terça-feira, 30 de março de 2010

Sento-me então a olhar o rio...




Foto: A.M.










Sento-me então a olhar o rio,
os pensamentos formam cardumes
que contra a corrente se insurgem
mas as águas são inexoráveis;
olhando-as, a superfície cintila,
propaga-se como se fossem notas
de um piano na garupa de um cavalo
que se dirige para o mar.
O rio bebe as cores da cidade,
sobre elas eu abro o coração
em que te encontras, as colinas
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos
é momento de pausa: as coisas
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar
como tudo o que a memória não reteve.
Mas este rio
já foi longamente folheado, nele
escrevemos o romance de amor
que nos deu uma casa,
nos cortou o cabelo, nos afastou
das rugas, nos entregou o azul
(tecido, nuvem, divã, janela...)
o voo das artérias, lugar do corpo,
portas que nos amanhecem, espelho
onde fazemos fluir a vida. Acordes
da guitarra que forja o horizonte,
que guia o sinuoso voo das gaivotas
e acaricia a pele que rasga atalhos
no interior dos sonhos. Estarei
vivo enquanto assim me guardar
teu coração. E no seu lucilar,
esta água imita o fogo
que devora sombras e escombros,
libertando a asa que no sangue
respira. A foz está próxima,
mas o horizonte é o teu olhar.
No leitor do carro, a guitarra flexível
sublinha o que divago; os acordes
disparam,
encontram-me na trajectória do seu alvo.

Egito Gonçalves, A Ferida Amável

Exercício de pura circunstância





Foto in
wikipédia












Cedofeita: a passo, cada tarde
a faço, sem projecto. Ímpar, traço
pedras gastas, e casas, nesse baço
regresso, quase espera, quando arde

ao longe, o quarto, e vão, trespasso
a carne, não de largo, que se fecha.
Um corpo será alvo porque deixa
aí, seu rasto. Que boca ou braço

é vento? Esparsa, a luz separa
a morte de seu laço; e já tal
olhar marca os modos e passagens

de manchas e perfis onde se pára.
Tão móveis são as formas que sinal
é o canto, possível, das imagens.


Diogo Alcoforado,
in Eugénio de Andrade, O Poeta e a Cidade (antologia)

Dobrada à moda do Porto




















Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era ser o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


Álvaro de Campos

(Obs)cena (Rua de Ceuta / Rua José Falcão)















é ali que o rio coagula por instantes

junto ao semáforo no topo da rua

a mulher planta a vara do corpo na margem
e não sei se é da boca se do avental
que retira pétalas obscenas
para as arremessar

é estranho vê-la desentranhar-se também
e esvaziar a seiva toda fel
para não ser mais que a sombra de um caule

os homens sorriem sem nada compreender
o sinal muda a cor sem nada compreender
o rio volta a fluir sem nada compreender
e a vara esguia esgueira-se
sem compreender que ninguém a compreenda

a rua rescende agora a flores pisadas
inutilmente venenosas


Anthero Monteiro (inédito)

Tenho a certeza...





Foto in
shw.lfvieira.
fotopages.com








tenho a certeza que eras tu com uma
criança na voz um planeta nos olhos
na outra tarde de terça-feira onde as

horas são poucas e os sentidos quem
castiga o corpo. que te ensinaria eu se
me falasses do tratado de Tordesilhas
entre a prosa e o verso? a alma é um

órgão ímpar e as amibas procriam sem
pecar (palavra de escuteiro). eu bem
vi ao caminhar ias confiando palavras à
branca página de terra castanha assim

como quem distraído vai escrevendo o
poema do outono de suas pegadas talvez
mesmo em S. Lázaro primavera

João Luís Barreto Guimarães
in Eugénio de Andrade, O Porto e a Cidade (antologia)

As noites do Porto






Foto A.M.













