quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Ao albatroz



















Tu, que dormiste toda a noite sobre a tempestade,
que acordas e descansas sobre as tuas asas prodigiosas,
(desencadeou-se a tempestade brutal? acima dela ergues-te e repousas no céu, esse escravo que te abriga).
Agora pareces um ponto azul, ao longe pairando no céu,
e com a luz que surge observo-te do convés,
(eu próprio sou apenas um ponto, um sinal sobre a flutuante vastidão do mundo).

Longe, longe no mar,
depois de as bravias e nocturnas correntes terem semeado a praia de despojos,
ao romper do dia, feliz e sereno,
com a alvorada rosa e elástica, com o sol deslumbrante,
com a límpida extensão do ar cerúleo,
tu também reapareces.

Tu, nascido para medir a tempestade (és todo asas),
para competir com o céu e a terra, com os mares e os furacões,
tu, navio do ar que nunca arriaste velas,
durante dias e semanas percorreste, infatigável, espaços e reinos, avançando sempre,
e ao crepúsculo olhaste o Senegal e a enlutada América,
que irrompia entre relâmpagos e nuvens de trovoada,
e aí nas tuas experiências, encontraste a minha alma,
quantas alegrias! quantas alegrias as tuas!

Walt Whitman (trad. de José Agostinho Baptista), in Jorge de Sousa Braga (organização), Animal Animal co, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005
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ANIMAL ANIMAL - um bestiário poético é uma coletânea preciosa sobre o tema a que, neste blogue temático, damos a designação de ZOO. Desse livro, organizado pelo amigo poeta Jorge de Sousa Braga, retirámos apenas este texto de W. Whitman, mas aqui deixamos a recomendação da respetiva consulta para um eventual tratamento desse tema. Contém mais de uma centena de poemas de autores portugueses, desde O'Neill a Fernando Assis Pacheco, e internacionais, de Alfonsina Storni a William Carlos Williams, de Lautréamont a Rainer Maria Rilke.
O poema de Whitman serve perfeitamente também o tema NAVEGAR.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O naufrágio





















------Apenas o hipopótamo e o seu dono escaparam ao naufrágio, saltando para cima de um pequeno bote.
O hipopótamo era o ganha-pão do homem e por isso quando o pequeno bote se começou a inclinar para o lado onde estava o animal, o homem ficou preocupado com a possibilidade de este se afogar. Para evitar que a pequena embarcação se desequilibrasse completamente o homem cortou um pedaço do hipopótamo e comeu-o, o que também era oportuno pois começava a estar com fome. O pequeno pedaço tirado ao hipopótamo permitiu que o bote recuperasse o equilíbrio entre os dois lados, como uma balança. Mas por pouco tempo. Novamente o bote começou a ir ao fundo do lado do hipopótamo. Este, apesar do bocado que lhe fora retirado, ainda era mais pesado que o seu dono. O homem decidiu então comer mais um pedaço do hipopótamo. Depois de o fazer, olhou para o barco e viu que ainda não era suficiente: tirou mais um bom bocado do animal e comeu-o. O barco recuperou o equilíbrio.
A viagem durou ainda algumas semanas e o homem, de seis em seis horas, via-se obrigado a cortar mais um bocado do animal.
Talvez não fosse a solução perfeita, mas não poderia correr o risco de perder o hipopótamo.

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Brecht, Lisboa, Caminho, 2004

Viagem










Foto
A.M.




Iremos juntos separados.
as palavras mordidas uma a uma,
taciturnas, cintilantes
– ó meu amor, constelação de bruma,
ombro dos meus braços hesitantes.
Esquecidos, lembrados, repetidos
na boca dos amantes que se beijam
no alto dos navios;
desfeitos ambos, ambos inteiros,
no rasto dos peixes luminosos,
afogados na voz dos marinheiros.

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas, Limiar, 1990, 10.ª ed.

Arte de navegar












Foto in
barramar.blog










Vê como  o Verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.

Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio, Limiar, 1971, 5.ª ed.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Quando nos iremos...?


Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?
Quando, do meio destes amigos que não conheço,
Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo,
Do meio destas vontades involuntariamente
Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?!
Ah, navio que partes, que tens por fim partir,
Navio com velas, navio com máquina, navio com remos,
Navio com qualquer cousa com que nos afastemos,
Navio de qualquer modo deixando atrás esta costa,
Esta, a sempre esta costa, esta sempre esta gente,
Só válida à emoção através da saudade futura,
Da saudade, esquecimento que se lembra,
Da saudade, engano que se deslembra da realidade,
Da saudade, remota sensação do incerto
Vago misterioso antepassado que fomos,
Renovação da vida antenatal, via láctea lenta
Absurdamente surgindo, estática e constelada
Do vácuo dinâmico do mundo.

Que eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento,
Que têm realidade na alma,
Que não são mitos, são a realidade,
Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles
Que vivem pedindo esmola com a vontade de pedi-la…
Eu quero partir, como quem exemplarmente parte.
Para que hei-de estar onde estou se é só onde estou?

[…]
Navio, navio, vem!
Ó lugre, corveta, vapor de carga, paquete,
Navio carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira,
Navio de passageiros de todas as nações diversas,
Navio todos os navios,
Navio possibilidade de ir em todos navios
Indefinidamente, incoerentemente,
À busca de nada, à busca de não buscar,
À busca só de partir,
À busca só de não ser,
À primeira morte possível ainda em vida –
O afastamento, a distância, a separar-nos de nós.

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.
Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não temos senão nós dentro e fora de nós,
Não temos nada, não temos nada, não temos nada…
Só a sombra fugaz no chão da caverna no desgosto da alma,
Só a brisa breve feita pela passagem da consciência,
Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho,
Só a roda multicolor girando branca aos olhos
Do fantasma inteiro que somos,
Lágrima das pálpebras descidas
De olhar velado divino.

Navio, quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me
A remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim!
Vá. Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa,
O rio entre mim e a margem,
O mar entre mim e o cais,
A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!

Álvaro de CamposPoesia dos Outros Eus
Mem Martins, Rio de Mouro,  Círculo de Leitores, 2007

Ode marítima (excerto)












Fernando Pessoa
por
Alfredo Luz






 […]

Tremo com um frio de alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez! 
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos! 
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo. 

Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe. 
Só o que está perto agora me lava a alma. 
A minha imaginação higiénica, forte, prática, 
Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e úteis, 
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros, 
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras. 
Abranda o seu giro dentro de mim o volante. 

Maravilhosa vida marítima moderna, 
Toda limpeza, máquinas e saúde! 
Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado, 
Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares, 
Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação 
Tão maravilhosamente combinando-se 
Que corre tudo como se fosse por leis naturais, 
Nenhuma coisa esbarrando com outra! 

Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas 
Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida 
Comercial, mundana, intelectual, sentimental, 
Que a era das máquinas veio trazer para as almas. 
As viagens agora são tão belas como eram dantes 
E um navio será sempre belo, só porque é um navio. 
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve 
Em parte nenhuma, graças a Deus! 

[…]

Álvaro de Campos, “Ode Marítima”, in Poesia dos Outro Eus,
 Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2007

Outono













Auto-retrato do
poeta marinheiro
Giuseppe Gianinni
Pancetti (Brasil)




Uma lâmina de ar
atravessando as portas. Um arco,
uma flecha cravada no outono. E a canção
que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
uma amarra. À espera do mar.
Esperando o silêncio.
É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
quando saio para a rua, molhado como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
como se, de repente, não houvesse mais nada senão
a imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
que a minha boca recusa. É outono
A pouco e pouco despem-se as palavras.


Joaquim Pessoa125 Poemas - Antologia Poética

Apresentação



Cantar
não é talvez suficiente.
Não porque não acendam de repente as noites
tuas palavras irmãs do fogo
mas só porque palavras são
apenas chama e vento.

