sábado, 31 de outubro de 2009

Última ceia
















In
www.antropofocus.com.br/ com admiração e a devida vénia.

Estava a jantar no PING-PONG com uma amiga realmente simpática.

Na altura do conhaque a acompanhar o café, lembrou-se de repente: «e se este fosse o último?»

Pediu mais outro conhaque, mesmo antes de acabar o que estava a degustar.

À porta, quando saía, o Tião Medonho atirou-lhe quatro de 38 exactas, abaixo do diafragma, e foi-se embora.

Isto de religião é uma coisa tremendamente complicada, sempre tenho dito. E a minha mãe confirma.

Mário-Henrique Leiria, Contos do Gin-Tonic,
Lisboa, Editorial Estampa,1976, 2.ª ed.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A Santa Ceia





Foto
Anthero Monteiro









A mesa sempre farta
e a casa muito cheia.
O eterno ritual da santa ceia,
regado de luxúria e de prazer.
E eu, sem trono e sem coroa de rainha,
Reinando, absoluta, na cozinha.
Enquanto eles se matam de comer.

Kátia Drummond, Verão Português,
Sintra, 2005

________
Escritora brasileira, radicada em Sintra. É socióloga e consultora de Marketing.

D'après D. Francisco de Quevedo









Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu peito.

E traí e fui traído,
e duvidei, e impacientei-me, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).

Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.

Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.

Manuel António Pina

Meditação na pastelaria





Foto in
www.zaroio.com.br








Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!

A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte...

Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!

*

O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!

O amor de Raul é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade...
(O escritório
Toma-lhe o tempo todo?
Desconfio que não...)

Filhos tivemos um:
Desapareceu...
E já nem sei chorar!

*

Chorar...
Como eu queria poder chorar!

Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia...

Perdi tudo, quase tudo...

Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.


Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca,1958

Café




Muito de manhã
ajunto à xícara
o respectivo pires
uma colherinha
e o café.

A mim mesmo peço
que vá buscar o açucareiro.

Uma. Duas.
Três colheres de açúcar.
Mexo. Provo. Está doce.

E na incongruente imensidão da casa
lacónico vou sorvendo
...........................................................

Tudo amargo.

José Craveirinha

Exercício










Nos dias em que o vento anima a roupa
suspensa desta ou daquela janela
o meu olhar perdido não a poupa
e vai seguindo os movimentos dela.

Aqui estou tristezas alegrias
Nesta colina do instante canto
esta vida indecisa de maresias
ó vida ameaçada enquanto

a minha grande esperança é o café
Agora que o tomei
com pressa e frenesim até
o que vai ser a vida ainda não sei

Mosteiro dos Jerónimos fachada
impassível ao vão vaivém humano
aqui ando eu perdido de ano em ano
ó vida noves fora nada

Nos dúbios dias da destruição do verão
quando tudo parece acabar
regresso então à versificação
e encontro nos papéis o meu segundo mar

Ruy Belo, Homem de Palavra(s)

O banco do jardim

O senhor Henri estava no jardim em frente do seu banco preferido, onde sentada uma mulher tocava violino.
O senhor Henri interrompeu a violinista e disse: António Stradivarius foi o mais famoso construtor de violinos.
...era o arquitecto dos violinos, bem se pode dizer.
...ele experimentou vários tipos de violinos até se decidir pela dimensão e forma actual do violino Stradivarius.
...eu poderia ter sido um grande violinista, mas nunca soube tocar violino.
...porém, o álcool apareceu muito antes do violino.
...muito antes de existirem violinistas já existiam pessoas inspiradas artisticamente pelo álcool.
...por isso faça o favor de sair desse banco com o seu violino.
...porque esse banco é meu - disse o senhor Henri.

