sábado, 30 de julho de 2011

Las meninas (3)

Diego Velásquez,
Las meninas, 1656
















eu fico à esquerda no computador.
durante a tarde vou escutando discos.
a teresa foi buscar lápis de cor
e faz na folha grandes asteriscos:

desenha a jarra e a flor e outra flor;
mas como a vassourinha trás dos ciscos
a joana desaustina em derredor:
vai-se à obra da irmã e enche-a de riscos.

no espelho a luz entre água e sombras voga
e em aéreos espaços me detenho,
com a porta a rasgar-se mais ao fundo.

e o cão. e os sete anões. assim se joga,
do olhar à flor, do lápis ao desenho,
o jogo das meninas com o mundo.

Vasco Graça Moura, Poesia 1963-1995,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2001

A andorinha e Fra Angelico



Fra Angelico,

Anunciação,

1437-46




a cor faz-se luz
dimana o esquemático desenho candura e
recolhida entre dois arcos está a virgem - ao fundo
a sala adivinha-se vazia - sob a abóbada
onde ínfimos astros cintilam veio o anjo
com seu esplendor de asas em ouro trazer
o doce recado: hás-de conceber e dar à luz um filho
que reinará eternamente sob a casa de jacob

angelico estremeceu com a inesperada revelação e
na cela retirado deu vida às celestiais criaturas
mas só ele e a andorinha ouviram o segredo
que deus mandara gabriel anunciar

Al Berto, O Medo,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997

Eugénio e os pintores

Jardim de S. Lázaro-





sei de pintores que se inquietavam por
pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no

lento regresso a casa, as aves recolhiam e
eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos


do silêncio. seria à mesa do café, numa
sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
do atelier que lhe propunham essa
revisita das fontes, das perturbadas melancolias

que ele havia de dizer por palavras no papel.
mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
a sua fome do real nas artes da pintura.

era o cruzar das solidões comovidas: tudo
seria reescrito, portuense, partilhado
com uma densa, irisada exactidão, lá onde
umas pétalas da música começam

a partir de uma cor ou de um murmúrio,
de um rosto ou de uma nuvem,
de uma explosão do sol, de uma agonia.
era nos anos sessenta, era em s. lázaro.

Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000, Círculo de Leitores

Migração do amarelo





Foto

A.M.
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Não fales. Morre sempre um segredo
quando falas:
o amarelo das maias, do tojo, das acácias,
o amarelo com que é feito o verde.
O funeral é bonito com todas as cores presentes
mas o vermelho nunca mais será o mesmo.
As papoilas abandonam as margens do comboio
onde escrevo este poema. Emigram talvez,
o que lhes resta?
O frio que lhes entra no corpo encontra cerradas
as portas da alma: «volto já»,
a esperança pendurada onde devia estar:
«já fui» com o amarelo, com as papoilas
neste comboio que repete, como quem anda sobre trilhos.
«Não fales. Deixa vir a mim o amarelo».

Rosa Alice Branco, «O único traço do pincel» in
Soletrar o Dia, V. N. Famalicão, Quasi Edições, 2002

Receita para fazer o azul



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Foto de
Loulé
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Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão Ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice, Poesia Reunida, 1967 – 2000,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A última pincelada



Viveu em tempos um pintor que nunca conseguia acabar de pintar uma ave, fosse ela uma cegonha ou uma garça. Quando se preparava para dar a última pincelada, ela levantava voo.

E o pintor ficava muito tempo ainda a persegui-la com o pincel no céu azul...

Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu,
Lisboa, Fenda, 1991, 2.ª ed.

Para fazer o retrato de um pássaro














Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta
esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar
se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar
então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro

Jacques Prévert
(tradução de Eugénio de Andrade)

Pintura

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Picasso,
Auto-retrato,
1972


Noutro dia no museu
expôs-se lá uma tela
e logo o povo foi vê-la
quando o facto conheceu.

Mas o grande problema
era ao vê-la adivinhar
qual seria enfim o tema
que o seu autor quis pintar.

Um disse: - Aquilo é um pardal!
Outro disse que o não era:
- O senhor vê muito mal.
Aquilo é burro ou é fera.

E assim porfiavam todos
com os mais diversos modos
com o mais diverso trato
até que veio o artista
e disse: - Que fraca vista!
É o meu auto-retrato!

Anthero Monteiro, A Sara Sardapintada,
Porto, Corpos Editora, 2004

(Epigrama escrito pelo autor aos 16 anos,
altura em que ainda nada entendia de pintura modernista.
Ainda hoje não sabe se entende...)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Estudo para um quadro



Foto
A.M.

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O lápis, o pimento e o alho francês juntaram-
-se por acaso, em cima da mesa da cozinha. En-
tão, poderiam ter servido para uma natureza
morta; e um outro sentido nasceria, da sua
coincidência, se a toalha fosse azul e vermelha.
No entanto, o lápis acabou a fazer a lista das
compras, o pimento foi parar à panela do arroz
e o alho francês, cortado às rodelas, ferveu
durante uns minutos até a sopa acabar de cozer.

Nuno Júdice, Poesia Reunida, 1967 – 2000,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

O menino desenha




O menino desenha
O pólen do seu lápis cai nas folhas maltratadas;
No papel, a mãezinha é apenas uma bolha.
O menino risca e pede a Deus que o seu pai venha
Ver estas coisas desenhadas.