Eu venho incomodar.
Trago palavras como bofetadas
e é inútil mandarem-me calar
porque a minha canção não fica no papel.
Eu venho tocar os sinos.
Planto espadas
e transformo destinos.
Os homens ouvem-me cantar
e a pele
dos homens fica arrepiada.
E depois é madrugada
dentro dos homens onde ponho
uma espingarda e um sonho.

E é inútil mandarem-me calar.
De certo modo sou um guerrilheiro
que traz a tiracolo
uma espingarda carregada de poemas
ou se preferem sou um marinheiro
que traz o mar ao colo e meteu um navio pela terra dentro
e pendurou depois no vento
uma canção.

Já disse: planto espadas
e transformo destinos.
E para isso basta-me tocar os sinos
que cada homem tem no coração.

Manuel Alegre, «Praça da Canção»
in Obra Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

Fala do homem nascido













Foto
A.M.






(Chega à boca da cena, e diz:)

Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.

Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.

Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.

Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

António Gedeão, Teatro do Mundo, 1958


Aqui te amo










Foto
A.M.




Aqui te amo.
Nos sombrios pinheiros desenreda-se o vento.
A lua fosforesce sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.

Desperta-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata desprende-se do ocaso.
Às vezes uma vela. Altas, altas estrelas.
Ou a cruz negra de um barco.
Sozinho.

Às vezes amanheço, e até a alma está húmida.
Soa, ressoa o mar ao longe.
Este é um porto.
Aqui te amo.

Aqui te amo e em vão te oculta o horizonte.
Eu continuo a amar-te entre estas frias coisas.
Às vezes vão meus beijos nesses navios graves
que correm pelo mar aonde nunca chegam.
Já me vejo esquecido como estas velhas âncoras.
São mais tristes os cais quando fundeia a tarde.
A minha vida cansa-se inutilmente faminta.
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.
O meu tédio forceja com os lentos crepúsculos.
Mas a noite aparece e começa a cantar-me.
A lua faz girar a sua rodagem de sonho.

Olham-me com teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento
querem cantar o teu nome com as folhas de arame.

Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007
(tradução de Fernando Assis Pacheco)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Dois cigarros









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A. M.





Cada noite é a libertação. Contemplam-se os reflexos
no asfalto das avenidas que se abrem luminosas ao vento.
Cada raro transeunte tem um rosto e uma história.
Mas a esta hora deixa de haver cansaço: os milhares de luzes
são todos para quem pára para riscar um fósforo.

A chamazinha apaga-se contra o rosto da mulher
que me pede lume. Apaga-se com o vento
e a mulher, frustrada, pede-me outro,
que também se apaga: a mulher agora ri-se baixinho.
Aqui podemos falar em voz alta e gritar,
que ninguém ouve. Erguemos os olhar
para todas as janelas - olhos apagados que dormem -
e esperamos. A mulher encolhe os ombros
e queixa-se de que perdeu o xaile às cores
que a aquecia à noite. Mas basta apoiar-se
contra a esquina e o vento não é mais do que um sopro.
No asfalto gasto há já uma beata.
Este xaile veio do Rio, diz-me a mulher,
que está contente por tê-lo perdido, pois me encontrou.
Se o xaile veio do Rio, atravessou de noite
o oceano inundado de luzes pelo grande transatlântico.
Noites de vento, sem dúvida. É um presente dum seu marinheiro.
O marinheiro desapareceu. A mulher sussurra-me
que, se for com ela, me mostra o retrato
de caracóis e bronzeado. Viajava em vapores sebentos
e limpava as máquinas: eu sou mais bonito.

No asfalto há duas beatas. Olhamos para o céu:
a janela lá em cima - aponta com o dedo - é a nossa.
Mas lá em cima não há aquecedor. De noite, os navios perdidos
têm poucas luzes ou apenas as estrelas.
Atravessamos o asfalto de braço dado, brincando a aquecer-nos.