Shakespeare podia ter vivido aqui. Podia
ter dançado na noite de S. João, quando o rio
transborda para as ruas nas correntes
humanas que as inundam. Podia ter escrito
nos invernos de ausência o que a noite
ensina sobre a privação. Podia ter
ensinado, à beira do cais, que o tempo lascivo
corre como a água, levando o que não há-de
voltar e trazendo o que nunca terá nome
nem corpo. As almas, que empalidecem quando
o sol poente se reflecte nos vidros,
cantam bruscamente o verão: reflexo de um
reflexo, frutos que se deixam colher pela
memória, seres sem ser que não hão-de voltar
a nascer. Mas o que ele cantou, podia
tê-lo cantado aqui. Todos os lugares são,
afinal, lugar nenhum para quem não habita
senão a própria voz: sonho de outra margem,
cantor perdido no labirinto das pontes. Perto
da foz, sem o saber; sonhando a nascente,
como se não fosse ele próprio a única fonte.

Nuno Júdice

segunda-feira, 29 de março de 2010

As ruas sombrias









Foto A.M.










Não vai servir de nada este cigarro, amigos.
As cartas que escrevi para a família
vão cinzentas de tédio,
minha noiva também vai estranhar
as palavras de água que lhe envio
como vós estranhais meus passos na cidade,
meus olhares que passeiam nas ruas sombrias
dos comércios modestos,
das casas de penhor, dos alfaiates pobres,
das capelistas com pústulas nas faces.
Não tenho nada para vos contar,
são coisas tão vulgares as que transporto
das minhas excursões sem companhia
que as guardo comigo.
Naquela rua estreita que desconheceis
chorava hoje a jovem empregada
de uma casa de louças.
Só eu passei na rua àquela hora
e ela corou quando vi suas lágrimas.
São histórias assim as que trazem os dias.
Amigos: este cigarro não resolve nada.

António Rebordão Navarro

Nasceu no Porto em 1933. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, foi chefe de secção de uma Caixa de Previdência e delegado do Ministério Público nas comarcas de Vimioso e de Amarante, dedicando-se depois ao exercício da advocacia na sua cidade. Secretariou e, posteriormente, dirigiu a revista literária "Bandarra", fundada por seu pai, o escritor Augusto Navarro. Foi co-director da revista de poesia "Notícias do Bloqueio". Durante vários anos presidiu à Assembleia Geral da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e foi vogal do Conselho Fiscal da Sociedade Portuguesa de Autores, tendo também sido director da Biblioteca Municipal do Porto. Colaborou em diversas publicações e está representado em várias antologias. Alguns dos seus poemas estão traduzidos para castelhano, francês, checo e sueco. Em 2002 foi-lhe atribuído o "Prémio Seiva".

In
www.wook.pt/authors

O lugar da casa





Foto in
mjfs.spaceblog.com.br







Uma casa que nem fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade


O poema refere~se ao local onde viveu
Eugénio de Andrade no Passeio Alegre.

Rua Duque de Palmela 111







Pelo lado dos lódãos ao fim do dia
depressa se chega agora no verão
à pedra viva do silêncio
onde o pólen das palavras se desprende
e dança dança dança até ao rio.

Eugénio de Andrade


O título do poema refere-se ao número da
casa onde
viveu o autor antes de ir morar para o Passeio Alegre.

Balada do rio Douro





Foto A.M.










Que diz além, além entre montanhas,
O rio Doiro à tarde, quando passa?
Não há canções mais fundas, mais estranhas,
Que as desse rio estreito de água baça!...
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade?
Ó ruas torturadas e compridas,
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade
Onde as veias são ruas com mil vidas?...
Em seus olhos de pedra tão escuros
Que diz ao vê-lo a Sé, quase sombria?
E a tão negra muralha à luz do dia?
E as ameias partidas sobre os muros?
Vergam-se os arcos gastos da Ribeira...
Que triste e rouca a voz dos mercadores!...
Chegam barcos exaustos da fronteira
De velas velhas, já multicolores...
Sinos, caixões, mendigos, regimentos,
Mancham de luto o vulto da cidade...
Que diz o rio além? Por que não há-de
Trazer ao burgo novos pensamentos?
Que diz o rio além? Ávido, um grito
Surge, por trás das aparências calmas...
E o rio passa torturado, aflito,
Sulcando sempre o seu perfil nas almas!...

Pedro Homem de Mello, Poesias Escolhidas

Hino ao Porto




Um domingo
junto aos Clérigos


Foto A.M.






