha todos os jardins

e abre a minha fantasia.


Vasco de Lima Couto, Desenhos / Poemas de Viagem,
Constância, edição - Casa Museu Vasco de Lima Couto, s/d
Ver biografia do autor aqui.

Nocturno entre insectos

Corpo de pedra, corpo triste
Entre lãs com muros de universo,
Idêntico às raças quando fazem anos,
Aos mais inocentes edifícios,
Às mais poderosas cataratas,
Brancas como a noite, como a montanha
Despedaça formas enlouquecidas,
Despedaça dores como dedos,
Alegrias como unhas.


Não saber onde ir, onde voltar
Procurando os ventos piedosos
Que destroem as rugas do mundo,
Que bendizem os desejos cortados de raiz
Antes de dar a sua flor,
Sua flor grande como uma criança.

Os lábios querem essa flor
Cujo punho, beijado pela noite,
Abre as portas do esquecimento lábio a lábio.

Luís Cernuda, Um Rio, um Amor / Os Prazeres Proibidos,
Coimbra, Ariadne Editora, 2003
Fotos de http://www.literaturas.com/

Um dos maiores poetas espanhóis do século XX. Nasceu em Sevilha em 1902. Licenciado em Direito. Leitor de Espanhol na Inglaterra. Professor de Literatura Espanhola nos Estados Unidos e no México, onde morre em 1963.

A noite abre meus olhos


Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado
-
Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes
-
A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta
-
o amor é uma noite a que se chega só
-----
José Tolentino Mendonça, A Noite Abre Meus Olhos,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006
-----
O autor esteve nas últimas Quintas de Leitura (dia 23 de Outubro) do Teatro do Campo Alegre. Sendo crente (aliás é sacerdote), explicou porque era materialista a sua poesia. Gostei de ouvir alguns dos seus poemas nas vozes bem medidas e modelares da Filipa Leal, Sofia Grilo, Paulo Campos dos Reis e Pedro Lamares. No final, fui, como um adolescente, pedir-lhe um autógrafo para cada um dos livros que levei de casa. Já cá habitava há alguns anos...

domingo, 26 de outubro de 2008

Noite de Quarta Mal-Dita (22 Outubro)

O colectivo das Quartas Mal-Ditas iniciou a nova temporada no último dia 22 do corrente, no Clube Literário do Porto, sob o tema DIÓSPIROS & OUTROS FRUTOS e tendo como convidado o poeta DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES.
Foi o seguinte o programa da sessão, dividida em várias partes por interlúdios musicais a cargo do pianista José Veloso Rito:

I - Leitura de poemas de vários autores (António Nobre, Cesário Verde, Eugénio de Andrade, Al Berto, Herberto Helder, Jorge de Sousa Braga, etc.);

II - Leitura de poemas sobre frutos da colectânea Dióspiro da autoria do convidado;

III - Leitura pelo convidado de outros poemas da sua autoria;

IV - Conversas com o convidado;

V - Leituras de textos do convidado pelo público presente.

Algumas fotos ilustrativas da sessão: o poeta, o coordenador, os "residentes", o público e, ainda, um cesto de dióspiros para o autor de Dióspiro.









































































Fotos de A.M. e Rafael Tormenta

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Balada das onze e meia

Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.

Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.

Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.

Às onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.

Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.

Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.

Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.

Às onze e meia da noite
os ódios nunca estão fartos.

Às onze e meia da noite
a morte anda lá fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.

Onze e meia. Está na hora.

No relógio ainda é cedo.
Os ponteiros não deslizam.

Às onze e meia da noite
esperamos por amanhã.
Chega a morte para a ceia
com dois pezinhos de lã.

Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.
Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.

Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.

Não passa. Nunca mais passa.
Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!

São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.

Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.

Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.

Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.

Bateram as onze e meia.

Só faltam trinta minutos.

Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.
São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.

Fincar no flanco uma espora.

Cavalgar por meia hora.

Dar rédeas ao coração.

Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.
E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como o padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite,
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.

Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
ás onze e meia matou-se.

Em ponto. São onze e meia.

Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.

Bem comidos e bebidos
não tardam em adormecer.

E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira,
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo que sabia
para subir de ordenado.

Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas aquelas que são putas.
Não as que têm a fama.

São onze e meia da noite.

Já só falta meia hora.

