sábado, 30 de maio de 2009

Relógio















A sala há tanto fechada
Que será que tem lá dentro?
Tem janelas de sacada
Que não abrem para nada,
Tem na jardineira ao centro.

Das portas com reposteiros
As chaves já se perderem.
Cadeirões, há dois inteiros.
E os vários cheiros
Num só, mau, se converteram.

Damascos baços
Dos reposteiros corridos
Pendem graves, caem lassos.
Por trás sugerem-se espaços
Não para os nossos sentidos.

No corredor, (longe, perto,
Quem sabe ao certo?)
Ruminando horas vazias
De conteúdo,
Um velho relógio mudo
Comanda o espectro dos dias.

No tampo da jardineira
Com lavores
À rica antiga maneira,
Pousa a floreira
Sem flores.

E uma luva de mulher
Que em dado momento, um dia,
Veio ali ter,
Ali ficou a esquecer,
Murcha, enrugada, vazia.

A mão que algum dia a enchera
Do seu calor
E carne e sangue lhe dera,
Que é de essa mão? de quem era,
Que há só silêncio em redor?

Do nu corredor deserto,
(longe? perto?)
Grotescamente arquejante
De bater, bater sem corda,
O mudo relógio acorda
Vãos ecos do nulo instante.

Maternal, sensaborona,
Forrada a florinhas roxas
De viúva ou solteirona,
Uma poltrona
Mal se tem nas pernas coxas.

Cavado
Nas molas velhas,
Um corpo ficou marcado
Desde não sei que passado
No estofado com engelhas.

Será o braço da mão
Que era de luva
Que já não vem pousar, não,
No braço estendido em vão
Da solteirona viúva?

No corredor sempre incerto
(fica lá longe? está perto?)
Doente de asma,
Fingindo horas já ouvidas
De ouvidos de ausentes vidas,
Pousa o relógio-fantasma.

Ficou aberto um volume,
No tapete,
Do romance em que é costume
Ferver amor, sangue, ciúme,
Com duelos a florete.

Ficou aberto de quando,
Na folha velha,
Se a poltrona, esfarripando,
Com o tapete desbotando
Faz tão idónea parelha?

De essas páginas caído,
Um amor-perfeito jaz
Que, ressequido,
Sobre o tapete puído
Se desfaz, desfaz, desfaz…

No corredor, (longe? perto?)
O relógio marca certo
Dias de eras que nem eram,
Dando horas que nunca foram:
Só comemoram
Factos que não decorreram.

A um canto, das sombras frias
Emerge o piano antigo
Que em outros dias
Fez voar sons, harmonias,
Neste jazigo.

Hoje, o herói de tais castelos
De tais músicas, tais mesclas,
- Sonhos, visões, pesadelos –
Tem partidos e amarelos
Os dentes-teclas.

E elas, aquelas
Cujos dedos saltitaram
Nessas teclas amarelas,
Prostraram-nas que procelas?
Que fantasmas se tornaram?

No corredor, longe e perto,
O relógio em seu deserto,
Pontual na sua vez,
Marca um tempo que não passa
Sem que ao passar se desfaça
Dos próprios tempos que fez.

Pelas paredes vestidas
De cetim descolorido,
Fotografias sumidas
De eras perdidas
Perderam todo o sentido.

Quase irrisório, esse vulto
Do ilustre doutor qualquer
Que, mais que morto e sepulto,
Já nenhum culto
Pode a ninguém merecer!

Ou o marcial, juvenil
Alferes encantador
Que sorri, sobrolho em til,
Ao par de noivos gentil
Que em frente mancha o bolor.

No corredor, longe, perto,
O relógio absurdo e experto
Perpetuamente
Lembra o tal passado obscuro
Que se desfez num futuro
Que se desfaz no presente.

Que é de ti, mão, se exististe,
Da luva morta
Que aí ficou, fútil, triste?
Corpo cujo vão persiste
Na poltrona meia torta?

