sábado, 19 de novembro de 2011

No teu quarto




















com mais ninguém em casa entro nos teus domínios
e levas-me a um lugar de sonho e do teu sono
impera no teu quarto a cama como um trono
e há segredos aos mil em gavetas de escrínios

o sol e outros olhares penetram indiscretos
sorrio com malícia ao correres a cortina
mas vejo na parede a foto da menina
que tiraste uma vez com seis anos completos

e esse olhar virginal que afasta os próprios lobos
retém a minha mão como se houvera um pacto
por isso é que ficou teu leito assim intacto
porque eu manietei todos os meus arroubos

e sentei-me no chão à falta de melhor
encostaste-te a mim suave doce esguia
e ficámos a ouvir a eterna melodia
de um prelúdio de bach em mi bemol maior

estava atrás de ti sem nada de permeio
e um raio de sol curioso quase a pique
viu na minha mão esquerda um poema de rilke
e achou-me a outra mão a soletrar-te o seio.

Anthero Monteiro, Sete Vezes Sete Nuvens,
Porto, Egoiste, 2010

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Morta




podes vir chamar-me

com a brisa insinuante de um violino

marcar o meu número à hora de cada capricho

acenar-me com açucenas entre os dentes

escolher pedras de algodão

para me atirares à vidraça

subir todos os gólgotas

para te crucificares nos meus braços

reconstituir todas as minhas pegadas no deserto

reencontrar os istmos das minhas mãos

levar-me ao festival das gaivotas

presumir nos perfumes

e em todos os encantamentos

ler os meus versos

como quem se alimenta de rosaas




agora estás morta e bem morta

e nenhum beijo meu te ressuscitará


dias e noites sem conta

estive emparedado num quadrilátero minúsculo

entre desespero e tédio

entre acrimónia e indiferença

a olhar uma galáxia perdida

à espera que me baleassem as estrelas

que a neve fosse piedosa

que alguém me atirasse o primeiro torrão


não fora esta couraça de desprezo

ou de desprezo pelo teu desprezo

há muito a solidão teria estalado

a tábua do meu peito

e esmagado de vez

este relógio avariado

pela ferrugem da espera


Anthero Monteiro,

Desesperânsia, Porto, Corpos Editora, 2.ª edição, 2009



(Na foto, Anthero Monteiro por Jorge D'além-mar)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011



Quarta-feira,
5 de Outubro, 21.30 h,
QUARTAS MAL DITAS
no Piano-bar do
Clube Literário do Porto.
Tema: POESIA & PINTURA.
Leituras por Amílcar Mendes, Ana Almeida Santos, Anthero Monteiro, António Pinheiro, Cláudia Pinho, Luís Carvalho e Rafael Tormenta.
Convidado especial: Fernando Gaspar.
Intervenções musicais de Rui Paulino David.
Colaboração de Fátima Lopes.

Entrada Livre.

domingo, 14 de agosto de 2011

Vincent (Starry, starry night)




Imagens de obras de Vincent Van Gogh, incluindo Starry Night (Noite estrelada)
Canção de Don McLean
Letra de Josh Groban

in

http://www.azlyrics.com/lyrics/joshgroban/vincentstarrystarrynight.html

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

"Mulher-cão" (de Paula Rego)

Paula Rego, Mulher-cão, pastel de óleo, 1994, Tate Gallery










Ela acendeu a brasa do fogão
anos e anos a fio. Esfregou o soalho
lavou a roupa e os vidros
da janela costurou bainhas
descosidas e levou toalhas a cheirar
a rosmaninho à senhora do andar
de cima. Foi ao quintal buscar hortelã
para a canja e adormeceu ao som
das gargalhadas felizes dos meninos
hoje já todos engenheiros
com a Graça do Senhor. Agora está atada ao côncavo
da terra por atilhos
grossos. Ladra à lua
e tudo nela
é carne e sangue. Morde a mão
e dança a valsa
sobre o chão confuso
de algum sonho diluído lá no longe
nos botões do maestro
do coreto aos domingos e feriados. Ela é grossa
e ladra á lua.
Sente o corpo a crepitar
e rasga o coração. Inesperadamente
entre coágulos de sangue
fala línguas
que nunca ninguém lhe ensinou. Está atada
à sangrenta forja
das gramáticas lunares e procura
uma palavra
um nome mesmo que obscuro
e difícil de entender. É uma mulher grossa
e no côncavo do corpo
fala línguas
sem sentido. Deixou secar os coentros
a salsa
e a hortelã. Chama-se cão
e ladra à lua. Vive atada
às chamas que a consomem.

José Fanha, Marinheiro de Outras Luas

"Mulher sentada" (de Ribeiro de Pavia)

Manuel Ribeiro de Pavia, Mulher sentada, 1947











Essa mulher sentada de ribeiro de pavia
nas maçãs salientes risco ao meio e ancas arqueadas
(das pernas nada digo pois sou púdico e além disso há a mesa de permeio)
essa mulher durante tantos anos perseguida e só muito raras vezes conseguida
no mínimo desenho do pintor alentejano
finalmente perdida como tudo com a vida essa mulher amendoada
mas de cabelo louro (oxigenado?) e de dois olhos
possivelmente obtidos a partir desse lápis-lazúli
ainda não há muito visto mesmo mais que entrevisto
em dois botões de punho que o hernani me deixou ao voltar para o chile
entre compreensivos conviventes versos sobre a mesa do meu quarto
de solteiro e amiúde solitário
da casa do brasil onde em madrid envelheci um ano
esse lápis-lazúli que eu esquecera em roma numa mesa de oratório
e tão bem conhecia do antónio nobre onde me conhecera
não menos que em courelas do guerreiro ou do costa alemão
(já não sei qual dos dois) concretamente se chamava
silicato complexo de alumínio e sódio
(que forma mais complexa se utiliza - lembro-me - pensava -
pra nomear uma só pedra embora rara baça sonhadoramente azul
que já de si se chama de maneira complicada)
essa mulher sentada jamais pode conhecer
quem envelhece ao fim do corredor dos dias
e acaba de passar ao lado de umas árvores moldadas despenteadas pelo vento
sob a macia abóbada do lusco-fusco
num carro porventura expressamente encarregado
de difundir esse quarteto salvo erro número dois de haydn
entre as íntimas ervas dos velados campos
onde perdeu coisas concretas como a sua juventude
um búzio um rancho de mulheres ou o varejo da azeitona
alguns cabelos uma chave ou uma rima original
Raios a partam e depois de todos estes digressivos versos
essa mulher na mesma ali sentada e assentada
sozinha à minha espera à espera de um sentido para a vida
à espera de um marido à espera do natal