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Henri,
Lisboa, Editorial Caminho, 2003

Último cigarro



















o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento
na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco
a claríssima insuficiência

é este o incêndio da tarde o fim do almoço
a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta
reclusas na sombra azul dos quartos

mãos sem sentido
arroz na folha de videira muro caiado de branco
e roseiras

gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios
aquela noite grega que não soubemos redigir
vespas bebendo da boca das torneiras

escrevo o poema que não lerás nunca
sobre a toalha de plástico da mesa suja
de azeite

a mão esquecida na vírgula acesa do cigarro
a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha
as crianças dormindo na

nitidez esquecida da telefonia

Miguel-Manso, Contra a Manhã Burra,
Lisboa, Mariposa Azual, 2009, 2.ª ed.

Bicarbonato de soda














Súbita, uma angústia...

Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!

Que amigos que tenho tido!

Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!

Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia,

Uma desconsolação da epiderme da alma,

Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...

Renego.

Renego tudo.

Renego mais do que tudo.

Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.

Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago

e na circulação do sangue?

Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?

Não: vou existir. Arre! Vou existir.

E-xis-tir...

E--xis--tir ...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!

Renunciar de portas todas abertas,

Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,

Sem nexo,

Acidente da inconsequência da superfície das coisas,

Monótono mas dorminhoco,

E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!

Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!


Álvaro de Campos, Poesias


Ora até que enfim...






Fernando Pessoa
de Alfredo Luz








Ora até que enfim..., perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exactamente na cabeça.
Meu coração estourou como uma bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
E, como cuspo atirado ao vento,
Me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
Como a serapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
Isto é uma solução.
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários —
Também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida...

Álvaro de Campos

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Do "Eclesiastes"












Ora, pois, come alegremente o teu pão

e bebe contente o teu vinho,

porque Deus já apreciou os teus trabalhos.

Traja sempre vestes brancas

e haja sempre azeite perfumado em tua cabeça.

Desfruta da vida com a mulher que amas,

durante todos os dias da fugitiva e vã existência

que Deus te concede debaixo do sol.

Tudo o que a tua mão encontra para fazer,

faze-o com todas as tuas faculdades,

pois que, na região dos mortos para onde vais,

não há mais trabalho, nem ciência,

nem inteligência, nem sabedoria.


Eclesiastes 9:7.10

Flor de baunilha

Cf.
http://blogni.blog.com/
onde, para além da imagem,
se podem ver interessantes
informações sobre a
proveniência da baunilha,
confirmando as do poema.





Hoje, os olhos fundos do meu pensamento são negros como o alcatrão,
e o morno palpitar da sua carne um malicioso levedar de canela.
Neste momento, enquanto alguns milhões de homens fossam na conquista do seu pão,
estou eu pensando nela.

É uma espécie de orquídea sarmentosa,
um récipe de mel, de resinas e hormonas,
vaso de sílex, boceta especiosa,
cântaro de água, taleigo de azeitonas.

Quando ergue as pálpebras é como se de repente o galo do campanário cantasse,
é como se o vento arrebatasse o muro e libertasse a paisagem cativa.
Seus grandes imensos olhos redondos, botões de obsidiana à flor da face,
firmam-se-me, ofegantes e estáticos, como sardões em expectativa.

Na noite cerrada dos seus cabelos acasalam-se os pirilampos,
e os sapos dedilham os sistros, assolapados nos lameiros.
No côncavo das minhas mãos, vaza e molda o silêncio nocturno dos campos,
e a sua cabeça no meu ombro é o barco escondido entre os salgueiros.

Sua carne cheirosa, fofa e tépida, como a terra estrumada,
aceita, na intimidade dos poros, a semente brunida que acordará em pão.
Ah! É verdade! O pão!

Os homens que não têm pão!
As mulheres dos homens que não têm pão!
Os filhos dos homens que não têm pão!

Baixa as pálpebras, flor de baunilha.

António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967),
Lisboa, Portugália Editora, 1975, 5.ª ed.

Ontem, Quartas Mal Ditas...








