quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Poema da noiva de Chagall

Marc Chagall, Bride with blue face, 1932















Tenho os olhos repletos de ventura.
E isto simplesmente
por ver na minha frente um tanque de água,
bancos de pedra à volta
e uns modestos arbustos sem grandeza.
Como a ventura é fácil quando tudo
se mede em desventura!

Tudo se junta neste quadro ameno
para dar felicidade momentânea;
e o que falta, que é tudo, isso, imagino.
A luz do Sol escondido a jorros brota,
caustica a pele e afogueia o rosto;
nos arbustos despidos as flores rescendem;
e no tanque parado, de águas sujas,
o transparente líquido se eleva
e em parábolas cai na morta superfície.

Desce um pombo do alto em voo lento
e na borda do tanque poisa, e olha.
Finjo que sou de pedra; e o pombo olha-me.
Finge-se ele de pedra enquanto o olho,
e assim nos demoramos, um e outro,
até nos convencermos
que só de mútuo amor se vive em paz.

Um roçar de asas vem do alto e desce.
É ela, a pomba, o número que faltava
no programa das festas dos meus olhos.
Ao lado dele poisa, e tão chegada
que as penas dele em mim se sobressaltam.

Foi então que um rumor tão insensível
como um abrir de pétalas
roçou por entre as folhas dos arbustos.
A noiva de Chagall,
micro-onda violeta, espuma de detergente,
flutuando ao sabor de uma suposta brisa,
alegre e rápida, voluptuosa e breve,
em círculos de renda me envolveu.

De vassoura de esparto, o homem do jardim
juntava as folhas secas,
e ao juntá-las,
diluía rumores no silêncio da tarde
enquanto ia pensando noutra coisa.

António Gedeão, Poemas Póstumos,
Lisboa, Ed. João Sá da Costa, 1983