Ruy Belo, Transporte no Tempo

Cidade equestre

Desenho de Luís Veiga Leitão in Obra Completa, 1997
















A cidade equestre
No rio mergulha
Seus cascos de granito
E sobe
A galope
Encosta arriba

Num salto a prumo
(Lá onde o casario morre)
Upa!
É uma torre

Torre de pedra e nuvem
De pássaro de fogo
De corpo de mulher
Torre de tudo e de quanto
O sonho
A palavra o canto
Pode e quer.

Luís Veiga Leitão, «Linhas do Trópico», 1977,
in Obra Completa, Porto, Campo das Letras, 1997

Poeta e artista plástico, n. em Moimenta da Beira em 1912 e f. em Niterói - Brasil em 1987.
Militante antifascista, foi demitido pelo regime de Salazar de escriturário da 7.ª Brigada Cadastral da Federação dos Vinicultores da Região do Douro e obrigado a exilar-se. Foi membro do grupo literário Germinal.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

"Guernica" (de Picasso)

Pablo Picasso, Guernica, 1937







Porque chora esta mulher
de rosto fragmentado e colorido?
Será que pressente a tragédia
monocolor de Guernica, o sangue e o grito,
o fogo vindo do céu, a súplica vinda da terra?
Será que chora por tudo aquilo
que ouviu contar, por tudo aquilo
que lhe roubou o sono e o brilho dos olhos?
Se beleza existe neste rosto inclinado,
neste olhar oblíquo e baço
e no esgar da boca que se dissolve,
é na aflição dos dedos que se desmente.
A mulher que chora é Espanha
garbosa, saborosa, arrebatada
a chorar os irmãos mortos pelos irmãos
na tragédia civil das baionetas
trespassando os corpos fora das arenas.
É Espanha desgostosa a coleccionar imagens
para a grande tela da dor de uma pátria
a morrer em silêncio às portas das catedrais
que Deus, inclemente, deixou de visitar.

José Jorge Letria, Sobre Retratos, Lisboa, Indícios de Oiro

"O Verão" (de Giuseppe Arcimboldo)

Giuseppe Arcimboldo, O Verão, 1573, Louvre















Para mim foi sempre isto o Verão:
uma orgia de frutos,
um labirinto de aromas,
um dédalo de cores com cadência de ondas,
em fundo, tudo fazendo correr
na direcção do mar, como uma fatalidade.
A ciência de Arcimboldo, sim, a ciência,
nunca esteve no modo como combinou
frutos e legumes para criar
a ilusão de vida em rostos surreais,
só reais como a imaginação dos alquimistas.
Em Praga riam-se dos seus jogos visuais,
dessa ilusão que criava com pepinos,
azeitonas, maçãs, pêssegos e laranjas,
mas o pintor não se importava,
pois um quadro seu, sendo comestível,
bastaria para debelar o escorbuto
de uma armada com tanta vitamina.
Revejo-me neste retrato de Verão
como me revia no quintal da minha avó,
imaginando o mundo como um cesto de fruta
cercado de céu e de mar até à loucura.

José Jorge Letria, Sobre Retratos, Lisboa, Indícios de Oiro

Os noivos voadores de Chagall

Marc Chagall, Les amoureux en gris, 1960















como se escrevesse um poema pinto a mulher
que irrompe da plumagem azulínea do galo
por cima das pontes anoiteceu onde flutuam
o bode e os noivos lancei por terra barreiras
entre elementos e leis físicas
para que o meu país se tornasse mais real
mais próximo de mim quando no exílio pouso
os lábios nas cores de avelã ou das nozes e
fico com o sabor delas na boca

recordo assim a casa paterna em vitebsk os nevões
de s. petersburgo aquela criança no mercado
apanhando moedas atiradas ao tapete e a cabra triste
em equilíbrio - bailando - em cima do gargalo da garrafa
os músicos de acordeão e violino sob o clarão da lua
estes noivos que toda a minha vida esvoaçaram felizes
de pintura em pintura pelos nocturnos céus do país

Al Berto, O Medo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997
_____

NOTA: Apesar de o título e o texto do poema parecerem remeter para outra obra de Chagall (e são muitas as que se reportam a noivos voadores ou não), a que aqui se reproduz é aquela que consta, ainda que a preto e branco, da edição de 1997 de O Medo (p. 425).

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Poema da noiva de Chagall

Marc Chagall, Bride with blue face, 1932















Tenho os olhos repletos de ventura.
E isto simplesmente
por ver na minha frente um tanque de água,
bancos de pedra à volta
e uns modestos arbustos sem grandeza.
Como a ventura é fácil quando tudo
se mede em desventura!

Tudo se junta neste quadro ameno
para dar felicidade momentânea;
e o que falta, que é tudo, isso, imagino.
A luz do Sol escondido a jorros brota,
caustica a pele e afogueia o rosto;
nos arbustos despidos as flores rescendem;
e no tanque parado, de águas sujas,
o transparente líquido se eleva
e em parábolas cai na morta superfície.

Desce um pombo do alto em voo lento
e na borda do tanque poisa, e olha.
Finjo que sou de pedra; e o pombo olha-me.
Finge-se ele de pedra enquanto o olho,
e assim nos demoramos, um e outro,
até nos convencermos
que só de mútuo amor se vive em paz.