Algumas imagens da última sessão poética das Quartas Mal Ditas no Clube Literário do Porto, sob o tema "PELO SONHO É QUE VAMOS" e destinada a homenagear o arq. Fernando Lanhas, convidado especial.
Por razões de saúde, o Leonardo Da Vinci português não pôde estar presente, mas foi representado por seu filho Pedro Lanhas. Compareceram também seu primo, o Dr. Adelino Resende Barbosa e alguns dos admiradores e entusiastas da vida e obra de Lanhas, como Cecília Moreira, Carlos Dias e Jorge Parracho, que intervieram no intervalo dos poemas, dando o seu testemunho.
A sala esteve cheia como nunca, atingindo assim as Quartas Mal Ditas o seu recorde de assistentes. Segundo o Coordenador da sessão, isso ficou a dever-se à relevância do nome do homenageado.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O que menos importa...











O que menos importa é o fato surrado
afinal cada qual tem o seu próprio fado

Comer uma só vez por dia não tem importância
é até um bom preceito de elegância

Recear a prisão a pancada as torturas
ora quem os manda meter-se em aventuras

Não chegar o dinheiro para pagar o aluguer
nem para ir ao cinema nem para ter mulher

Disparates Doutra forma o poder cai na rua
e lembrem-se senhores a revolução continua

Daniel Filipe

(compare-se o poema com "Pastelaria" de Cesariny)

________

Poeta neo-realista, n. da ilha da Boavista, Cabo Verde (1925).
Fez os estudos liceais em Portugal, onde combateu a ditadura salazarista, que o prendeu e torturou. Sabe, pois, do que fala neste poema e em livros como A Invenção do Amor (1961) ou Pátria, Lugar de Exílio (1963).
F. em Cabo Verde em 1964.

Nuit rhénane / Noite renana















Mon verre est plein d'un vin trembleur comme une flamme
Écoutez la chanson lente d'un batelier
Qui raconte avoir vu sous la lune sept femmes
Tordre leurs cheveux verts et longs jusqu'à leurs pieds

Debout chantez plus haut en dansant une ronde
Que je n'entende plus le chant du batelier
Et mettez près de moi toutes les filles blondes
Au regard immobile aux nattes repliés

Le Rhin le Rhin est ivre où les vignes se mirent
Tout l'or des nuits tombe en tremblant s'y refléter
La voix chante toujours à en râle-mourir
Ces fées aux cheveux verts que incantent l'été

Mon verre s'est brisé comme un éclat de rire


Guillaume Apollinaire, Alcools,
Éditions Gallimard, 1920
___________

O meu copo está cheio de um vinho como chama a tremular
Escutai de um barqueiro uma lenta canção
Que conta ter visto sete mulheres ao luar
A enxugar os cabelos verdes e longos até ao chão

De pé cantai mais alto à roda numa dança
Que já não se oiça aquele canto enfim
E as raparigas todas de loura trança
E olhar sereno trazei-as aqui para junto de mim

Onde as vinhas se contemplam o Reno inebriou-se
Todo o oiro das noites aí se reflecte e perde
Aquela voz canta sempre num tom doce
Estas fadas que enfeitiçam o Verão com seu cabelo verde

Como uma gargalhada o meu copo quebrou-se

Tradução livre de Anthero Monteiro (1998)

Biografia



















Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.

Extraia a raiz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.

Parece-lhe decente que um engenheiro faça versos?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.

Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.
Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Aí, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer.

Gabriel Celaya,
Tradução de José Bento

(Espanha, 1911-1991)

À mesa
















A mãe, se me vê
comer com a mão,
prega-me logo
uma lição.

Então tentei
comer com o pé:
Tirei sapato,
tirei a meia…
Ia levando uma tareia.

Mas amanhã
não ralham comigo
pois vou comer
pelo umbigo.

Luísa Ducla Soares, Poemas da Mentira e de Verdade

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Reconheço as ruas...
