Cidade em que as burguesas vão à missa
Vestidas de vermelho carmesim.
Em vão, a luz, sobre elas, se espreguiça...
(As mães, pelo caminho, ao vir da missa
Proíbem-lhes os bancos do jardim...)

Não há fidalgos hoje. Há comerciantes.
É deles todo o ar que se respira!
Noites sem flor, sem luz, sem estudantes
E sem guitarras e sem mentira!

Para sentir o mar, o rio eterno
Cava, connosco, a rocha que dormia
E deita-se connosco, na alegria
De imaginar o céu, calcando o inferno.

Na rua escura as lojas de oiro e pano
São pedras frias, frígidas mas quietas.
Ó frios mercadores de oiro e pano
Porto! Mercado frio e desumano...
E no entanto ali é que há Poetas!

Lutar! — é o verbo. — Não morrer — é a vida.
Mas em surgindo a morte, que na estrada
Os ombros verguem sob a urna pesada
E seja lenta a hora da partida!

Noites sem luz, sem mel, sem fantasia!
Noites sem estudantes e sem flor!
Porto! — cidade pulmonar e fria
Que tens a força de negar ao dia
A medicina do amor!

Pedro Homem de Mello, Bodas Vermelhas

A cidade onde nasci


(O Eugénio de Andrade espera-me num Café.
Atravesso as ruas do Porto – a cidade onde nasci
- com os punhos cerrados de dor.)



Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua,
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E principalmente
não cheira a museu azedo
ou a musgo embalado
pela chuva na boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.

Porto
- cidade de luz de granito.
Tristeza de luz viril
com punhos de grito.


José Gomes Ferreira, Comboio

Metamorfose





in
www.fecielo.com/portugal







Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter...
-------------------- uma luz desce o rio
-------------------- gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
--------------------------------- as nuvens não passem
--------------------------------- tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.


Jorge de Sena, Antologia Poética

A minha cidade












A minha cidade não se chama Lisboa,
não tem cheiro a sul
e nem por ela passa o Tejo,
mas como ela, tem Nascentes
leitosos e marmóreos...
Na minha cidade os Poentes são de ouro
sobre o Douro e o mar
e só ela tem a luz do entardecer
a enfeitar o granito...
Na minha cidade, tal como em Lisboa
há gaivotas e maresia
mas não há cacilheiros no rio
há rabelos
transportando nectar e almas...
Da minha cidade nasce o Norte
alcantilado, insubmisso
e o sol, quando chega, penetra-a
delicadamente, carinhosamente,
depois de vencido o nevoeiro...
Na minha cidade também há pregões,
gatos, pombas, castanhas assadas e iscas
e fado pelas vielas, pendurado com molas,
como roupa a secar nos arames...
A minha cidade tem também tardes languescentes,
coretos nas praças
velhos jogando cartas em mesas de jardim
e o revivalismo de viúvas e solteironas
passeando de eléctrico...
É bem verdade que na minha cidade
a luz, não é como a de Lisboa
mas a luz da minha cidade
é um frémito de amor do astro-rei
a beijá-la na fronte, cada manhã!...


Maria Mamede*

in http://mulher50a60.weblog.com.pt/arquivo/2005/01/a_minha_cidade.html

* Pseudónimo literário de Maria do Céu Silva Fernandes, nasceu em 1947 em S. Mamede de Infesta. É autora de vários livros de poesia e conto:

POESIA: Desencontro - 1977; Uma Mão Cheia de Nada - 1978; Palavras Gastas - 1994; Retratos - 2000; Pelas Letras do Alfabeto - 2001; Banalidades - 2003; Poemas Maiatos - 2004; Lume - 2006.

CONTOS: Memórias da Minha Gente - 2004; Da Água Toda - 2010.

Porto



Coração que do rio
o sangue e a música retira.
Gaivota de pedra,
Navio
E lira.



Albano Martins

Poeta nascido em 1930 na aldeia do Telhado, Fundão. Licenciado em Filologia Clássica, foi professor do Ensino Secundário, inspector da Inspecção-Geral de Ensino e posteriormente Professor da Universidade Fernando Pessoa, no Porto.