Um roçar de asas vem do alto e desce.
É ela, a pomba, o número que faltava
no programa das festas dos meus olhos.
Ao lado dele poisa, e tão chegada
que as penas dele em mim se sobressaltam.

Foi então que um rumor tão insensível
como um abrir de pétalas
roçou por entre as folhas dos arbustos.
A noiva de Chagall,
micro-onda violeta, espuma de detergente,
flutuando ao sabor de uma suposta brisa,
alegre e rápida, voluptuosa e breve,
em círculos de renda me envolveu.

De vassoura de esparto, o homem do jardim
juntava as folhas secas,
e ao juntá-las,
diluía rumores no silêncio da tarde
enquanto ia pensando noutra coisa.

António Gedeão, Poemas Póstumos,
Lisboa, Ed. João Sá da Costa, 1983

Última carta de van Gogh a Théo

Vincent van Gogh, Auto-retrato com orelha ligada, 1889















nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar

o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada

por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol.

Al Berto, O Medo,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997



A última carta de van Gogh foi escrita em 23 de Julho de 1890. Poucos dias depois, a 27/7, o pintor terá dado um tiro a si próprio, de que resultaria a sua morte na noite do dia 29/7. O episódio da auto-ablação da orelha ocorreu em dezembro de 1888. Mas, recentemente, investigadores alemães, consideraram que a auto-mutilação terá sido inventada pelo amigo pintor Gauguin para se ilibar da responsabilidade do ato: na sequência de uma discussão entre ambos por causa de uma prostituta (Rachel), Guaguin ter-lhe-ia cortado a orelha e desaparecido.


Cf. http://fina-sintonia2.blogspot.com/2009/05/historia-e-outra-van-gogh-nao-cortou.html

Van Gogh: "Campo de Trigo com Corvos"

Vincent van Gogh: Campo de trigo com corvos, 1890






É cedo em Auvers-sur-Oise,
mas os malfeitores permanecem vigilantes.

Desde que me lembro a minha vida
é uma fuga
– fujo dos malfeitores
e, por isso, a minha cabeça não aguenta,
a minha cabeça treme,

e estou só,
e atravesso a terra de ninguém
como se fosse perseguido pelo demónio
e o demónio se aliasse aos anjos,
e tudo fosse, na terra de ninguém,
essa conjura.

É cedo em Auvers-sur-Oise,
e noto as cores
da perseguição,
verdes, azuis e cinzentos
convocam-me os sentidos,

mas estou alerta,
alerta como só um louco pode estar,
ou um profeta.

Theo,
tal como as nossas brigas,
também o sangue que me corre nas veias é eléctrico,
e é preciso que eu parta,
é preciso que eu parta,
definitivamente.

As paixões enervam-me,
destroem-me.
E já não sei como dormir,
como cuidar que a navalha
esteja num lugar em que a não veja,
porque a navalha, Theo,
fascina-me,
e, às vezes, odeio esta maldita pintura
que fez soçobrar o meu amor
e a minha vontade.

Os malfeitores permanecem vigilantes,
e eu só quero o sul,
só quero, cada vez mais, o sul,
e é com o sul que sonho
cada noite,
a navalha,
o sul,
o quadro inacabado
que aguarda
a indecisão da minha espátula.

Ainda não sei, Theo,
porque nasci
– um homem vem ao mundo
para trabalhar nas minas
ou arrotear os campos,
não vem para que se entregue ao suplício
e nele ponha a sua devoção
e a miséria.

Fosse eu um homem diferente, Theo,
o homem que julguei capaz de ser,
e talvez no hospital me entendessem
e deixassem de me olhar
como o vagabundo que sou,
com a roupa manchada de tintas
e este rosto de quem vive o tormento
de passar sem indiferença
pelos seus semelhantes.

Preciso, Theo,
do consolo das tuas palavras,
e de pincéis comuns,
e de alguém que me visite na prisão,
se eu for preso
por ter perdido a cabeça,
(treme-me, a cabeça)
e me ter insurgido contra a turbulência
com que me perseguem.

Ontem fui à taverna, Theo,
e as cores deslumbrantes com que vi aquilo
pareceram-me ser de uma bondade infinita
– trabalhei toda a noite,
e é inimaginável como o trabalho me rende
quando esta febre chega
e as cores,
todas elas,
zunem nos meus ouvidos,
se expandem no meu crânio,
e descem pelo meu braço:

há um laranja saturado que só eu sei
que existe,
a luz envolve-o,
as sombras querem conspurcá-lo,
mas eu resisto, Theo,
trabalho incessantemente
e rezo, baixinho,
para que Jesus me ouça.

Em presença deste laranja,
meu irmão,
fico em pleno uso das minhas faculdades,
(sim, a cabeça, a cabeça treme-me por dentro)
e sorrio dos que me chamam louco,
e aprovo-lhes a decisão de me manterem afastado
dos favores do álcool:
fico à porta da taverna
e o espírito eleva-se,
e fico ali,
sozinho,
a tentar pescar a terra.

Não, não me empanturro de vinho,
de grão-de-bico e lentilhas,
farto-me, isso sim, desta cor,
que é a cor da transfiguração
e do equilíbrio,
porque sou imundo e intocável,
por mais que os malfeitores me persigam
e eu seja desequilibrado
(treme-me, a cabeça).

Quero tocar com as mãos
coisas que nunca vi,
sem receio,
atravesso os campos enrubescidos
pelo dilúculo matinal
e ouço vozes,
ao longe,
ouço vozes desconhecidas
que me chamam
e me fazem ver o incriado,
a miragem,
a alucinação.

Não temo:
tingido de carmim,
o horizonte espera-me,
e os malfeitores perseguem-me,
e sou como Isaac
a morrer às mãos do anjo mensageiro
e corre-me pelas veias
um sentido de grande utilidade:
pinto e pinto,
e a luz absolve-me do mal
e da maldade.

Theo,
há momentos em que a terra se cobre de papoilas
e eu possuo todas as riquezas da terra,
e sou um pobre pintor
a exultar pela magnificência,
por este ocre queimado, da cor
dos peixes da terra,
por este laranja-de-cádmio
que me reconforta,
por este vermelho,
vivo e condescendente.