Reconheço as ruas e as paredes da infância
mesmo aquelas que já foram derrubadas.
Estava a comer só quando pensei nisto. E agora penso
nas coisas em que pensamos quando comemos sós.
Só posso falar por mim. Converso com o vento, vou com as aves
sobre os gumes aguçados das montanhas, por ali me demora planando
sentindo-me leve, leve, leve, tão leve como se não tivesse pecados ou acabasse de confessar-me.
Volto à cidade, volto a mim, é preciso escolher o vinho, sim, pode ser um Borba,
agora estou eu desencontrado com os meus projectos, as coisas não são feitas como eu penso,
deixo-as ficar assim, mas a minha estratégia era quase imbatível,
entretanto esta história da casa preocupa-me,
é muito dinheiro, o empréstimo compromete-me quase até à morte,
bom, se calhar tenho sorte e chego aos oitenta, até mais quem sabe?,
mas também posso apagar-me de um momento para o outro,
não seria nem o primeiro nem o último. Para sobremesa
quero fruta, um pêssego, não, talvez uma laranja, se for doce.
Ah!, tenho de falar ao editor, saber como vai a minha antologia,
talvez haja boas notícias, acho que está a ler-se mais outra vez,
já baixou a febre da informática e dos audiovisuais,
o que é que andará o Hugo a fazer, estou preocupado com ele,
a minha filha ficou de telefonar e o mais velho há dias que não diz nada,
não deve estar a precisar de mim, se não já tinha aparecido.
Os filhos são óptimos quando são pequenos, é bom vê-los crescer
mas o que eu não daria para tê-los de novo crianças,
aqueles olhos vivos, as palavras deformadas por excessos de ternura,
um café, se faz favor, não é preciso açúcar.
Os filhos, os filhos, que pensarão eles de mim daqui a trinta anos?,
possivelmente qualquer coisa semelhante ao que eu penso hoje do meu pai,
se fosse assim não era mau, melhor, era até justo, tenho sido um bom pai,
adoçante também não, muito obrigado. Não sei
por que é que esta gente faz tanto barulho, deviam estar todos mais magros,
conversam mais do dobro do que comem. Não, não,
fico-lhe muito agradecido mas não gosto de jogar na lotaria,
sorte é coisa com a qual nunca pude contar muito,
como diz o outro, tenho subido a corda a pulso.
A conta, por favor! Tenho tanta coisa para fazer esta tarde,
provavelmente guardarei para amanhã alguma coisa do que posso fazer hoje,
serei cliente de mim mesmo, tratar-me-ei com toda a deferência
e simpatia - uma factura, por favor! - isso, com muita simpatia,
arranjarei forma de ser simpático comigo mesmo,
ando cansado de gastar a minha simpatia com os outros.
Acho que mereço um bocadinho mais do que me têm dado,
ou talvez seja eu que dê demasiado por aquilo que me oferecem,
não sei, francamente não sei, não é o sítio nem tenho tempo para pensar nisso agora,
por que é que o tipo leva tanto tempo a trazer-me a factura?,
só faltava agora o telefone! ah, és tu!, não, quero dizer, sim,
não me demoro, já falamos nisso, não decidas nada sem eu chegar!,
é isto, também tenho que decidir com os outros e às vezes pelos outros,
estas coisas são mais difíceis do que parecem, a minha mulher
diz que passo o tempo em reuniões, que rico emprego,
não se faz mais nada a não ser umas reuniõezinhas, assim também eu, diz ela,
mas ela sabe lá o tamanho dos sapos que eu tenho de engolir,
agora por isso, olhe, por favor, falta a factura, já estou atrasado,
mas atrasado para quê, os meus grandes problemas não se resolvem hoje,
há coisas que esperam por nós uma vida inteira,
nós levamos uma vida inteira a esperar por certas coisas,
melhor seria eu hoje não ir a lugar nenhum - ah, a factura, obrigado! -
sinceramente não sei que faça, vou andando, já penso nisso,
preciso é de dar descanso à minha cabeça,
vim eu almoçar sozinho para não ouvir falar de problemas,
afinal aí estão os meus, gaita!, misturar problemas com filetes,
não há coração ou fígado que aguentem!, e mesmo sem interesse
não há nada como uma tagarelice à mesa
embora a minha mãe sempre me dissesse e insistisse,
Joaquim, eu já te disse que não se fala à refeição.