Apenas trinta minutos.

Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.

Quero ouvir cantar o fado.

Quero dar uma facada
no galo da consciência.

Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.

E enquanto são onze e meia
e ainda dura a pancada
no bar da rua das pretas,
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidade
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.

Feitos aqui e agora.

Quando falta meia hora
para acabar o passado.

Joaquim Pessoa, 125 Poemas – Antologia Poética,
Lisboa, Litexa, 1983, 2.ª ed.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Versos à boca da noite


Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva.
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome... Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a idéia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sonho e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, e onde, quando?
seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001

Gostava que as noites...


Gostava que as noites não me transportassem
ao dia seguinte, gostava que nelas houvesse um trilho,
um atalho que as levasse a um outro tempo.
--------
Daniel Maia-Pinto Rodrigues,
Dióspiro - Poesia Reunida 1977-2007,
V. N. Famalicão, quasi edições, 2007
--------
Poeta convidado para a sessão das Quartas Mal-Ditas de 22/10/08,
a realizar no Clube Literário do Porto.

Noite de Quarta é mal-dita

Aí está a nova temporada das Quartas Mal-Ditas no Clube Literário do Porto, à Rua Nova de Alfândega, n.º 22. E agora, sempre na quarta quarta do mês, às 22 horas. Este mês, portanto, dia 22. No piano-bar.

Desta vez o convidado é o poeta DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES, autor de Dióspiro, pelo que o tema da sessão será:


DIÓSPIRO & OUTROS FRUTOS

Leituras por:

Anthero Monteiro, António Pinheiro, Isabel Marcolino, Joana Padrão, Luís Carvalho, Mário Vale Lima, Marta Tormenta e Rafael Tormenta e pelo próprio Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Ao piano:

José Veloso Rito

Coordenação de:

Anthero Monteiro


QUARTAS MAL-DITAS: Poesia, Música, Conversas, Pretextos de aprendizagem

Anthero Monteiro no Clube Literário com dois dos seus convidados da memorável sessão de Junho passado: Jussara Midlej (poeta brasileira que encantou quem teve o prrivilégio de ouvi-la) e Luis Alberto Pargas (venezuelano, que encheu de música e alegria o espaço do piano-bar).

sábado, 18 de outubro de 2008

Subsídios para uma Poética da Ciência


I.

Dirás que à morte
apenas o nada sucede,
o não-ser, o vazio.
Que somos acaso entre acasos
e que o melhor é não pensar,
porque pensar faz doer a cabeça
e é coisa de quem está doente dos olhos.

Mas obrigo-me a pensar
à força de tanto olhar
(em páginas de revistas
e programas que não passam
em canais generalistas),
enxames de galáxias,
redondos planetas,
remotos quasares,
negros buracos comedores de luz,
peregrinos cometas,
nebulosas e pulsares,
estrelas de neutrões coalescentes,
nuvens de gás interestelar,
luas cravejadas de crateras,
sobras da cintura de Kuiper,
astros exilados da nuvem de Oort,
nebulosas reflectoras de luz
- e nebulosas negras, suas irmãs, tão frias
quanto da claridade inimigas -
raios gama, matéria sombra,
vento solar.

Obrigo-me a pensar
e nada me resta senão amar
o nada que o teu nome diz.

II.

Dirás que são também fruto do acaso
os astros?
Que um colectivo de deuses
os instalou acima de nossas cabeças
(e onde nossos olhos não pudessem chegar
sem a assistência dos sonhos)
achando que ficavam bem no céu?
Mas que deuses antes de havermos nós
para os inventarmos à nossa semelhança
(pois sem modelo, que semelhança)?

Quem antes de nós para ver as estrelas,
ter a certeza e baptizar o real?
Algma coisa havia, decerto,
antes de nós sermos nós,
alguma coisa que não pura teoria, sob a forma de sonho ou visão
em nossas cabeças invadidas
por dúplices consciências
colectoras de fósseis,
pesquisadoras de rochas,
e inventoras do tempo
com que medir-nos a condição de gente presente
que fabrica o passado
e pressente o futuro.