Um dia há-de chegar a revolta
dos desprotegidos,
e os malfeitores saberão
o que vale efectivamente perseguir
quando a tristeza perdura
e só um tiro de pistola
vem resolver a contenda
indisputável, Theo.

Por isso, vou para sul
e há-de ser a sul
que me encontrarei com Deus

Amadeu Baptista, Doze Cantos do Mundo,
Sintra, Edição CM de Sintra, 2009

"A cadeira amarela" de van Gogh

Vincent van Gogh, A Cadeira Amarela, 1888
















No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.

Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.

Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.

Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.

Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?

Jorge de Sena

"A ponte" de van Gogh

Vincent van Gogh, A ponte, 1888












O lugar não importa: pode ser o Japão, a Holanda, a campina inglesa.
Mas é absolutamente preciso que seja domingo.

O azul do céu ecoa na esmeralda do rio
E o rio reflete docemente as margens de relva verde-laranja
Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o lençol virginal de miss
Para ser no céu sem mancha a única nuvem.
A calma é velha, de uma velhice sem pátina
As cores são simples, ingênuas
A estação é feliz: o guarda da ponte chegou a pintar
De listas vermelhas o teto de sua casinhola.
E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos de pinheiros a fazer caretas
E a pressa com que o homem da charrete vai:
- A pressa de quem atravessou um vago perigo
Tudo estivesse perfeito, e não me viesse esse medo tolo de a pequena ponte levadiça
Desabe e se molhe o vestido preto de Cristina Georgina Rosseti
Que vai de umbrela especialmente para ouvir a prédica do novo pastor da vila.

Vinicius de Moraes, Jardim Noturno,
S. Paulo, Companhia das Letras, 1993

"Botines con lazos", de Vincent Van Gogh

Vincent Van Gogh, Botas com Atacadores,
1886-87











¿Son dos extraños fósiles,
emisarios sombríos de una fauna sepultada en un bosque de carbón,
que vienen a reclamar un óbolo de luz para sus muertos ?
¿Son ídolos de piedra,
cascotes desprendidos del obraje de los más tristes sueños ?
¿O son moldes de hierro
para fraguar los pasos a imagen del martirio y a semejanza de la
penitencia ?
Son tus viejos botines, infortunado Vincent,
hechos a la medida de un abismo interior, como las ortopedias del exilio ;
dos lonjas de tormento curtidas por el betún de la pobreza,
embalsamadas por lloviznas agrias,
con unos lazos sueltos que solamente trenzan el desamparo con la soledad,
pero con duros contrafuertes para que sea exiguo el juego del destino
para que te acorrale contra el muro la ronda de los cuervos.
Pero son tus botines, perfectos en su género de asilo,
modelos para atar a cada ráfaga de alucinada travesía,
fieles como tu silla, tus ojos y tu Biblia.
aferrados a ti como zarpas fatales desde las plantas hasta los tobillos,
desde Groot Zundert hasta la posada del infierno final,
es inútil que quieran sepultar tus raíces en una casa hundida en el rescoldo,
en el barro bruñido, el brillo de las velas y el íntimo calor de las patatas,
porque una y otra vez tropiezan con el filo de la mutilación,
porque una y otra vez los aspira hacia arriba la tromba que no entienden :
tu fuga de evadido como un vértigo azul, como un cráter de fuego.
Botines de trinchera, inermes en la batalla del vendaval y el alma :
han girado contigo en todas las vorágines del cielo
y han caído en la trampa de tu hoguera oculta bajo el incendio de los
campos, sin encontrar jamás una salida,
por más que pisoteen esas flores fanáticas que zumban como abejorros
amarillos,
esos soles furiosos que atruenan contra tu oreja, tan distante,
perdida como un pálido rehén entre los torbellinos de otro mundo.
Botines de tribunal, a tientas en la noche del patíbulo,
sin otro resplandor que unos pobres destellos arrancados al pedernal
de la locura,
entre los que hay un pájaro abatido en medio de su vuelo :
el extraño, remoto anuncio blanco de una negra sentencia.
Resuenan dando tumbos de ataúd al subir la escalera,
vacilan junto al lecho donde se precipitan vidrios de increíbles visiones,
trizado por una bala el árido universo,
y dejan caer a lentas sacudidas el balance de polvo tormentoso
adherido a sus suelas.
Ahora husmean la manta de hiedra que recubre tu sueño junto a Theo,
allá, en el irreversible Auvers-sur-Oise,
y escarban otra tumba entre los andamiajes de la inmensa tiniebla.
Son botines de adiós, de siempre y nunca, de hambriento funeral :
se buscan en la memoria de tu muerte.

Olga Orozco

Cf. Irene Artigas, "Ecfrasis y Naturaleza muerta: los 'Botines con lazos' de van Gogh e Olga Orozco" in
http://trans.univ-paris3.fr/spip.php?article84

De tarde

Édouard Manet, Le déjeuner sur l'herbe, 1862-63











Naquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde

Tal como uma tela de Renoir ou este Almoço na Relva, aqui reproduzido, o poema de Cesário Verde aborda o tema do campo relacionado com a simplicidade, a naturalidade, a liberdade e a alegria de viver. Recorde-se que é este poeta quem se antecipa em Portugal para aí introduzir o impressionismo, iniciado em França com a primeira exposição impressionista em Paris de 1874.
A exemplo do que acontece com Manet, ao poeta e à sua sensibilidade plástica interessa mais causar uma impressão de orgia sensorial do que enumerar exaustivamente os objetos e os detalhes.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Diante uma reprodução de "Uma Mulher" de Modigliani



Amedeo Modigliani, Nude with necklace, 1917







meu pai era carpinteiro
ia para as obras
com a ceira cheia de
enxós garlopa serras martelos
pregos e alguns sonhos distantes

eu ia com ele
levava vestidas umas calças de zuarte azul
um bibe aos quadrados
(uma vez caguei nas calças
meu pai deu-me duas palmadas
sem grande convicção)

passavam comboios
e ele chamava-lhes os nomes mais diversos

de tudo isso ficou
a pureza do meu corpo
que agora ofereço
à voracidade
do teu corpo sensual
e único

Levi Condinho, Roteiro Cego,
Alcobaça, Rebate, 2001

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sobre um quadro de Braque

Georges Braque (1882-1963),

Le Portugais,

1911













É em tons de amarelo “Le Portugais”
de Braque. Uma tela aberta como
uma planície onde se lêem inex-
plicáveis letras rasgadas a negro
sobre um fundo claro.