Tradutor premiado, é autor de múltiplos livros de poesia como Secura Verde (1950), Rodomel Rododendro (1989), Entre a Cicuta e o Mosto (1982), Uma Colina para os Lábios (1993), Com as Flores do Salgueiro
(1995), Escrito a Vermelho (1999), Assim São as Algas (2000), Frágeis São as Palavras (2004), entre outros.

A sua obra tem merecido a atenção de alguns dos mais import6antes críticos e ensaístas portuguesescontemporâneos (António Ramos Rosa, Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho, etc.).

domingo, 28 de março de 2010

Carta a Eugénio de Andrade



Eugénio de Andrade






Porto. Abril. Tantos de tal...
E continuo a teu lado,
Hoje como ontem. Igual
A mim próprio: abandonado
Por todos, menos por ti.
Posto que tão diferente
Seja o berço em que nasci
Da praia, livre, onde passas
Com Sol a pino. Sorriste
Alheio às minhas desgraças?
Vê: mendigo sou que aceita
Mesmo uma côdea de pão,
Mas que traz na mão direita
A flor que as roseiras dão...
Vela apagada ou acesa?
- Sei que me podem comprar
Tudo, menos a nobreza
De sorrir quando há luar...

Pedro Homem de Mello,
Poesias Escolhidas

A cidade e a Poesia






Pedro Homem de Mello






As cidades são como as pessoas, têm os seus se­gredos, e às vezes guardam-nos bem guardados. Há quem goste muito do Porto e há quem o deteste. Queria falar desta cidade "tão masculina" sem nenhum peso de erudição, que é coisa tão inimiga da poesia, que só Borges, que eu saiba, lhe conseguiu arrancar alguns versos dignos da sua prosa. Também não me parece leal contrapor-lhe outras cidades, e menos ainda Ve­neza. Toda a gente sabe que se Veneza não cheirasse a água podre seria incomparável, mas cheiro por cheiro antes o de Marraquexe; Marraquexe cheira a cavalos, que é cheiro de homem. Há quem goste do Porto, dizia eu; Marguerite Yourcenar — ninguém sabe, porque foi a mim que o disse — andou por aqui dois dias fascinada com a Ribeira e as encostas da Sé. Isto de gostar não tem explicação fácil. O mais simples é, se nos pedem razões, dizê-lo com as palavras de Montaigne: Parce que c'était lui, parce que c'était moi. Mas não só o amor tem estranhos mecanismos, os do ódio não lhe ficam atrás.

Há anos li muita coisa sobre o Porto, não tive outro remédio, fiz sobre ele uma antologia que circula por aí. Nessa altura deparei com coisas tão acintosas que fui levado a pensar em ressentimentos. Algumas daquelas coisas eram escritas com dor de corno. Camilo, Eça, Antero, Nobre, Pascoaes detestavam-no. "A sentina é aqui", dizia Camilo num vómito. "Pançudo e pesado", é o Eça a falar, enquanto entala o monóculo. "O Porco", afirma Antero que lhe chamava Oliveira Martins. "Tão carregado de província que nem os arredores de Braga", diz, já mais perto de nós, Pascoaes em O Peni­tente. E sigo, que o meu destino é outro. Mas o burgo também tem quem lhe faça a corte: Jaime Cortezão, Rodrigues Miguéis, Miguel Torga, Jorge de Sena, Agustina Bessa-Luís gostam dele, como testemunharam de muitos modos. Agustina é no nosso tempo o seu cro­nista, e cronista admirável, nunca é demais repeti-lo, pois há sempre quem o não saiba; quanto ao seu poeta, ainda não lhe disse o nome, e vai sendo tempo: Pedro Homem de Mello. Caiu sobre ele, desde que morreu, um estranhíssimo silêncio. Eu estou pouco a par dessa coisas, há muitos anos que não leio jornais, mas creio que não há um beco ou uma viela com o seu nome. Nem sequer uma escola ou um jardim de infância. Qual foi o agravo que fez à cidade onde nas­ceu? Não era um grande poeta? Pois não, mas os grandes poetas são tão raros! Na geração que foi a dele — a do Segundo Modernismo, como se lhe vem cha­mando — quem, além de Vitorino Nemésio, é grande poeta? A sua poesia era muito irregular? Sem dúvida, mas irregular, que poeta o não foi neste país? Veja-se o Gomes Leal, com quem o Pedro tem afinidades, ou até poetas de outras dimensões, o Nobre, o Pascoaes, o Sena. Estamos pois de acordo: nem grande poeta nem espírito crítico capaz de corrigir as emoções – mas era um poeta, e também não há tantos como isso, ao contrário do que se diz. O que há muito entre nós é literatos, gente em que sobra espírito e falta alma. Ocorre-me Flaubert: Ah! Ah! les gens d'esprit, quels pauvres gens cela fait! Como principiei por afirmar e ele tinha consciência e orgulho disso — Pedro Homem de Mello é, como nenhum outro, o poeta do Porto, das suas ruas escuras, dos seus jardins "de má fama", dos seus palácios em ruína, das suas torres de face encardida, das grades frias dos seus aljubes, do luto entranhado dos seus habitantes, e também da sua estreiteza conservadora, do seu grosseiro espírito de ganância; de tudo isto ele era o poeta, como era também aquele de quem os juízes e tabeliães e bem pensantes faziam troça, os políticos malevolamente se aproveitavam, e a gente anónima respeitava, porque, apesar do brasão ostensivo no dedo e algum snobismo, tinha sempre um sorriso ou uma palavra afável para o cobrador do eléctrico ou para o engraxador; pois apesar de ser um senhorito da televisão, visitava os amigos com moços sem eira nem beira, que levava para os seus versos, e que, à semelhança de Kavafís, são os melhores que escreveu.