Para quem o espectáculo do mundo
e do firmamento,
o gigantismo dos primeiros insectos
cuja descendência vive agora
entre páginas de livros,
ou em sótãos pouco frequentados,
quando não passava, o Homem,
de mero projecto embargado
num roedor em busca de abrigo,
decerto já congeminando
engenhoso plano de conquista
enquanto evitava não ser pisado,
ou em tal plano gorado
pelas súbitas navalhas da boca
de um réptil esfomeado?
Para quem o fogo-de-artifício dos vulcões,
a lava, os proclastos, as nuvens ardentes,
o rasto fulgurante do asteróide
caído algures em desgraça
no Golfo do México?
Para os grandes sáureos terminarem o reinado
num grandioso, wagneriano cenário?
Mas quem faltando nós, poderia ver,
e dar um sentido a tanta morte?

Para quê tanto trabalho?
Para quê tanto esforço?
Para quê tanto espaço

(se não é para nos perdermos
e depois nos encontrarmos)?

Rui Lage, Revólver,
V.N. Famalicão, Quasi Edições, 2006
Imagem: cintura de Kuiper (in uranoort.no.sapo.pt.)

O firmamento



Glória a Deus! Eis aberto o livro imenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.
Eis do seu tabernáculo corrida
Uma ponta do véu misterioso:
Desprende as asas, retomando a vida,
Alma que anseias pelo eterno gozo!

Estrelas, que brilhais nessas moradas,
Quais são os vossos destinos?
Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradas
De seus umbrais divinos.
Pululando do selo omnipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faíscas do seu carro ardente
A rolar através da imensidade.

E cada qual de vós um astro encerra,
Um sol que apenas vejo,
Monarca d'outros mundos como a terra
Que formam seu cortejo.
Ninguém pode contar-vos: quem pudera
Esses mundos contar a que dais vida,
Escuros para nós qual nossa esfera
Vos é nas trevas da amplidão sumida?

Mas vós perto brilhais, no fundo acesas
Do trono soberano:
Quem vos há-de seguir nas profundezas
Desse infinito oceano?
E quem há-de contar-vos nessas plagas
Que os céus ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sustém as vagas
Dos sóis que um dia romperão na altura?

E tudo outrora na mudez jazia,
Nos véus do frio nada:
Reinava a noite escura; a luz do dia
Era em Deus concentrada.
Ele falou! e as sombras num momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Ele falou! e o vasto firmamento
Seu véu de mundos desfraldou ovante!

E tudo despertou, e tudo gira
Imerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lira
Cantando os seus louvores.
Cantai, ó mundos que seu braço impele,
Harpas da criação, fachos do dia,
Cantai louvor universal Àquele,
Que vos sustenta e nos espaços guia!

Terra, globo que geras nas entranhas
Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão d'areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão dos mundos
Em volta de seu trono levantado
Do universo nos seios mais profundos.

E tu, homem, que és tu, ente mesquinho,
Quando soberbo te elevas,
Buscando sem cessar abrir caminho
Por tuas densas trevas!
Que és tu com teus impérios e colossos?
Um átomo sutil, um froixo alento:
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas, que sacode o vento.

Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes
À razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves
Na chama das ideias:
Alegra-te, imortal, que esse alto lume
Não morre em trevas dum jazigo escasso!
Glória a Deus, que num átomo resume
O pensamento que transcende o espaço!

Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre
Conquista áureo destino,
E de século em século mais nobre
Eleva a Deus teu hino!
E tu, ó terra, nos floridos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto d'amor reúne aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões d'esferas!

Dizem que já sem forças, moribunda,
Tu vergas decadente:
Oh! não, de tanto Sol que te circunda
Teu Sol inda é fulgente.
Tu és jovem ainda: a cada passo
Tu assistes dum mundo às agonias,
E rolas entretanto nesse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.

Mas ai! tu findarás! além cintila
Hoje um astro brilhante;
Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,
E fenece arquejante:
Quem foi? quem o apagou? foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada;
Foram séculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.

Um dia, quem o sabe? um dia ao peso
Dos anos e ruínas,
Tu cairás nesse vulcão aceso
Que teu sol denominas;
E teus irmãos também, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflama,
Atraídos enfim, quais borboletas,
Cairão como tu na mesma chama!

Então, ó Sol, então nesse áureo trono,
Que farás tu ainda,
Monarca solitário, e em abandono,
Com tua glória finda?
Tu findarás também, a fria morte
Alcançará teu carro chamejante:
Ela te segue, e profetiza a sorte
Nessas manchas que toldam teu semblante.