É exacta a medida da mão
que edifica a forma, que assalta
o espaço, que faz respirar a obra
e habita a voz que diz: amo a regra
que corrige o excesso. Podia poisar
um pássaro no lugar de fogo
onde se fundem estas cores.
Podia o pintor forrar os muros,
a substância das telas com sílabas
de luz, frases de desassossego
que nunca a pintura o redimiria
da suprema coragem de fotografar
por dentro a vida.

José Jorge Letria, O Desencantador de Sepentes,
Litexa Portugal, 1984

Carta a meus filhos sobre os fusilamentos de Goya

Francisco Goya,
El tres de Mayo (1808),
1814
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Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena, Antologia Poética

Ciprestes

Vieira Portuense,
Ciprestes,
1789















E de repente aqueles ciprestes
aquela luz que não se sabe de onde
chove cinza e prata estriada de
finas veias.

Sentes uma presença fugidia
junto do cipreste mais elevado.
Não faças caso
é apenas luz.

Passa sem te voltares
faz de conta que não percebes
não saúdes ainda –
luz, cinza, prata

no rumor do silêncio das folhas
verás que será um deus
quem te saúda primeiro.
Aqueles ciprestes –
o meu campo a minha árvore o meu jardim.

João Miguel Fernandes Jorge, Museu das Janelas Verdes,
Lisboa, Relógio d’Água, 2002

"O baloiço" de Fragonard

Fragonard,

O baloiço,

1767









Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!

Assis, 8/4/1961

Jorge de Sena, Antologia Poética,

"Morta" de Rembrandt

Rembrandt
(ou Jan Lievens?),
Morta,
1626










Morta. Apenas morta. Nada mais que morta.
Não parece dormir. Nem se dirá
que sonha ou que repousa ou que da vida
levou consigo o mais que não viveu.
Parece que está morta e nada mais parece.
E tudo se compõe, dispõe e harmoniza
para que a morte seja apenas sua.

É muito velha. Velha, ou consumida
na serena angústia de aguardar que a vida
vá golpe a golpe desbastando os laços
de carne e de memória, de prazer, piedade,
ou do simples ouvir que os outros riem,
e choram e ciciam ou silentes
se escutam tal como ela se escutava
na calma distracção de respirar
o tempo que circula pelas veias.

Em tudo a vida se extinguiu. Primeiro,
a que era sua e como que de todos
quantos amara ou conhecera um pouco
ou, vagamente vultos recordados, eram
sombras dos dias pensativos em
que os olhos pousam no que passa ou pára.
Depois a vida nela — o só viver,
o só estar viva sem saber seu nome —
e que não era sua mas lhe fora entregue
de posse em posse, no correr dos séculos,
desde a primeva noite pantanosa
àquele quarto em que vagiu nascendo.

Formas da vida não subsiste alguma
na luz difusa que a seu rosto aclara
tão marfinado no sudário branco
a destacar-se da coberta escura.
Morreu por certo há pouco, e já na boca
de lábios finos, comissuras longas,
como nas pálpebras pesadas ou
no afilamento do nariz adunco,
nada palpita, nem a morte, nada.

A luz deixa na sombra o crucifixo
que pende da parede ao pé do leito,
porém no rosto pousa aguda e leve
iluminando a teia de milhares de rugas
tecida pela aranha que se agita
entre nós e os outros, entre nós e as coisas,
entre nós e nós próprios, mesmo que
não fosse a vida esse crispar-se a pele
a um beijo que desliza, um vento que perpassa,
uma ansiedade alheada, um medo súbito,
uma demora de confiança triste.

Está morta. Apenas morta. Mas, no entanto,
na solidão a que nem cores resistem
não morre o mundo, não figura a Morte,
nada figura senão ela que
deixou de ser a solidão da vida,
para ficar ali, antes de apodrecer,
no breve instante em que a agonia acaba,
a solidão que vemos exterior enfim
no rosto amarelecido, no sudário branco,
no escuro cobertor, na luz difusa,
no jeito da cabeça repousada,
e nas pesadas pálpebras espessas,
fechadas sobre os olhos para sempre.

Lisboa, 12/5/1959

Jorge de Sena

sábado, 30 de julho de 2011

Las meninas (3)

Diego Velásquez,
Las meninas, 1656
















eu fico à esquerda no computador.
durante a tarde vou escutando discos.
a teresa foi buscar lápis de cor
e faz na folha grandes asteriscos:

desenha a jarra e a flor e outra flor;
mas como a vassourinha trás dos ciscos
a joana desaustina em derredor:
vai-se à obra da irmã e enche-a de riscos.

no espelho a luz entre água e sombras voga
e em aéreos espaços me detenho,
com a porta a rasgar-se mais ao fundo.

e o cão. e os sete anões. assim se joga,
do olhar à flor, do lápis ao desenho,
o jogo das meninas com o mundo.