Apesar de Pedro Homem de Mello ter feito tanto frete ao SNI, e escrever versos que eram uma merda pedindo o voto em Salazar, e outros igualmente excrementícios para o Menino Jesus dos Correios todos os anos pelo Natal, ele nunca tinha cheta, nem sabia de usura, nem atraiçoava os amigos — amava a poesia de Verlaine e António Nobre, o nosso Romanceiro e o de Lorca, de que herdou ritmos e segredos; dançava o vira, ou lá o que era, como ninguém; gostava daquela gente da Serra d'Arga e da Nazaré, que lhe pagava na mesma moeda; e os versos que escreveu, às vezes, também têm a ver com o movimento soberbo daque­les braços erguidos e daquelas cinturas queimando os dedos de quem as tocava, ou então com os olhos turvos que se cruzavam com os seus na Cordoaria, e lhe arripiavam a pele ou paralisavam os passos — porque a sua poesia, não vale a pena ocultá-lo, partia dali, de todos os sentidos despertos, que nele deviam ser mais de cinco. E quando os seus versos não têm essa origem o melhor é ignorá-los, porque então raramente ultra­passam a mais convencional e rasteira prosa metrifi­cada. "Quando penso que tenho que pensar fico com dores de cabeça", disse-me ele um dia — e devia dizer a verdade.

O Pedro, apesar dos universos divergentes, e não apenas mentais, a que eu e ele pertencíamos, foi meu amigo. Imaginem: amigo de quem é tão distraído e distante para as coisas literárias e, ainda por cima, sem paciência nenhuma para aquele exibicionismo pueril de poemas lidos na rua ou à mesa do café, e por ele, que os lia tão mal, tão mal... Mas era gentil e generoso e bem educado, coisas em que minha mãe reparou logo quando o conheceu, numa das suas vindas ao Porto. Ocorre-me agora que, um ou dois dias depois, o Pedro passou pelos Serviços onde eu trabalhava só para me dizer:

— A tua mãe é linda!

Era a primeira vez que estava inteiramente de acordo com ele.

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Eugénio de Andrade, A Cidade de Garrett,

Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1996, 2.ª ed.


Miragaia






Foto A.M.













Aqui, onde esta noite nunca cessa,
Foi Miragaia a minha Madragoa.
Aqui, em frente ao rio, oiço a promessa
Do mar que ajoelha, enquanto me atordoa.

Aqui, sei onde sangra o lábio oculto.
De quem me vê, até de olhos fechados!
E, como os cegos, reconheço um vulto,
Pelo roçar dos dedos namorados...