Que são elas? talvez os restos frios
D'algum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
No teu seio profundo.
Talvez, envolto pouco e pouco a frente
Nas cinzas sepulcrais de cada filho,
Debaixo deles todos de repente
Apagarás teu vacilante brilho.

E as sombras passarão no vasto império
Que teu facho alumia;
Mas que vale de menos um saltério
Dos orbes na harmonia?
Outro sol como tu, outras esferas
Virão no espaço descantar seu hino,
Renovando nos sítios onde imperas
Do sol dos sóis o resplendor divino.

Glória a seu nome! Um dia meditando
Outro céu mais perfeito,
O céu d'agora a seu altivo mando
Talvez caia desfeito.
Então mundos, estrelas, sóis brilhantes,
Qual bando d’águias na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no fundo do universo.

Então a vida, refluindo ao seio
Do foco soberano,
Parará, concentrando-se no meio
Desse infinito oceano;
E, acabado por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na imensidade —
O silêncio, aguardando a voz futura,
O trono de Jeová, e a eternidade!
****
Soares de Passos, Poesias,
Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão - Editores, 1984
Foto in blog.uncovering.org
---------------
Este é, sem dúvida, o poema mais belo do romântico Soares de Passos, que o escreveu de algum modo inspirado no Sistema do Mundo de Laplace. Nasceu no Porto a 27 de Novembro de 1826. Diante da sua casa, na Praça Nova, foram erigidas pelos miguelistas, três anos depois, duas forcas onde pereceram, executados, nove liberais. De 1840 a 1845, trabalha ao balcão da drogaria do pai e faz a escrituração da casa.. Entretanto, frequenta aulas de latim e de filosofia elementar e matricula-se, em 1849, na Faculdade de Direito de Coimbra, onde, dois anos volvidos, colabora no jornal de versos Novo Trovador. Colabora, mais tarde, no jornal O Bardo, do Porto, onde publica alguns dos seus mais conhecidos poemas, como a balada do «Noivado do Sepulcro», que viria a tornar-se uma canção popular muito vulgarizada. A publicação do livro Poesias mereceu os melhores encómios de Herculano, que o considerou o sucessor de Garrett.
Sofrendo de tuberculose, tal como acontecia com o seu amigo Júlio Dinis, foi acometido, nos inícios de 1860, por vária hemoptises, acabando por morrer a 8 de Fevereiro, com 33 anos.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Gato nocturno


à noite nos beirais

passeia-se a sereia

e a lua violada

sugere cada ideia


jogar à bisca entre os seios da donzela

implantar a anarquia

partir a trela

rasgar os cortinados

pular pela janela

ir cear anjos doces

com canela


José Martins Garcia, in Rui Galvão de Carvalho (prefácio, selecção e notas), Antologia Poética dos Açores, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1979


Poeta, contista, romancista, dramaturgo, natural da ilha do Pico (1941). Licenciado em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa. Leccionou Literatura Portuguesa na Brown University, em Providence, Rhode Island (U.S.A). O presente texto é da recolha de poemas intitulada Feldegato Cantabile (1973).

Caranguejola

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
P'lo menos era o sossego completo... História! era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará
P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. C'o a breca! levem-me p'rá enfermaria -
Isto é, p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Paris - Novembro 1915

Mário de Sá Carneiro, «Os últimos poemas de Mário de Sá-Carneiro» in Indícios de Oiro, Sintra, Colares Editora, s/d.
Foto in Orpheu, Vol. 1, Lisboa, Edições Ática, 1971, 2.ª reed.

Este é o meu poema predilecto de toda a literatura: sei-o de cor desde os 15 anos e já o disse em público dezenas de vezes. O título pode parecer estranho, mas o autor explicou, em carta a Fernando Pessoa, que «o estado psicológico de que essa poesia é síntese afigura-se-me em verdade uma verdadeira caranguejola - qualquer coisa a desconjuntar-se, impossível de se manter». De facto, Sá-Carneiro suicidar-se-ia 5 meses depois.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

As minhas noites

As minhas noites são negras,
Negras das insónias,
Dos pensamentos arbóreos
Que se sucedem, saltitantes,
Sem atingir o final.

Negras,
Como negras são as vielas das cidades,
Onde teimam em vaguear
Seres errantes.