De nós, dedos que arrancastes
Melodias
Que essas teclas que animastes?
Vós, noivos, se experimentastes
Que volúpias? que agonias?

Tu, alferes sedutor,
Perdeste?, ganhaste a guera?
Tu, grande senhor doutor,
Foste lá seja o que for
Antes de seres pó, terra?

Longe! longe! perto! perto!,
Concertando o tudo incerto,
Parado, o relógio mudo
Repete a imensa charada
– Sempre viva e já safada –
De que tudo é nada-nada,
Se o Nada não tem o Tudo.


José Régio, «Cântico Suspenso» in
Obra Completa Poesia II,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, 5.ª ed.

Rosa Alice Branco entre rosas












































Foi mais uma sessão das Quartas Mal-Ditas, ou melhor, foi uma sessão muito especial, onde todas as atenções convergiram para uma Rosa também especial, entre o aroma de outras rosas e o aroma dos seus versos.

Apesar dos futebóis, a sala encheu em cima da hora. Rosas Brancas para Alice era o tema e, por isso, foram lidos textos de vários escritores e poetas: Anthero Monteiro, José Gomes Ferreira, Saint-Exupéry, O'Neill, Sophia, Neruda, Al Berto, Joaquim Pessoa, Ricardo Reis e outros.

De seguida, a poeta convidada, que tem em casa «uma janela que dá para as rosas», leu também alguns dos seus muitos poemas sobre o assunto. Às perguntas suscitadas pelas leituras, Rosa Alice respondeu com a desenvoltura que se lhe conhece e deixou mais um perfume: o do seu saber sobre a poesia e a literatura em geral.

No final, depois da declinação completa do Rosa Rosae, uma pianista espontânea (Paula, assim se apresentou) encerrou esta cálida noite poética do dia 27/5 no Clube Literário do Porto. Aí vão algumas fotos. 

terça-feira, 26 de maio de 2009

Dia de aniversário







Rosa Alice
Branco

ao Hugo

Sempre que te escrevo aparecem fusos entre nós:
11 da manhã em Isla Negra e duas da tarde
no teu quarto. Na casa de Neruda mesmo as figuras da ré
olham o mar. Coleccionáveis, como as que se vendem
numa barraca cá fora, de vários tamanhos e preços.
Escrevo-te para qualquer lugar que nunca sei onde fica.
Cão de caça, procuro os teus vestígios por aí:
entre as roupas que faltam busco as que te agasalham,
cheiro a louça que sujaste, procuro a ciência da tua natureza
espalhada pela casa. A casa de Neruda em Isla Negra
é transparente: posso segui-la ao longo da costa, da voz do guia,
essa voz absurda que podias ter ouvido três horas antes
se não houvesse fusos entre nós. Talvez o poeta
se tenha picado num fuso e o exílio fosse apenas a cegueira
dos outros. Imponentes as figuras inclinadas miram longe,
para lá do vidro. A mais bela olha a campa de Neruda
por entre a multidão de visitantes que exigem uma fotografia
com ele. Instantâneos: vão e e outros vêm ser fotografados.
A terra é fotogénica e está sempre à mão. Agora já é tarde
em Isla Negra e demasiado cedo no teu quarto.
Talvez o amor seja uma figura de proa desafiando o barco
por entre o alvoroço das águas. Está virada para ti
que nunca sei onde estás e és o meu norte.

Rosa Alice Branco, Das Almas e dos Espíritos Animais,
Porto, Campo das Letras, 2001
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Por falar em aniversário:
Não sei bem como foi, mas, como associamos o mês de Maio às rosas, sempre tive como certo que Rosa Alice Branco, poeta das minhas predilecções, faria anos em Maio. Por isso a convidei para a sessão das Quartas Mal-Ditas deste mês, amanhã, dia 27, às 22 horas. Entretanto, vim a saber que o seu aniversário é no dia 22 de Dezembro...

Grande pontaria! - disse ela...