Vasco Graça Moura, Poesia 1963-1995,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2001

A andorinha e Fra Angelico



Fra Angelico,

Anunciação,

1437-46




a cor faz-se luz
dimana o esquemático desenho candura e
recolhida entre dois arcos está a virgem - ao fundo
a sala adivinha-se vazia - sob a abóbada
onde ínfimos astros cintilam veio o anjo
com seu esplendor de asas em ouro trazer
o doce recado: hás-de conceber e dar à luz um filho
que reinará eternamente sob a casa de jacob

angelico estremeceu com a inesperada revelação e
na cela retirado deu vida às celestiais criaturas
mas só ele e a andorinha ouviram o segredo
que deus mandara gabriel anunciar

Al Berto, O Medo,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997

Eugénio e os pintores

Jardim de S. Lázaro-





sei de pintores que se inquietavam por
pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no

lento regresso a casa, as aves recolhiam e
eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos


do silêncio. seria à mesa do café, numa
sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
do atelier que lhe propunham essa
revisita das fontes, das perturbadas melancolias

que ele havia de dizer por palavras no papel.
mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
a sua fome do real nas artes da pintura.

era o cruzar das solidões comovidas: tudo
seria reescrito, portuense, partilhado
com uma densa, irisada exactidão, lá onde
umas pétalas da música começam

a partir de uma cor ou de um murmúrio,
de um rosto ou de uma nuvem,
de uma explosão do sol, de uma agonia.
era nos anos sessenta, era em s. lázaro.

Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000, Círculo de Leitores

Migração do amarelo





Foto

A.M.
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Não fales. Morre sempre um segredo
quando falas:
o amarelo das maias, do tojo, das acácias,
o amarelo com que é feito o verde.
O funeral é bonito com todas as cores presentes
mas o vermelho nunca mais será o mesmo.
As papoilas abandonam as margens do comboio
onde escrevo este poema. Emigram talvez,
o que lhes resta?
O frio que lhes entra no corpo encontra cerradas
as portas da alma: «volto já»,
a esperança pendurada onde devia estar:
«já fui» com o amarelo, com as papoilas
neste comboio que repete, como quem anda sobre trilhos.
«Não fales. Deixa vir a mim o amarelo».

Rosa Alice Branco, «O único traço do pincel» in
Soletrar o Dia, V. N. Famalicão, Quasi Edições, 2002

Receita para fazer o azul



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Foto de
Loulé
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Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão Ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice, Poesia Reunida, 1967 – 2000,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A última pincelada



Viveu em tempos um pintor que nunca conseguia acabar de pintar uma ave, fosse ela uma cegonha ou uma garça. Quando se preparava para dar a última pincelada, ela levantava voo.

E o pintor ficava muito tempo ainda a persegui-la com o pincel no céu azul...

Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu,
Lisboa, Fenda, 1991, 2.ª ed.

Para fazer o retrato de um pássaro














Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta
esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar
se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar
então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro

Jacques Prévert
(tradução de Eugénio de Andrade)

Pintura

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Picasso,
Auto-retrato,
1972


Noutro dia no museu
expôs-se lá uma tela
e logo o povo foi vê-la
quando o facto conheceu.

Mas o grande problema
era ao vê-la adivinhar
qual seria enfim o tema
que o seu autor quis pintar.

Um disse: - Aquilo é um pardal!
Outro disse que o não era:
- O senhor vê muito mal.
Aquilo é burro ou é fera.

E assim porfiavam todos
com os mais diversos modos
com o mais diverso trato
até que veio o artista
e disse: - Que fraca vista!
É o meu auto-retrato!

Anthero Monteiro, A Sara Sardapintada,
Porto, Corpos Editora, 2004

(Epigrama escrito pelo autor aos 16 anos,
altura em que ainda nada entendia de pintura modernista.
Ainda hoje não sabe se entende...)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Estudo para um quadro



Foto
A.M.

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O lápis, o pimento e o alho francês juntaram-
-se por acaso, em cima da mesa da cozinha. En-
tão, poderiam ter servido para uma natureza
morta; e um outro sentido nasceria, da sua
coincidência, se a toalha fosse azul e vermelha.
No entanto, o lápis acabou a fazer a lista das
compras, o pimento foi parar à panela do arroz
e o alho francês, cortado às rodelas, ferveu
durante uns minutos até a sopa acabar de cozer.

Nuno Júdice, Poesia Reunida, 1967 – 2000,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

O menino desenha




O menino desenha
O pólen do seu lápis cai nas folhas maltratadas;
No papel, a mãezinha é apenas uma bolha.
O menino risca e pede a Deus que o seu pai venha
Ver estas coisas desenhadas.

A irmãzinha mais moça quer o lápis e olha,
Uma lágrima em bico o seu olhar envidraça;
A chuva do menino são uns pontos tão depressa
Que o lápis se estilhaça.

O menino faz o galo, a torre, a casa e o judeu,
Que mostra aos outros meninos:
Mas a casa é que tem as pernas e o galo é que abre janelas,
A torre é que usa as barbas e o judeu tem os sinos
Por não ter nada de seu.
Oh meu rico menino, que fazes as coisas belas!

A irmã mais velha do menino há-de
Ser a mãe dos sobrinhos que desenharão também
O tio com uma bolha, como ele vê em bolha a sua mãe.
"Tem óculos, não está quieta e é muito boa";
O menino garatuja,
E vê-se a luz e os vidros, e até se vê a bondade
Que veio à sua mão suja
Do lado em que estava a pessoa.

O irmãozito do menino
Também está metido, e bem, neste quadrado:
É aquela figura de que o avô disse: -"É um pepino!",
Sem se lembrar que o artista podia ficar magoado.

Ah, meu menino, minha estrela a arder de dia,
Não deixes que te mexam no traço virginal que aprendeste
Quando eras o fio de sol na escuridão que enchia
A tua mãe - bolhinha, enquanto te não desprendeste.

Vitorino Nemésio, Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1988

Pede-se a uma criança: Desenha uma flor!


Foto A.M.






Pede-se a uma criança: Desenha uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

José de Almada Negreiros, Obras Completas 4/ Poesia,
Lisboa, Editorial Estampa, 1971

Novo tema: POESIA & PINTURA





António Joaquim, Porta,

Acrílico sobre tela, 2003









Muitos poetas escrevem sobre desenho, pintura, sobre obras de arte de todas as épocas, de todas as escolas e técnicas.
Esta poesia designa-se por poesia ecfrástica, ou seja, a representação verbal de representações visuais (do grego "ekphrasis", derivado de um verbo que significa "descrever com elegância"). Diz respeito também à escultura.