As minhas noites
São cor de cinza,
De um cinza desbotado e desfocado,
Como fotos velhas, e recordações...

As minhas noites
São amarelas,
Amarelas como as luzes e letreiros de néon,
Como o ouro sagrado
Das minhas ambições,
Como os pensamentos intensos e febris
Que por vezes dormem comigo no leito.

As minhas noites
São vermelhas,
Vermelhas como os desejos imensos
Encarcerados no peito,
Como o sangue que jorra, que pulsa, que corre!

Nas minhas noites algo vive
Que, à luz do dia,
Morre...

As minhas noites
São ventos
E são marés,
São flores,
São primavera.
Nas minhas noites tudo é
Eterno compasso de espera...

As minhas noites
São risos,
São choros,
Num tempo por desvendar,
São ciclones, turbilhões,
Mistérios por decifrar!

As minhas noites
São sede,
Constante,
Por satisfazer.
E há nelas uma vaga ideia,
Silhueta de mulher...

As minhas noites são lentas,
Absurdas,
Vazias,
Frias,
Até que o sono vier...!

Pensamento enevoado
Que depois se fecha a trancas,
As minhas noites, horas longas,
E nelas as angústias tantas!

As minhas noites são negras...
As minhas noites são brancas!

Luís Filipe Carvalho, Um Outro Olhar,

V. N. Gaia, Corpos Editora, 2003

Com um abraço muito especial para o poeta
e para o companheiro de infinitas noites de poesia,
o excelente diseur que muito aprecio.

Foto A.M.: Luís Carvalho no Púcaro's Bar

The Night Writing

Abrir um caderno (The night writing) e escrever pela noite fora, enquanto não chega o Inverno. Nunca se escreve tudo, nunca se chega ao fim. Agora, que olho os teus olhos, sei como se começa a escrever pela noite fora, como se ouvem os ruídos, como se ouve a respiração. Ao recuperá-la, não se perde de novo, não se adormece sem ouvir essa voz a que sempre se pertenceu. A noite é isto, afinal, chegar e partir, enfrentar as horas, esperar.


Francisco José Viegas, A Noite, o Que É?,
V. N. de Famalicão, Quasi Edições, 2007
Foto A.M.

Sempre a insónia


continuas a atravessar-te no meu sono
e a instilar gotas de vidro nos meus olhos
de que serve pôr-me a contar
inúmeros números inócuos e abstractos
se nada me abstrai dos contornos
que nem a esponja da noite absorve?

os espelhos multiplicam os teus olhos
e os teus olhos vão deflagrando no âmago dos meus
vagaroso cancro que não decide matar-me definitivamente

assisto assim ao silêncio
irmão de todos os teus silêncios
ao afago pungente de umas mãos de sombra
ao bolor que vai esborcinando o teu sorriso
aos ecos do que foi o eco dos teus passos
ao retalhar do burel por traças luminescentes

apuro o olhar
a intrusa afinal é outra
aquela que te sonega
aquela que apenas me traz
a indizível saudade de ti

tu adormecias-me
com o toque ilusionista dos teus dedos
essa outra diverte-se pela noite dentro
a cravar-me alfinetes nas pupilas

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V. N. Gaia, Corpos Editora, 2003

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Insónia


e não esqueço
e não esqueço
e não esqueço

por isso revoluteio
entra-me a dor de permeio
e nem sonhando adormeço

falta-me cantar ainda
teu olhar de angústia e mágoa
essa ânsia que não finda
essa volúpia de água

e sinto que tu só amas
o longe que não atinges
um reino cheio de esfinges
um lago feito de chamas

e vejo que me não vês
que perpassas outra vez
que o teu reino não é este
assim de tédio enfadonho

que tu vives mais a leste
ou a oeste
que interessa
mas que a vida do teu sonho
do teu adejo nocturno
não é essa
não é essa

e não durmo
e não durmo
e não durmo


Anthero Monteiro, Desesperânsia, V. N. Gaia, Corpos Editora, 2003

Um cão ladra...

Um cão ladra ao silêncio
para aumentar a noite.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Dióspiro,
V. N. Famalicão, Quási Edições, 2007

Sete vigílias

Mortos: - hoje vocês
Que dizem? Tantas horas sobrepostas
No tempo desta noite! - Duas, três...
Caídas, como coisas a meus pés
- Melhor: como perguntas sem respostas.