Cesare PaveseTrabalhar Cansa, Lisboa, Cotovia, 1998
(Tradução de Carlos Leite)


Poema da malta das naus



Lancei ao mar um madeiro, 
espetei-lhe um pau e um lençol. 
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol. 

Deu-me o vento de feição, 
levou-me ao cabo do mundo, 
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão. 

Dormi no dorso das vagas, 
pasmei na orla das praias, 
arreneguei, roguei pragas, 
mordi peloiros e zagaias. 

Chamusquei o pêlo hirsuto, 
tive o corpo em chagas vivas, 
estalaram-me a gengivas, 
apodreci de escorbuto. 

Com a mão esquerda benzi-me, 
com a direita esganei. 
Mil vezes no chão, bati-me, 
outras mil me levantei. 

Meu riso de dentes podres 
ecoou nas sete partidas. 
Fundei cidades e vidas, 
rompi as arcas e os odres. 

Tremi no escuro da selva, 
alambique de suores. 
Estendi na areia e na relva 
mulheres de todas as cores. 

Moldei as chaves do mundo 
a que outros chamaram seu, 
mas quem mergulhou no fundo 
do sonho, esse, fui eu. 

O meu sabor é diferente. 
Provo-me e saibo-me a sal. 
Não se nasce impunemente 
nas praias de Portugal. 

António Gedeão, Teatro do Mundo, 1958

Padrão




















O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

Fernando Pessoa, Mensagem e Outros Poemas Afins

Viagem









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A.M.





Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura
O que importa é o partir, não o chegar.

Miguel Torga, «Câmara Ardente» in Antologia Poética,
Casais de Mem Martins / Rio de Mouro, Círculo de Leitores

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Ítaca




Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria - nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.

Contantino Cavafy, 90 e mais quatro poemas,
Porto, Edições Asa, 2003, 3.ª ed.
Tradução de Jorge de Sena



quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A poesia vai acabar


















A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?»   E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? -

Manuel António Pina, Poesia Reunida,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2001





sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Não tenhas medo do amor...









Foto A.M.






Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e a genciana; as ervilhas de cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca

foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no 
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu 
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Maria do Rosário Pedreira,
Poesia Reunida,
Lisboa, Quetzal, 2012

Dose da fatia de um doce





















Dá-me um bocadinho do teu amor     todos os dias
não mo dês todo hoje     que amanhã vou precisar dele outra vez
eu sei     conheço-me bem
e nesse aspecto     sou exactamente como o resto da humanidade
preciso de ser amado todos os dias
só espero não morrer muito velhinho     para que o teu amor me dure até ao fim da vida

João Negreiros
O cheiro da sombra das flores,
Porto, 2009

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Os gatos










Foto A.M.



Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem


Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa


Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

Manuel António Pina
Como se desenha uma casa,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2011

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Encontro e desencontro













certo dia que lhes pareceu perfeito
ele veio do lado esquerdo
ela apareceu do lado direito

depois desse encontro
levam-se ainda pela mão um ao outro
e nenhum deles suspeita
porque nem temem a mútua perda
que chegará o dia em que ele sairá pela direita
e ela desaparecerá pela esquerda

Anthero Monteiro
15/10/2011

O Menino Jesus não queria ser Deus


O menino Jesus não fugia à escola. Os outros meninos juntavam-se para fazer maldades, o menino Jesus ficava sempre de fora. Os meninos tinham pena dele, mas tinha que ser assim: ele era Deus, e Deus não pode fazer determinadas coisas.
Por isso, o menino Jesus não ia para o rio roubar fruta, nem dizia coisas indecentes. Nem sequer podia jogar à bola com os outros, porque fazia sempre milagres.

Até que um dia o menino Jesus foi ter com S. José e disse-lhe:

- Pai, não quero ser mais Deus.

- Isso não é comigo, é com a tua mãe.

Foi ter com a Virgem Maria. Mas ela disse-lhe:

- Agora já és Deus e pronto. Já não se pode fazer nada. Tu hás-de habituar-te, a mim a princípio também me meteu confusão. E agora vai estudar, porque amanhã tens que ensinar os doutores da lei.