A irmãzinha mais moça quer o lápis e olha,
Uma lágrima em bico o seu olhar envidraça;
A chuva do menino são uns pontos tão depressa
Que o lápis se estilhaça.

O menino faz o galo, a torre, a casa e o judeu,
Que mostra aos outros meninos:
Mas a casa é que tem as pernas e o galo é que abre janelas,
A torre é que usa as barbas e o judeu tem os sinos
Por não ter nada de seu.
Oh meu rico menino, que fazes as coisas belas!

A irmã mais velha do menino há-de
Ser a mãe dos sobrinhos que desenharão também
O tio com uma bolha, como ele vê em bolha a sua mãe.
"Tem óculos, não está quieta e é muito boa";
O menino garatuja,
E vê-se a luz e os vidros, e até se vê a bondade
Que veio à sua mão suja
Do lado em que estava a pessoa.

O irmãozito do menino
Também está metido, e bem, neste quadrado:
É aquela figura de que o avô disse: -"É um pepino!",
Sem se lembrar que o artista podia ficar magoado.

Ah, meu menino, minha estrela a arder de dia,
Não deixes que te mexam no traço virginal que aprendeste
Quando eras o fio de sol na escuridão que enchia
A tua mãe - bolhinha, enquanto te não desprendeste.

Vitorino Nemésio, Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1988

Pede-se a uma criança: Desenha uma flor!


Foto A.M.






Pede-se a uma criança: Desenha uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

José de Almada Negreiros, Obras Completas 4/ Poesia,
Lisboa, Editorial Estampa, 1971

Novo tema: POESIA & PINTURA





António Joaquim, Porta,

Acrílico sobre tela, 2003









Muitos poetas escrevem sobre desenho, pintura, sobre obras de arte de todas as épocas, de todas as escolas e técnicas.
Esta poesia designa-se por poesia ecfrástica, ou seja, a representação verbal de representações visuais (do grego "ekphrasis", derivado de um verbo que significa "descrever com elegância"). Diz respeito também à escultura.


Mas é do desenho e da pintura que queremos falar por ora, colecionando textos de muitos autores sobre o assunto. Ocorrem-nos desde já alguns nomes que se dedicam à poesia ecfrástica: Al Berto, Nuno Júdice, Jorge de Sena, Vasco Graça Moura, João Miguel Fernnades Jorge, José Jorge Letria, entre muitos outros.


Então, comecemos:

POESIA & PINTURA

Os amantes















Marc Chagall,
Les amoureux
aux marguerites



Os amantes calam.
O amor é o silêncio mais fino,
o mais trémulo, o mais insuportável.
Os amantes buscam,
os amantes são os que abandonam,
são os que mudam, os que esquecem.

O coração diz-lhes que nunca hão-de encontrar,
não encontram, buscam.
Os amantes andam como loucos
porque estão sós, sós, sós,
entregando-se, dando-se a cada momento,
chorando porque não salvam o amor.

Preocupa-os o amor. Os amantes
vivem o dia-a-dia, não podem fazer mais, não sabem.
Estão sempre a ir,
sempre, para qualquer parte.
Esperam,
não esperam nada, mas esperam.

Sabem que nunca hão de encontrar.
O amor é o adiamento perpétuo,
sempre o passo seguinte, o outro, o outro.
Os amantes são os insaciáveis,
os que sempre – que bom! ¬– hão de estar sós.
Os amantes são a hidra do mito.

Têm serpentes em lugar de braços.
As veias do pescoço dilata-se-lhes
também como serpentes para asfixiá-los.
Os amantes não podem dormir
porque se adormecem são comidos pelos vermes.
Abrem os olhos no escuro
e cai neles o espanto.
Encontram escorpiões debaixo do lençol
e a sua cama flutua como sobre um lago.

Os amantes são loucos, apenas loucos,
sem Deus e sem diabo.
Os amantes saem das suas grutas
trémulos, famintos,
para caçar fantasmas.
Riem daqueles que tudo sabem,
dos que amam para sempre, veridicamente,
dos que acreditam no amor
como uma lâmpada de azeite inesgotável.

Os amantes brincam a agarrar a água,
a tatuar o fumo, a não se irem.
Jogam o longo, o triste jogo do amor.
Ninguém se há-de resignar.
Dizem que ninguém se resignará.
Os amantes envergonham-se de toda a conformidade .
Vazios, mas vazios de uma costela à outra,
a morte fermenta-lhes por detrás dos olhos,
e eles caminham, choram até à madrugada
em que comboios e galos se despedem dolorosamente.

Chega-lhes por vezes um odor a terra recém-nascida,
a mulheres que dormem com a mão no sexo,
deleitadas,
a arroios de água terna e a cozinhas.

Os amantes põem-se a cantar entre lábios
uma canção não aprendida,
e vão-se embora chorando, chorando,
a formosa vida.

Jaime Sabines, Poemas del Alma
(Tradução de Anthero Monteiro)

segunda-feira, 18 de julho de 2011

MAR / MULHER: tema para a Onda Poética de Julho


Sessão da Onda Poética de 20/7/2011

Tema: MAR / MULHER

Coordenação: ANTHERO MONTEIRO

Música: CARLOS ANDRADE

Leituras: COLETIVO DA ONDA

21.30 horas

Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva
ESPINHO

Entrada livre