Ó mortos, (desculpai-me a ignorância!)
- O vosso tempo não é isto, não?
Se há horas, lá na vossa estância,
Não têm esta vazia ressonância,
Devem soar como um perdão.

Eu nada sei! De mim, tão pouco
É, que pareço o cábula d'outrora
Perante as leis do Código. Nem louco,
Nem homem de juízo. Choco,
Só sei que o tempo me deteriora.

Quanto ao grito que eu tinha para dar
(Esse tal grito meu, tão diferente),
Não chegou a sair, nem voltou a entrar.
Ficou aqui... - É esta falta d'ar
Que o meu espírito sente.

Contudo, em minha vida há paz e graça.
A noite é que a perturba e transfigura:
Põe no ar um mistério que esvoaça
E gera em tudo quanto eu diga, ou faça,
Sinais de morte, acenos de loucura.

E quando o sono tarda (tal e qual
A tão sonhada amada que não vem)
Então, a noite é sobrenatural
Coisa que pousa como num beiral
Que a minh'alma tivesse - que ela tem...

E nela se debruça. E analisa
O que nela se passa - fria, tendo
O ambíguo sorrir da Mona Lisa.
E tudo quanto me sensibiliza,
Fica gelado e horrendo.

Ah! quem me dera o sono dos mendigos,
Já recolhida a derradeira esmola!
Dos soldados, passados os perigos -
Ou dos meninos, quando os inimigos
Vão, de manhã, chamá-los para a escola!

Carlos Queiroz, Epístola aos Vindouros e Outros Poemas,
Lisboa, Edições Ática, 1989

Desenho de Eduardo Malta

A rival

Se a lua sorrisse seria parecida contigo.
Tu deixas a mesma impressão
Que qualquer coisa bela mas aniquiladora.
Ambos gostam de tomar a luz de empréstimo.
A sua boca em O aflige-se com o mundo; a tua é insensível,

O teu maior dom é transformares tudo em pedra.
Acordo e vejo-me num mausoléu; tu estás aqui,
Os dedos sobre a mesa de mármore, à procura dos cigarros,
Rancoroso como uma mulher, mas não tão nervoso,
E morto por dizer qualquer coisa incontestável.

Também a lua rebaixa os seus súbditos,
Mas à luz do dia nem existe.
As tuas insatisfações, por um lado,
Chegam pela ranhura da caixa do correio com regularidade amorosa,
Brancas e vazias, expansivas como o monóxido de carbono.

Nenhum dia está a salvo das tuas notícias,
Andando por África, talvez, mas a pensar em mim.

Sylvia Plath, Ariel, Lisboa, Relógio d'Água, 1996

Auto-retrato de Sylvia Plath in

O caminho de casa


Volto de noite para casa.
Tudo é memória fora de mim
ou onde em mim alguém conduz
fisicamente o automóvel.

Como não estarei
nem não estarei
em nenhum sítio, voltando
absolutamnte para casa?

Subindo as escadas grave e inocente
como quem volta à noite para casa
e voltando para casa inteiramente
e adormecendo em mim como em casa?

Manuel António Pina, O Caminho de Casa, ed. do autor, 1989

Completas


A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em obscuros sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que eu adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Manuel António Pina, O Caminho de Casa, ed. do autor, 1989

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O amor tal qual ele é




vou buscar-te ao fim da tarde,
porque a noite só escurece contigo ao
meu lado, porque a noite aprende por ti
o caminho aberto das estrelas

vou buscar-te ao fim da tarde,
e verás como preparei a casa, como
escolhi a música, como, enfim, espalhei
os objectos mais impressionados contigo,
os que ganharam vida por se interporem
na espessura estreita que vai do meu
ao teu coração

e não mais te devolvo, correndo todos os
riscos de não amanhecer nunca
numa loucura propositada por ti

não mais te devolvo,
ocuparás o mundo debaixo e sobre mim,
e não haverá mais mundo sem que seja assim

valter hugo mãe, pornografia erudita, Maia, Cosmorama, 2007

Foto: valter hugo mãe na Onda Poética, junto de Rosa Alice Branco.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Oscar Hummel


Foi numa noite de nevoeiro, por volta das nove horas,

poucas estrelas se viam no céu, e eu,

aos esses pela escuridão, tentava orientar-me por elas,

de modo a conseguir chegar a casa.

