quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sempre a insónia


continuas a atravessar-te no meu sono
e a instilar gotas de vidro nos meus olhos
de que serve pôr-me a contar
inúmeros números inócuos e abstractos
se nada me abstrai dos contornos
que nem a esponja da noite absorve?

os espelhos multiplicam os teus olhos
e os teus olhos vão deflagrando no âmago dos meus
vagaroso cancro que não decide matar-me definitivamente

assisto assim ao silêncio
irmão de todos os teus silêncios
ao afago pungente de umas mãos de sombra
ao bolor que vai esborcinando o teu sorriso
aos ecos do que foi o eco dos teus passos
ao retalhar do burel por traças luminescentes

apuro o olhar
a intrusa afinal é outra
aquela que te sonega
aquela que apenas me traz
a indizível saudade de ti

tu adormecias-me
com o toque ilusionista dos teus dedos
essa outra diverte-se pela noite dentro
a cravar-me alfinetes nas pupilas

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V. N. Gaia, Corpos Editora, 2003