Deviam chamar Pedro, em vez de Porto,
Ao burgo, se é tal qual do meu tamanho!
Aqui

Nasci,
Porém nasci já morto,
Imóvel, surdo, triste, mudo, estranho...

Deu-me Deus ele, apenas, por amigo.
Deitamo-nos, cismando, lado a lado...

Seu corpo, rijo e nu, dorme comigo.
Mas fico, entre os seus braços, acordado!

Pedro Homem de Mello,
Poesias Escolhidas

Todos por um





in

assírio.com






A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a ponto de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum.

Mário Cesariny

Nasci no Porto

Nasci no Porto, a cidade e seus arredores
As praias próximas, descendo para sul
Permanecem para mim a pátria dentro da pátria,
A terra materna,
O lugar primordial que me funda...
Porque nasci no Porto sei o nome
Das flores e das árvores
E não escapo a um certo bairrismo.
Mas escapei ao provincianismo da capital.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Canção
















O Porto com seu granito
enegrecido pelo tempo,
o Porto com o seu mar
entrando pelo Douro dentro.

O Porto com suas varandas
de flores e ferro forjado,
de onde se vêem jardins
à espera de namorados.

O Porto com suas palavras
que sobem do coração,
o Porto com sua pronúncia
de quatro pedras na mão.

João Pedro Mésseder, Porto Porto
Ilustração de Helena Veloso

Porto Poesia - um novo tema




Foto A.M.











Abrimos hoje, Dia Nacional dos Centros Históricos, um novo tema poético deste blogue.


Imensas actividades relacionadas com a Poesia e a sua divulgação um pouco por toda a parte (só esta semana foram seis os eventos que organizámos ou em que participámos) têm-nos impedido de prosseguir neste blogue a regularidade até há algum tempo mantida na divulgação dos poetas e dos seus textos.

O blogue é certamente também culpado desta irradiação de iniciativas em todas as direcções, incluindo para fora de si mesmo.

Ainda ontem à tarde, organizámos, no Clube Literário do Porto, para comemorar (antecipadamente) esta data, uma sessão de leitura de poemas e outros textos sobre o Porto e o seu Centro Histórico. Foram nossos convidados especiais o professor José António Gomes e o seu semi-heterónimo João Pedro Mésseder, autor de um maravilhoso livro de poesia para os mais jovens sobre a Invicta (Porto Porto), que o poeta considerou «uma das cidades mais literárias da Europa».

Hoje passa também o bicentenário do nascimento de Alexandre Herculano (1810-1877), nascido em Lisboa, mas que foi funcionário da Biblioteca do Porto, que muito beneficiou com a sua competência e capacidade de trabalho. Viria a ser, aliás, eleito deputado por esta cidade em 1840.

São estas as razões que nos levam a seleccionar desta vez poemas sobre o Porto, ainda que não possamos para já, dados os inúmeros afazeres que irão prosseguir nas escolas, nas bibliotecas, nas associações culturais, etc., manter a regularidade inicial de um mês / um tema.

Então, aqui vai o próximo tema:

PORTO POESIA

quinta-feira, 25 de março de 2010

Inês Lourenço e Sofia Lourenço nas Quartas Mal Ditas
























































































































Ontem, mais uma sessão das Quartas Mal Ditas no Clube Literário.
Como convidadas a poeta Inês Lourenço e sua filha, a pianista Sofia Lourenço.

Os "residentes" leram poemas de Inês, que conversou com o coordenador, Anthero Monteiro, e respondeu a perguntas dos presentes. Diálogo que nos pareceu bem interessante e deu certamente para entender o que há de tradição e de inovação nos poemas daquela escritora da Invicta, nascida na Rua de Camões. As conversas desenvolveram-se de acordo com os temas principais dos poemas seleccionados pelo coordenador: memórias da infância, o Porto, a Música e a Arte Poética.


Sofia Lourenço tocou Chopin e alguns compositores portugueses e interveio também sobretudo para abordar questões musicais relacionadas com a obra da progenitora.
A lucidez e boa disposição de Inês, o virtuosismo e a presença irradiante de Sofia foram, sem dúvida, os pontos fortes da noite.

Apesar dos futebóis, a sala esteve bem composta e foi notório o interesse despertado pelo programa da
soirée.