Mas estava perdido, não percebo como,

pois não me tinha desviado da estrada.

Entrei aos trambolhões por um portão que dava acesso a um pátio

e chamei o mais alto que pude:

«Ó violinista! Ó Sr. Jones!»

(pensei que era a casa dele e que ele me diria o caminho.)

E não é que me aparece o A. D. Blood,

de camisa de noite, a brandir um cajado

e a rugir contra as malditas tabernas

mais os criminosos que nelas se fazem?

«Oscar Hummel, seu bêbado!», disse ele,

enquanto eu cambaleava de um lado para o outro,

recebendo as cacetadas que ele me dava

até que caí morto aos seus pés.


Edgar Lee Masters, Spoon River Uma Antologia, Lisboa, Relógio d'Água, 2003

(tradução e prólogo de José Miguel Silva)


Nasceu em Garnett, Kansas, em 1868. Mudou-se para Petersburg e, mais tarde, para Lewinstown, ambas localidades situadas nas margens do rio Spoon, afluente do Illinois. Spoon River Anthology é uma galeria de retratos-epitáfios de personagens que terá conhecido quando trabalhou como jornalista no Lewinstown News. Morreu em 1950 e, segundo José Miguel Silva, «foi sepultado no cemitério de Petersburg, entre alguns desses mortos a quem tentera insuflar uma segunda alma».

Ode à noite (inteira)


Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono
que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
- ou das pessoas que desconheço
e das bebidas todas que ignoro
(porque me matam menos e se chamam
- como eu - insónia, pesadelo, golpe baixo).


Existem, claro, raparigas louras um tanto
heterodoxas que não te apetece beijar
(a forca do bâton, perfeita - o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.

Outros, alguns, tornam concreto o torpor
de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
- ou o seu contrário, pois só ali (anónimo
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.

Manuel de Freitas, [SIC], Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

Insónia


Um dois e três carneiros
saltitam espertos
Mais três como os primeiros
— e eu de olhos abertos…

Sete oito nove dez
fugidos ao seu dono
Já são quarenta pés
— e eu à espera do sono…

Onze bolas de lã
tropeçando à marrada.
Já é quase manhã
— e quanto a dormir nada…

Uma dúzia balindo
(e só sabem balir)
Que rebanho tão lindo
de horas sem dormir!…

Mais cinco dezassete,
mais quatro vinte e um
Esta noite promete
— e eu sem sono nenhum…

Vinte e dois vinte e três…
E mais um par recolho
Já passaram mais dez
— e eu sem pregar olho…

Já lá vão trinta e quatro
se não erro ou não esqueço
Lá vem mais um pacato
— e eu cá não adormeço…

Chega meia centena
a tropeçar na lama
Quem de mim terá pena
sempre às voltas na cama?

Já são oitenta e cinco
mais quinze faz os cem
Eles brincam e eu brinco
sem ter sono também…

Ai se o lobo nocturno
atacasse… — que horror!
Por isso é que não durmo
É que eu sou o pastor…

Anthero Monteiro, A Lia Que Lia Lia, Espinho, Elefante Editores, 1999

Leia-se o que escreveu o crítico literário Serafim Ferreira a propósito deste livro em A Página da Educação:
«Antero Monteiro ou o gosto de escrever para crianças» in

http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=1026

Ontem à noite: na Rádio Clube da Feira

Foram três horas de emissão, das 21 horas à meia-noite, como acontece todos os domingos na Rádio Clube da Feira, no programa O Correr das Águas, com Dinis Silva: uma longa conversa, a leitura de poemas meus, música de excelente escolha.
Sou suspeitíssimo para comentar, mas não deixarei de referir que foi uma bela experiência e uma noite bem passada.
Seleccionei o que acho melhor na minha pequena obra, sem esquecer também alguns textos para os mais jovens dos meus livros A Lia Que Lia Lia e A Sara Sardapintada.
E a aventura terminou com a leitura do "Testamento" do livro Desesperânsia, sem dúvida o melhor poema alguma vez escrito por este "escrevedor": deixo-vos... deixo-vos... deixo-vos...
Que maçada não terá sido para os meus ouvintes!... Obrigado, Dinis Silva! E que a tua rubrica prossiga sempre com outros convidados mais dignos de uma tal distinção.
( A seguir: um dos textos lidos para os mais jovens, a "Insónia").

