sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Os 27 filmes de Greta Garbo



27, tem certeza? Não importa.
Para mim são 24. Lembra-me bem.
Conto um por um, de 1926
a 1941, de vida contínua.
De minha vida. De The Torrent a Two-faced woman.
Entre os dois, um abismo
onde aprisionei, para meu gozo, Greta Garbo.
Ou ela me aprisionou?
Será que não houve nada disso?
Alucinação, apenas?
O tempo é imperscrutável. São tudo visões.
Greta Garbo, somente uma visão, e eu sou outra.
Neste sentido nos confundimos,
realizamos a unidade da miragem.
É assim que ela perdura
no passado irretratável e continua no presente,
esfinge andrógina que ri
e não se deixa decifrar.

Contei-os todos: 24 filmes americanos. Meus.
Não me interessam diretores.
Monta Bell, Fred Niblo, Clarence Brown,
nem penso em Edmund Goulding, para mim não existem
Victor Seastrom, Sidney Franklin, John S. Robertson.
Esqueço Jacques Feyder, esqueço Robert Z. Leonard,
de que me serve George Fitzmaurice, não careço
de Rouben Mamoulian e Richard Boleslawski,
para o inferno com George Cukor,
e com ele Lubitsch!
Dela quiseram fazer uma ninfa obediente,
autômato de impulsos programados.
Foram vencidos.
E que farei de seus galãs? Tenho pena
de meros circunstantes entulhando
a rota de alva solidão.
Não vou sequer nomeá-los. Sombras-sombras
que um dia tremularam... se apagando.

Todo o espaço é ocupado por Greta Garbo
na mínima tela dos olhos, na imensa
perspectiva do jovem de 24 anos, e de 24 filmes
a desfilarem até o espectador beirando 40 anos,
que já tem suas razões de descrer e deslembrar
e não deslembra. Sempre a seu lado Greta Garbo.
Caminhamos juntos. Não nos falamos. Não é importante.
Súbdito da Rainha Cristina, atento à voz de contralto
de Ana Christie, espião da espiã Mata Hari,
disfarço-me de groom no Grande Hotel
para conferi-la na intimidade sem véus de bailarina.

Não julgo seus adultérios burgueses
nem me revolta sua morte espatifada contra a árvore
ou sob as rodas da locomotiva.
Sou seu espelho, seu destino.
Faço-me o que ela deseja. As you desire me.
e aprofundo a lição de Pirandello
na ambigüidade do cinema. Que é um filme?

Que é a realidade do real
ou da ficção?
Que é personagem de uma história
mostrada no escuro, sempre variável,
sempre hipótese,
na caleidoscópica identidade da intérprete?

Como posso acreditar em Greta Garbo
nas peles que elegeu
sem nunca se oferecer de todo para mim,
para ninguém?
Enganou-me todo o tempo. Não era mito
como eu pedia. Escorregando entre os dedos
que tentavam fixá-la,
Marguerite Gauthier, Lillie Sterling
Susan Lenox, Rita Cavallini,
Arden Stuart,
Marie Walewska, água, água, múrmura água
deslizante,
máscaras tapando a grande máscara
para sempre invisível.
A vera Greta Garbo não fez os filmes
que lhe atribui minha saudade.
Tudo se passou em pensamento.
Mentem os livros, mentem os arquivos
da ex-poderosa Metro Goldwin Mayer.

Agora estou sozinho com a memória
de que um dia, não importa em sonho,
imaginei, maquinei, vesti, amei Greta Garbo.
E esse dia durou 15 anos.
E nada se passou além do sonho
diante do qual, em torno ao qual, silencioso,
fatalizado,
fui apenas voyeur.

Carlos Drummond de Andrade,
Farewell, Porto, Campo das Letras, 1997

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Couraçado Potemkin



(depois de ver o filme de Eisenstein)

Entre a esquadra que aclama
o couraçado passa.
Depois da fila interminável que se alonga
sobre o molhe recurvo na água parda,
depois do carro de criança
descendo a escadaria,
e da mulher de lunetas que abre a boca em gritos mudos,
o couraçado passa.
A caminho da eternidade. Mas
foi isso há muito tempo, no Mar Negro.

Nos cais do mundo, olhando o horizonte,
as multidões dispersas
esperam ver surgir as chaminés antigas,
aquele bojo de aço e ferro velho.
Como os vermes na carne podre que
os marinheiros não quiseram comer,
acotovelam-se sórdidas na sua miséria,
esperando o couraçado.

Uns morrem, outros vendem-se,
outros conformam-se e esquecem e outros são
assassinados, torturados, presos.
Às vezes a polícia passa entre as multidões,
e leva alguns nos carros celulares.
Mas há sempre outra gente olhando os longes,
a ver se o fumo sobe na distância e vem
trazendo até ao cais o couraçado.

Como ele tarda. Como se demora.
A multidão nem mesmo sonha já
que o couraçado passe
entre a esquadra que aclama.
Apenas, com firmeza, com paciência, aguarda
que o couraçado volte do cruzeiro,
venha atracar no cais.