Mas é do desenho e da pintura que queremos falar por ora, colecionando textos de muitos autores sobre o assunto. Ocorrem-nos desde já alguns nomes que se dedicam à poesia ecfrástica: Al Berto, Nuno Júdice, Jorge de Sena, Vasco Graça Moura, João Miguel Fernnades Jorge, José Jorge Letria, entre muitos outros.


Então, comecemos:

POESIA & PINTURA

Os amantes















Marc Chagall,
Les amoureux
aux marguerites



Os amantes calam.
O amor é o silêncio mais fino,
o mais trémulo, o mais insuportável.
Os amantes buscam,
os amantes são os que abandonam,
são os que mudam, os que esquecem.

O coração diz-lhes que nunca hão-de encontrar,
não encontram, buscam.
Os amantes andam como loucos
porque estão sós, sós, sós,
entregando-se, dando-se a cada momento,
chorando porque não salvam o amor.

Preocupa-os o amor. Os amantes
vivem o dia-a-dia, não podem fazer mais, não sabem.
Estão sempre a ir,
sempre, para qualquer parte.
Esperam,
não esperam nada, mas esperam.

Sabem que nunca hão de encontrar.
O amor é o adiamento perpétuo,
sempre o passo seguinte, o outro, o outro.
Os amantes são os insaciáveis,
os que sempre – que bom! ¬– hão de estar sós.
Os amantes são a hidra do mito.

Têm serpentes em lugar de braços.
As veias do pescoço dilata-se-lhes
também como serpentes para asfixiá-los.
Os amantes não podem dormir
porque se adormecem são comidos pelos vermes.
Abrem os olhos no escuro
e cai neles o espanto.
Encontram escorpiões debaixo do lençol
e a sua cama flutua como sobre um lago.

Os amantes são loucos, apenas loucos,
sem Deus e sem diabo.
Os amantes saem das suas grutas
trémulos, famintos,
para caçar fantasmas.
Riem daqueles que tudo sabem,
dos que amam para sempre, veridicamente,
dos que acreditam no amor
como uma lâmpada de azeite inesgotável.

Os amantes brincam a agarrar a água,
a tatuar o fumo, a não se irem.
Jogam o longo, o triste jogo do amor.
Ninguém se há-de resignar.
Dizem que ninguém se resignará.
Os amantes envergonham-se de toda a conformidade .
Vazios, mas vazios de uma costela à outra,
a morte fermenta-lhes por detrás dos olhos,
e eles caminham, choram até à madrugada
em que comboios e galos se despedem dolorosamente.

Chega-lhes por vezes um odor a terra recém-nascida,
a mulheres que dormem com a mão no sexo,
deleitadas,
a arroios de água terna e a cozinhas.

Os amantes põem-se a cantar entre lábios
uma canção não aprendida,
e vão-se embora chorando, chorando,
a formosa vida.

Jaime Sabines, Poemas del Alma
(Tradução de Anthero Monteiro)

segunda-feira, 18 de julho de 2011

MAR / MULHER: tema para a Onda Poética de Julho


Sessão da Onda Poética de 20/7/2011

Tema: MAR / MULHER

Coordenação: ANTHERO MONTEIRO

Música: CARLOS ANDRADE

Leituras: COLETIVO DA ONDA

21.30 horas

Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva
ESPINHO

Entrada livre

quarta-feira, 29 de junho de 2011

QUARTAS MAL DITAS de 6 Julho: "Asas"




Próxima quarta, dia 6 de Julho, 21.30 horas, uma vez mais no piano-bar do Clube Literário do Porto, Rua Nova da Alfândega.


Tema: "ASAS"

Poesia, Música, Conversas.

Leituras pelo coletivo das Quartas:

- Ana Almeida Santos

- Anthero Monteiro

- António Pinheiro

- Cláudia Pinho

- Diana Devezas

- Luís Carvalho

- Rafael Tormenta

Música por RUI PAULINO DAVID.

Convidado: SILVINO FIGUEIREDO (ex-TAP)

Guião / Coordenação: ANTHERO MONTEIRO



Entrada livre.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Onda Poética na Biblioteca








A Onda Poética de Espinho vai estar, a partir deste mês de Junho, dia 15, na nova Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva, na Av. 24.


Por isso, o tema da sessão será VIAGEM NA BIBLIOTECA, uma incursão pelos livros, pelas estantes, pelas salas, pelas leituras, pela poesia relacionada.


21.30 . no jardim interior da Biblioteca, leremos poesia e ouviremos as belas vozes e os instrumentos do grupo Vozes Trinadas (e vale bem a pena!).


Coordenação de Anthero Monteiro


Organização desta sessão por Manuela Correia e Maria Mar


Leituras pelo coletivo da Onda.


A sessão do próximo mês de Julho será também na terceira quarta-feira do mês, dia 20/7.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

POESIA SOBRE CARRIS nas Quartas Mal Ditas




Dia 1 de Junho
22 horas

Sessão das QUARTAS MAL DITAS


no Clube Literário do Porto


Tema: POESIA SOBRE CARRIS



Guião de ANTHERO MONTEIRO


Música por RUI PAULINO DAVID


Leituras de: AMÍLCAR MENDES / ANA ALMEIDA SANTOS /ANTÓNIO PINHEIRO /ANTHERO MONTEIRO / CLÁUDIA PINHO / DIANA DEVEZAS / LUÍS CARVALHO / RAFAEL TORMENTA


Colaboração de FÁTIMA DIOGO LOPES


Entrada Livre

sábado, 23 de abril de 2011

QUARTAS MAL'DITAS: Medir o tempo ou A Dança das Horas



Sim, é isso: na próxima sessão, iremos medir o tempo, continuando a participar na dança das horas.

As leituras estarão a cargo de:

AMÍLCAR MENDES / ANA ALMEIDA SANTOS / ANTHERO MONTEIRO / ANTÓNIO PINHEIRO / CLÁUDIA PINHO / DIANA DEVEZAS / ISABEL MARCOLINO / LUÍS CARVALHO / MÁRIO VALE LIMA / RAFAEL TORMENTA.

