segunda-feira, 1 de agosto de 2011
"Morta" de Rembrandt
Rembrandt
(ou Jan Lievens?),
Morta,
1626
Morta. Apenas morta. Nada mais que morta.
Não parece dormir. Nem se dirá
que sonha ou que repousa ou que da vida
levou consigo o mais que não viveu.
Parece que está morta e nada mais parece.
E tudo se compõe, dispõe e harmoniza
para que a morte seja apenas sua.
É muito velha. Velha, ou consumida
na serena angústia de aguardar que a vida
vá golpe a golpe desbastando os laços
de carne e de memória, de prazer, piedade,
ou do simples ouvir que os outros riem,
e choram e ciciam ou silentes
se escutam tal como ela se escutava
na calma distracção de respirar
o tempo que circula pelas veias.
Em tudo a vida se extinguiu. Primeiro,
a que era sua e como que de todos
quantos amara ou conhecera um pouco
ou, vagamente vultos recordados, eram
sombras dos dias pensativos em
que os olhos pousam no que passa ou pára.
Depois a vida nela — o só viver,
o só estar viva sem saber seu nome —
e que não era sua mas lhe fora entregue
de posse em posse, no correr dos séculos,
desde a primeva noite pantanosa
àquele quarto em que vagiu nascendo.
Formas da vida não subsiste alguma
na luz difusa que a seu rosto aclara
tão marfinado no sudário branco
a destacar-se da coberta escura.
Morreu por certo há pouco, e já na boca
de lábios finos, comissuras longas,
como nas pálpebras pesadas ou
no afilamento do nariz adunco,
nada palpita, nem a morte, nada.
A luz deixa na sombra o crucifixo
que pende da parede ao pé do leito,
porém no rosto pousa aguda e leve
iluminando a teia de milhares de rugas
tecida pela aranha que se agita
entre nós e os outros, entre nós e as coisas,
entre nós e nós próprios, mesmo que
não fosse a vida esse crispar-se a pele
a um beijo que desliza, um vento que perpassa,
uma ansiedade alheada, um medo súbito,
uma demora de confiança triste.
Está morta. Apenas morta. Mas, no entanto,
na solidão a que nem cores resistem
não morre o mundo, não figura a Morte,
nada figura senão ela que
deixou de ser a solidão da vida,
para ficar ali, antes de apodrecer,
no breve instante em que a agonia acaba,
a solidão que vemos exterior enfim
no rosto amarelecido, no sudário branco,
no escuro cobertor, na luz difusa,
no jeito da cabeça repousada,
e nas pesadas pálpebras espessas,
fechadas sobre os olhos para sempre.
Lisboa, 12/5/1959
Jorge de Sena
(ou Jan Lievens?),
Morta,
1626
Morta. Apenas morta. Nada mais que morta.
Não parece dormir. Nem se dirá
que sonha ou que repousa ou que da vida
levou consigo o mais que não viveu.
Parece que está morta e nada mais parece.
E tudo se compõe, dispõe e harmoniza
para que a morte seja apenas sua.
É muito velha. Velha, ou consumida
na serena angústia de aguardar que a vida
vá golpe a golpe desbastando os laços
de carne e de memória, de prazer, piedade,
ou do simples ouvir que os outros riem,
e choram e ciciam ou silentes
se escutam tal como ela se escutava
na calma distracção de respirar
o tempo que circula pelas veias.
Em tudo a vida se extinguiu. Primeiro,
a que era sua e como que de todos
quantos amara ou conhecera um pouco
ou, vagamente vultos recordados, eram
sombras dos dias pensativos em
que os olhos pousam no que passa ou pára.
Depois a vida nela — o só viver,
o só estar viva sem saber seu nome —
e que não era sua mas lhe fora entregue
de posse em posse, no correr dos séculos,
desde a primeva noite pantanosa
àquele quarto em que vagiu nascendo.
Formas da vida não subsiste alguma
na luz difusa que a seu rosto aclara
tão marfinado no sudário branco
a destacar-se da coberta escura.
Morreu por certo há pouco, e já na boca
de lábios finos, comissuras longas,
como nas pálpebras pesadas ou
no afilamento do nariz adunco,
nada palpita, nem a morte, nada.
A luz deixa na sombra o crucifixo
que pende da parede ao pé do leito,
porém no rosto pousa aguda e leve
iluminando a teia de milhares de rugas
tecida pela aranha que se agita
entre nós e os outros, entre nós e as coisas,
entre nós e nós próprios, mesmo que
não fosse a vida esse crispar-se a pele
a um beijo que desliza, um vento que perpassa,
uma ansiedade alheada, um medo súbito,
uma demora de confiança triste.
Está morta. Apenas morta. Mas, no entanto,
na solidão a que nem cores resistem
não morre o mundo, não figura a Morte,
nada figura senão ela que
deixou de ser a solidão da vida,
para ficar ali, antes de apodrecer,
no breve instante em que a agonia acaba,
a solidão que vemos exterior enfim
no rosto amarelecido, no sudário branco,
no escuro cobertor, na luz difusa,
no jeito da cabeça repousada,
e nas pesadas pálpebras espessas,
fechadas sobre os olhos para sempre.
Lisboa, 12/5/1959
Jorge de Sena