O menino Jesus ficou muito triste e nessa noite não estudou nada. O milagre dos doutores por pouco ficava estragado. Nossa Senhora zangou-se e disse-lhe que o acusava à pomba.

Mas ele, como era Deus, sabia tudo; portanto, sabia que as pombas não fazem mal a ninguém e ria-se da Virgem Maria. S. José também lhe dizia:

- Não metas medo ao rapaz. Não te calas com o diabo da pomba, tu és mas é maluca.

- Não tens nada com isso. Ainda se o menino fosse teu filho, mas não. Falas só para questionares, és mau. Daqui a pouco começas para aí a dizer porcarias.

Mas estas discussões acabavam sempre bem, porque o menino Jesus fazia um milagre.

Um dia pediu à mãe um irmão, mas ela respondeu-lhe de maus modos. Os vizinhos riam-se muito de S. José, faziam troça de S. José por o filho dele ser filho de uma pomba, e como S. José era muito bom, o menino Jesus tinha pena e fazia mais milagres.

Um dos vizinhos tinha um filho muito mau chamado Alberto Caeiro, que nunca ia à escola, que se metia com as raparigas. O menino Jesus tinha muita inveja dele porque ele sabia nadar como ninguém e era dono duma caverna ao pé do rio.

Às vezes ia espreitá-lo e via-o lá dentro com as raparigas.

Acendiam fogueiras, comiam. O que o menino Jesus mais queria era ser um rapaz como ele. Mas a mãe queria que ele fosse Deus e o Deus que estava no céu também queria que ele fosse Deus, porque alguém tinha que viver aquela vida que estava escrita nos livros, uma vida pequenina (só durava 33 anos) e ainda por cima que acabava mal! O menino Jesus sabia tudo isto porque era Deus, e podia adivinhar.

Como era muito bom, não queria zangar a mãe, nem aborrecer o pai do céu. Mas também não queria ser mais Deus, porque ele é que sabia o que aquilo era.
E então começou a convencer o outro rapaz a trocar com ele. O outro a princípio não queria, bateu-lhe, etc. O menino Jesus podia ter feito um milagre, fazer-lhe cair o braço, ou chamar as legiões de anjos todas. Mas não. Disse-lhe assim:

- Ou trocas comigo ou transformo-te num porco.

O rapaz ficou assustadíssimo e fugiu para casa. Mas o menino Jesus fê-lo voltar para trás com um milagre. E voltou a dizer-lhe:

- Já sabes. Agora escolhe.

O outro estava muito aflito. Ofereceu-lhe a caverna, ofereceu-lhe tudo. Mas o menino Jesus não quis.

- E depois eu, também posso fazer milagres?

- Sim, disse o menino Jesus.

- Então obrigo-te a destrocar outra vez comigo.

E quando disse isto julgou que tinha vencido o menino Jesus. Mas o menino Jesus disse:

- Agora ainda sou Deus. E posso fazer um milagre. Esse milagre é que tu não possas nunca obrigar-me a destrocar.

- Está bem, disse o outro.

Foram sozinhos para a floresta e lá fizeram a troca. O menino Jesus ficou o outro, e o outro ficou menino Jesus. E vieram por aí fora a conversar os dois.

E só depois é que viram: afinal de contas não tinham trocado nada, porque o menino Jesus só fazia coisas perfeitas e a troca fora tão perfeita que tinha ficado tudo na mesma. E o menino Jesus, o de agora, voltou para casa muito aborrecido.
Afinal o pai do céu era mais esperto do que ele. E fez mesmo umas figas, coisa que nunca tinha feito na vida, quando, ao deixar as últimas árvores da floresta, viu uma pomba muito branca que levantava voo, fugia.

- Oh, disse ele quase a chorar.

Manuel António Pina, O País das Pessoas de Pernas para o Ar

Foto in Papa-Livros (Blogue)