Nocturno


Espírito que passas, quando o vento

Adormece no mar e surge a lua,

Filho esquivo da noite que flutua,

Tu só entendes bem o meu tormento...


Como um canto longínquo - triste e lento -

Que voga e subtilmente se insinua,

Sobre o meu coração, que tumultua,

Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...


A ti confio o sonho em que me leva

Um instinto de luz, rompendo a treva,

Buscando, entre visões, o eterno Bem;


E tu entendes o meu mal sem nome,

A febre do Ideal que me consome,

Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém.


Antero de Quental, Sonetos, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1984


domingo, 12 de outubro de 2008

Nocturno


O desenho redondo do teu seio
tornava-te mais cálida, mais nua,
quando eu pensava nele... Imaginei-o,
à beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
ornar-te o busto de uma renda leve
e a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
era um convite lúcido às estrelas...

Imaginei-te assim à beira-mar,
só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
no desenho redondo do teu peito...


David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988,
Lisboa, Presença,1996, 2.ª ed.
Óleo s/ tela de Amedeo Modigliani, Reclining Nude: Le Grand Nu, (1919).

A meio da noite

Era na casa a distância do céu
e além do céu silêncio apodrecido
Era no quarto o vazio de um peito
e além do peito um seio intumescido

Era no jardim a marca do vento
e além do vento um verme na memória
Era no meu corpo o afogar do sangue
e além do sangue o ser sem trajectória

Eram na rua passos apressados
e além dos passos beco ou passaporte
Eram mãos invisíveis nos meus dedos
e além das mãos ponto de vida ou morte

Manuela Correia, Poemas Tri Angulares,
Espinho, Elefante Editores, 2002
Foto A.M.

Anoitecer


a noite ser
pois só a noite é verdade
o resto é luz e a luz é capa
de dia tudo nos escapa
julgamos ver
mas quem vê é a claridade

dêem-me a minha treva
inicial
quero estar só comigo mesmo
a luz não me é essencial
e não é ela que me leva:
levo-me eu a esmo

serão caminhos maus
impróprios de um poeta
em horas de duende
mas só me vejo cometa
errante que só o caos
entende

a luz é um preconceito
é peso a mais para ti meu peito
e dói-te

só há uma verdade a sério
o mistério
e haverá maior mistério que a noite?


Anthero Monteiro, Desesperânsia, V. N. Gaia. Corpos Editora, 2003
Foto de Ondina Dominguez

Desesperânsia

esta noite vou deitar-me no mesmo drama de ontem
em viscosos lençóis de acusação
demora aquecer os pés nas dobras do remorso
e ver as estrelas lancinantes no filme da janela
a ensinar-me o rodopio do globo
e a culpar-me de o ter deixado
nesse giro inelutável
sem nada ter feito para o travar

uma vez mais a terra idolatrou o sol
e eu não fui capaz de a deslocar
ou tresloucar

e tu estrela da manhã
regressas num renovo sempre igual
sempre núncia das horas inclementes
que uma a uma já estão a despenhar-se

e para relembrar essa hecatombe
ecoa tic tac esta obsessão
de ponteiros em círculos viciados
como animais às voltas numa arena
ou girando atrelados numa nora

ah os deuses corromperam todos os relógios
fizeram de mim um caminhante trôpego e rasteiro
sempre colado a um íman centrípeto
e fizeram da vida esta obediência torpe
de asas arremedando o voo livre e sem limites
de inócuas ondas bajulando a terra
de horizontes cortados pelo mesmo gume déspota
de palpitações e anseios eternamente estrangulados

para algo ter
na mão tenho outra mão que nada tem
na mesma cama no mesmo drama
esmago os vermes da ansiedade que foi minha
larvas de sonhos calcificados
todos os fósseis da utopia
prende-se-me aos olhos este pó de lagarta
argueiro arguto irmão da insónia
e abraço esta amante que me tolhe o fôlego
angústia angústia angústia
a que tão longa convivência
me faz chamar desesperânsia

Anthero Monteiro, Desesperânsia, V. N. Gaia. Corpos Editora, 2003