Os interlúdios musicais ficarão ao cuidado do CARLOS ANDRADE (voz e guitarra acústica).

O convidado especial será ÁLVARO PINTO DA SILVA, colecionador e restaurador de obras de arte em relojoaria.

Uma noite de poesia, conversas e música coordenada por ANTHERO MONTEIRO.

Momento livre para espontâneos e outros.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Dúvidas pascais


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- Papai, o que é Páscoa?
- Ora, Páscoa é...bem... é uma festa religiosa!
- Igual Natal?
- É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição.
- Ressurreição?
- É, ressurreição. Marta, vem cá!
- Sim?
- Explica pra esse garoto o que é ressurreição pra eu poder ler o meu jornal.
- Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendeu?
- Mais ou menos... Mamãe, Jesus era um coelho?
- Que é isso menino? Não me fale uma bobagem dessas! Coelho! Jesus Cristo é o Filho de Deus Pai! Nem parece que esse menino foi batizado! Jorge, esse menino não pode crescer desse jeito, sem ir numa missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã! Já pensou se ele solta uma besteira dessas na escola? Deus me perdoe!
- Mamãe, mas o Papai do Céu não é Deus?
- É filho, Jesus e Deus são a mesma coisa. Você vai estudar isso no catecismo. É a Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
- O Espírito Santo também é Deus?
- É sim.
- E Minas Gerais?
- Sacrilégio!!!
- É por isso que a Ilha da Trindade fica perto do Espírito Santo?
- Não é o Estado do Espírito Santo que compõe a Trindade, meu filho, é o Espírito Santo de Deus. É um negócio meio complicado, nem a mamãe entende direito. Mas se você perguntar no catecismo a, professora explica tudinho!
- Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?
- Eu sei lá! É uma tradição. É igual a Papai Noel, só que ao invés de presente ele traz ovinhos.
- Coelho bota ovo?
- Chega! Deixa eu ir fazer o almoço que eu ganho mais!
- Papai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa?
- Era, era melhor, ou então urubu.
- Papai, Jesus nasceu no dia 25 de dezembro, né? Que dia que ele morreu?
- Isso eu sei: na sexta-feira santa.
- Que dia e que mês?
- ??????? Sabe que eu nunca pensei nisso? Eu só aprendi que ele morreu na sexta-feira santa e ressuscitou três dias depois, no sábado de aleluia.
- Um dia depois.
- Não, três dias.
- Então morreu na quarta-feira.
- Não, morreu na sexta-feira santa .... ou terá sido na quarta-feira de cinzas? Ah, garoto, vê se não me confunde! Morreu na sexta mesmo e ressuscitou no sábado, três dias depois! Como? Pergunte à sua professora de catecismo!
- Papai, por que amarraram um monte de bonecos de pano lá na rua?
- É que hoje é sábado de aleluia, e o pessoal vai fazer a malhação do Judas. Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.
- O Judas traiu Jesus no sábado?
- Claro que não! Se ele morreu na sexta!!!
- Então por que eles não malham o Judas no dia certo?
- É, boa pergunta. Filho.
- Papai, qual era o sobrenome de Jesus?
- Cristo. Jesus Cristo.
- Só?
- Que eu saiba sim, por quê?
- Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele era Jesus Cristo Coelho. Só assim esse negócio de coelho da Páscoa faz sentido, não acha?
- Coitada!
- Coitada de quem?
- Da sua professora de catecismo.

Luis Fernando Veríssimo

Cântico azul e branco


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«Vem para aqui» - dizem-me alguns com olhos de carneiro mal morto,
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem p’ra sair do Porto.
Eu olho-os com olhos de desprezo
(há, nos meus olhos, um carvão aceso)
e fico ao chão bem preso,
e nunca vou para ali…

A minha glória é esta:
ficar a olhar a azul imensidade!
Não ir atrás de ninguém!
- Que eu amo o azul até à eternidade
desde o dia em rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou para aí! Só vou p’ra onde
haja azul , muito azul com listas brancas
e se assim com firmeza meu gesto vos responde,
porque me repetis: «vem para aqui»?
Prefiro à Luz a Rua Escura e à Madragoa
o meu Bolhão e à Mouraria de Lisboa
eu prefiro, carago, andar por aí à toa
a ir para aí…

Se vim ao mundo, foi
só p’ra gritar Porto! Porto! até ao infinito,
e voltar a soltar o meu grito
de boca escancarada!…
Tudo o mais que disser não vale nada.

Como, pois, sereis vós
que me fareis promessas, convites e
ameaças,
para me ver mudar as minhas convicções?...
Corre, nas vossas veias, só o sangue mourisco
e vós amais o que não presta!
Eu amo o Azul e Branco,
o Risco,
a Festa,
e o fogo que sai da goela dos Dragões…

Ide! tendes águias já com gripe,
tendes árbitros fidelíssimos,
nunca tendes sumaríssimos
e tendes penálties, Calabotes e largos prolongamentos.
- Eu tenho a minha bandeira azul!
Ergo-a bem alto
e desafio o Sul
e, todo ufano, canto vitória
aos quatro ventos…

O azul e o branco é que me guiam, mais
ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
mas eu, que ganho sempre a minha aposta,
nasci do amor que há entre a vitória
e o Pinto da Costa.

Ah, que ninguém me venha com tão más intenções!
Eu sou apenas dos Dragões!
Ninguém me diga: «Vem para aqui»!
A minha vida é o Porto onde feliz eu sou,
A minha vida é o Porto onde a glória ancorou,
A minha vida é o Porto onde a festa estoirou!
Eu sei bem onde estou,
eu sei bem p’ra onde vou,
sei que não vou para aí!


Anthero Monteiro(inédito)

Uma paródia do «Cântico Negro» de José Régio:
comparar nesta Praça, aqui:

http://pracadapoesia.blogspot.com/2008/12/cntico-negro.html