Joaquim Pessoa, Vou-me Embora de Mim,
Lisboa, Hugin, 2000

(itálicos do poema da minha responsabilidade)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Mozart comestível

Ninguém sabia que o pobre Mozart tinha os bolsos cheios de moedas de ouro.
O pobre homem despia todas as noites as desventuradas calças, e ao tirá-las caíam ao chão as tilintantes moedas.
Mas como a esposa era meio surda, acreditava que se tratava de moedas de chumbo.

A senhora de Wolfgang Amadeu Mozart era muito rigorosa nos costumes.
Pensava sinceramente que as feridas daquele tão elegante coração se fechariam com curitas Johnson.
E aplicava-lhos em vão todas as noites, enquanto o formoso coração de Mozart se esvaía em sangue silenciosamente, como um frasco de xarope que em segredo se quebra dentro do saco das compras.

Mozart tinha muito mau carácter, muito má memória e muito má sorte.
Especialmente uma vista péssima.
Um dia subiu a uma nuvem pensando que era o autocarro.
Outra vez vendo sair em voos sucessivos umas pombas do pombal, pôs-se a gritar em plena rua: Epa, epa, estão a fugir as luvas!

Era um homem muito formoso e segundo se diz alimentava-se com meias de seda.
Era também muito descuidado, à hora do banho engolia o sabão acreditando que era uma amêndoa.
Uma vez a Mozart pôs-lhe a polícia as mãos em cima, porque ao pedir-lhe o bilhete de identidade apresentou-lhe uma rosa.
Mozart era muito mal educado: durante as recepções comia o perfume das senhoras e beijava-lhes a roupa em público.
No dia em que morreu Mozart estava a nevar, e os amigos em vez de enterrá-lo decidiram comê-lo como se fosse um sorvete.

Aquiles Nazoa, Poemas Populares (Antologia),
Caracas, Monte Ávila Editores, 1995, 3.ª ed.

(Tradução de Anthero Monteiro: foi mantida a pontuação original)
______

Aquiles Nazoa: o poeta mais popular da Venezuela, graças ao humor de muitos dos seus poemas, como acontece neste caso, em que utiliza uma estratégia, como se vê, algo surrealista.

Não há vagas



O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar, Os Melhores Poemas de Ferreira Gullar,
São Paulo, Global Ed., 1983

Dois e dois: quatro



















Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

Ferreira Gullar, Os Melhores Poemas de Ferreira Gullar,
São Paulo, Global Ed., 1983

Pequeno almoço

















Quando vou buscar o pão, de manhã,
sei pelo fumo se há pão ou não há;
e vou sempre, com fumo ou sem ele.
Sabe-se lá se algum pão ficou es-
quecido da fornada de ontem;
ou se o padeiro se lembrou – e mo guardou.

A padaria fica ali em baixo, à esquina,
e havia lá dantes uma menina
que todos cobiçavam – porque se ria.
Ainda hoje, ninguém sabe do que se ria.
essa menina que morava na padaria;
ou se ao menos era séria – ou não seria?

E quando ponho o saco sobre o balcão
insisto sempre para que contem o pão.

Nuno Júdice, Poesia Reunida 1967 - 2000

Déjeuner du matin / Pequeno almoço



Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec la petite cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a reposé la tasse
Sans me parler

Il a allumé
Une cigarette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis les cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder

Il s'est levé
Il a mis
Son chapeau sur sa tête
Il a mis son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Et il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder

Et moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
Et j'ai pleuré

Jacques Prévert, Paroles, 1946
________

Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
sem me falar

Acendeu

um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar

Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo da chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar

Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.

Jacques Prévert