Pedro Homem de Mello
As cidades são como as pessoas, têm os seus segredos, e às vezes guardam-nos bem guardados. Há quem goste muito do Porto e há quem o deteste. Queria falar desta cidade "tão masculina" sem nenhum peso de erudição, que é coisa tão inimiga da poesia, que só Borges, que eu saiba, lhe conseguiu arrancar alguns versos dignos da sua prosa. Também não me parece leal contrapor-lhe outras cidades, e menos ainda Veneza. Toda a gente sabe que se Veneza não cheirasse a água podre seria incomparável, mas cheiro por cheiro antes o de Marraquexe; Marraquexe cheira a cavalos, que é cheiro de homem. Há quem goste do Porto, dizia eu; Marguerite Yourcenar — ninguém sabe, porque foi a mim que o disse — andou por aqui dois dias fascinada com a Ribeira e as encostas da Sé. Isto de gostar não tem explicação fácil. O mais simples é, se nos pedem razões, dizê-lo com as palavras de Montaigne: Parce que c'était lui, parce que c'était moi. Mas não só o amor tem estranhos mecanismos, os do ódio não lhe ficam atrás.
Há anos li muita coisa sobre o Porto, não tive outro remédio, fiz sobre ele uma antologia que circula por aí. Nessa altura deparei com coisas tão acintosas que fui levado a pensar em ressentimentos. Algumas daquelas coisas eram escritas com dor de corno. Camilo, Eça, Antero, Nobre, Pascoaes detestavam-no. "A sentina é aqui", dizia Camilo num vómito. "Pançudo e pesado", é o Eça a falar, enquanto entala o monóculo. "O Porco", afirma Antero que lhe chamava Oliveira Martins. "Tão carregado de província que nem os arredores de Braga", diz, já mais perto de nós, Pascoaes em O Penitente. E sigo, que o meu destino é outro. Mas o burgo também tem quem lhe faça a corte: Jaime Cortezão, Rodrigues Miguéis, Miguel Torga, Jorge de Sena, Agustina Bessa-Luís gostam dele, como testemunharam de muitos modos. Agustina é no nosso tempo o seu cronista, e cronista admirável, nunca é demais repeti-lo, pois há sempre quem o não saiba; quanto ao seu poeta, ainda não lhe disse o nome, e vai sendo tempo: Pedro Homem de Mello. Caiu sobre ele, desde que morreu, um estranhíssimo silêncio. Eu estou pouco a par dessa coisas, há muitos anos que não leio jornais, mas creio que não há um beco ou uma viela com o seu nome. Nem sequer uma escola ou um jardim de infância. Qual foi o agravo que fez à cidade onde nasceu? Não era um grande poeta? Pois não, mas os grandes poetas são tão raros! Na geração que foi a dele — a do Segundo Modernismo, como se lhe vem chamando — quem, além de Vitorino Nemésio, é grande poeta? A sua poesia era muito irregular? Sem dúvida, mas irregular, que poeta o não foi neste país? Veja-se o Gomes Leal, com quem o Pedro tem afinidades, ou até poetas de outras dimensões, o Nobre, o Pascoaes, o Sena. Estamos pois de acordo:
Apesar de Pedro Homem de Mello ter feito tanto frete ao SNI, e escrever versos que eram uma merda pedindo o voto em Salazar, e outros igualmente excrementícios para o Menino Jesus dos Correios todos os anos pelo Natal, ele nunca tinha cheta, nem sabia de usura, nem atraiçoava os amigos — amava a poesia de Verlaine e António Nobre, o nosso Romanceiro e o de Lorca, de que herdou ritmos e segredos; dançava o vira, ou lá o que era, como ninguém; gostava daquela gente da Serra d'Arga e da Nazaré, que lhe pagava na mesma moeda; e os versos que escreveu, às vezes, também têm a ver com o movimento soberbo daqueles braços erguidos e daquelas cinturas queimando os dedos de quem as tocava, ou então com os olhos turvos que se cruzavam com os seus na Cordoaria, e lhe arripiavam a pele ou paralisavam os passos — porque a sua poesia, não vale a pena ocultá-lo, partia dali, de todos os sentidos despertos, que nele deviam ser mais de cinco. E quando os seus versos não têm essa origem o melhor é ignorá-los, porque então raramente ultrapassam a mais convencional e rasteira prosa metrificada. "Quando penso que tenho que pensar fico com dores de cabeça", disse-me ele um dia — e devia dizer a verdade.
O Pedro, apesar dos universos divergentes, e não apenas mentais, a que eu e ele pertencíamos, foi meu amigo. Imaginem: amigo de quem é tão distraído e distante para as coisas literárias e, ainda por cima, sem paciência nenhuma para aquele exibicionismo pueril de poemas lidos na rua ou à mesa do café, e por ele, que os lia tão mal, tão mal... Mas era gentil e generoso e bem educado, coisas em que minha mãe reparou logo quando o conheceu, numa das suas vindas ao Porto.
— A tua mãe é linda!
Era a primeira vez que estava inteiramente de acordo com ele.
Eugénio de Andrade,
Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1996, 2.ª ed.