Mas mesmo que ninguém o aguarde já,
o couraçado há-de chegar. Não há
remédio, fugas, rezas, esconjuros
que possam impedi-lo de atracar.

Há-de vir e virá. Tenho a certeza
como de nada mais. O couraçado
virá e passará
entre a esquadra que o aclama.

Partiu há muito tempo. Era em Odessa,
no Mar Negro. Deu a volta ao mundo.
O mundo é vasto e vário e dividido, e os mares
são largos.
Fechem os olhos,
cerrem fileiras,
o couraçado vem.

São Paulo, 23/12/1961

Jorge de Sena, «Peregrinatio ad Loca Infecta», 1969, in
Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI,
Porto, 2009, Porto Editora

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Uma imagem de Leda













O cinema é cruel
como um milagre. Nós
sentamo-nos na sala
às escuras pedindo só
ao espaço branco
e vazio que se
mantenha puro. E
de repente apesar disso
fica negro. Não pela
mão que segura
a caneta. Não há
mensagem. Somos nós
aparecendo nus
na margem do rio de
corpo em cruz enquanto
a máquina voa
mais perto. Gritamos
tagarelamos saltiamos e
lavamos o cabelo! É
por nossa oração ou
desejo que isto
acontece? Oh que luz
é esta que firme
nos agarra? Até nossos
membros se apressam
levando à desgraça sob
esse olho branco
como se houvesse verdadeiro
prazer em amar
uma sombra e acariciar
um disfarce!

Frank O’Hara in
Jorge Sousa Braga, António Ferreira e Álvaro Magalhães,

O Bosque Sagrado, Porto, Gota de Água, 1986

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O pé descalço de Ava Gardner



é
um pesadelo, quando não
é já possível afastá-lo

da memória
embora eu nunca mais tenha ido
ver um filme
com Ava Gardner

depois de uma vez
ter visto como o tecido
se abre

para deixar ver um dedo do pé.
Há coisas piores que os dedos dos pés, eu
sei

mas não há nada que
se possa comparar ao
dedo de Ava Gardner.

Abre-
-se uma cortina e eu
penetro no

sonho louco
de seda da China, plissé, tule
e sandálias

leves arremessadas
para o lado. Ela está descalça!
Mas para onde vai o calor

quando se dissipa?
Que significam os dedos abertos sobre
uma coxa? Quem sofreu o

trágico
acidente, quando ele quis entrar
pela primeira vez e não encontrou a chave que

costumava estar sempre debaixo do tapete, e
quem é aquele que agora jaz
meio nu no corredor

sem sangrar?
Quando saí de vez do cinema
ainda um dedo do pé

mexia.
A memória é um dos lados
o outro, nunca lá chegaremos.

Rolf Dieter Brinkmann,
in Jorge Sousa Braga, António Ferreira e Álvaro Magalhães,
O Bosque Sagrado, Porto, Gota de Água, 1986

O prazer do cinema



Aos domingos
com o calor da tarde
é quando ao homem apetece
montar a mulher.
Como a casa é pequena,
dá cinco paus ao filho
e manda-o ver o Mickey Rooney.
Ainda a fita não vai a meio
e já o rapaz tem no escuro
quem lhe desaperte a carcela.

Assim começa o prazer do cinema.

Eugénio de Andrade,
in Jorge Sousa Braga, António Ferreira e Álvaro Magalhães,
O Bosque Sagrado, Porto, Gota de Água, 1986

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

EDGAR CARNEIRO REVIVE NA ONDA POÉTICA


Edgar Carneiro, o poeta de Espinho que, durante anos, nos deu o privilégio da sua presença habitual na Onda Poética, teve que deixar-nos há dias. Os deuses precisam de poetas lá no seu reino...
Entretanto, a Onda Poética teima em tê-lo aqui connosco, porque ele nos é indispensável. Ele, a atenção que sempre nos devotava, ele e a sua poesia.
É por isso que, na sessão do dia 10 de fevereiro, na Junta de Freguesia de Espinho, pelas 21.30 h, estaremos lá todos e mais alguns para fazer um périplo na sua poesia.
Juntem-se a nós nesta homenagem tão simples, mas tão devida por todos aqueles que conheceram o gentleman e ouviram e leram este poeta que enriqueceu a cidade e a nossa vida com a sua vida.
Venham dizer connosco: OBRIGADO, EDGAR CARNEIRO.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Bucólica















acabo de bater
nestas teclas tão massacradas
a expressão
peste bubónica

o dicionário do office
que pelos vistos sabe muito
de eufemismos
quer à viva força
que a mude
para peste bucólica

definitivamente
vou fazer-lhe a vontade

assim a vida não fica tão negra
muito menos a peste

assim podemos imaginar
os campos juncados de cadáveres insepultos
e um leve aroma de ervas e pampilhos
sobre tudo aquilo

nem sequer dá para estremecer com a ideia
de que um dia volte a grassar
aquele horrível flagelo
é apenas uma cena bucólica
e até aquele urubu não passa de uma pomba

obrigado senhor office
por este bucolismo do caralho

Anthero Monteiro