Também lhe afiancei que a sessão, a avaliar pela maioria das outras, teria uma sala cheia, desde que não houvesse futebol... Outro tiro certeiro: amanhã, Barcelona - Manchester para a final da Liga dos Campeões...
Não será por isso que vamos calar os poemas ou abafar o perfume das rosas e... da Rosa.

Também gosto de futebol, mas a Poesia, para mim, estará sempre em primeiro lugar.
Quem quer fazer-me companhia?

À flor da pele











Nunca vi nervos à flor da pele, mas sinto
a doçura do pólen e deixo a língua escorregar
pelo teu corpo. Dizem que os nervos se reflectem
nos intestinos. A flor dos intestinos cura-se
com a flor do iogurte. É um universo completo:
da flora à fauna intestinal, de dobra em dobra,
a vista da montanha, a festa dos vales
e pequenos seres despertando
no côncavo, no invisível cheio de promessas.
Deve ser terrível ter os nervos à flor da pele,
acalmá-los com massagens suaves até murcharem
ou então deixar os nervos à superfície
como um ouriço-cacheiro, um ouriço-do-mar
se viver no litoral. É um mundo perigoso.
São horas: Levo a minha pele à rua
presa pela correia do relógio.

Rosa Alice Branco, Da Alma e dos Espíritos Animais,
Porto, Campo das Letras, 2001

Rosa Alice Branco estará amanhã, quarta-feira, na sessão das Quartas Mal-Ditas do Clube Literário do Porto, coordenadas por Anthero Monteiro. Lerão poemas, para além da poeta e do coordenador: Amílcar Mendes, António Pinheiro, Isamar, Luís Carvalho, Mário Vale Lima, Marta Tormenta e Rafael Tormenta. No piano, Rosa Brandão. Sessão subordinada ao tema: ROSAS BRANCAS PARA ALICE.

Rosa Alice Branco nas Quartas Mal-Ditas

Funeral blues







Foto in

www.telegraph.co.uk






Stop all the clocks, cut off the telephone,

Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.

W. H. Auden, Selected Poems of W. H. Auden


N. em York, Reino Unido (1907). F. em Viena (1973). Trata-se do maior poeta inglês do séc. XX. Poema utilizado no filme de Mike Newell "Quatro Casamentos e Um Funeral" (1994).

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Tradução preferida:

Parem já os relógios, corte-se o telefone,
dê-se um bom osso ao cão para que ele não rosne,
emudeçam pianos, com rufos abafados
transportem o caixão, venham enlutados.

Descrevam aviões em círculos no céu
a garatuja de um lamento: Ele Morreu.
no alvo colo das pombas ponham crepes de viúvas,
polícias-sinaleiros tinjam de preto as luvas.

Era-me Norte e Sul, Leste e Oeste, o emprego
dos dias da semana, Domingo de sossego,
meio-dia, meia-noite, era-me voz, canção;
julguei o amor pra sempre: mas não tinha razão.

Não quero agora estrelas: vão todos lá para fora;
enevoe-se a lua e vá-se o sol agora;
esvaziem-se os mares e varra-se a floresta.
Nada mais vale a pena agora do que resta.

Vasco Graça Moura

segunda-feira, 25 de maio de 2009

O relógio



Relógios da
colecção particular
de Jorge d'Além-Mar
(Foto de Anaas)




passa tempo,
tic-tac
tic-tac,
passa hora
chega logo,
tic-tac
tic-tac,
e vai-te embora
passa, tempo
bem depressa
não atrasa
não demora
que já estou
muito cansado
e já perdi
toda alegria
de fazer
meu tic-tac
dia e noite
noite e dia
tic-tac
tic-tac
dia e noite
noite e dia

Vinicius de Moraes, A Arca de Noé

O portugal futuro













O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Ruy Belo, Homem de Palavra[s],
Lisboa, Editorial Presença, 1978, 2.ª ed.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O tempo, Maud...







O tempo nunca se detém...
(Foto A.M.)





O tempo, Maud,
o tempo não é como os cães de um trenó
que, à voz do dono, se detém.
O tempo não é como a Ursa branca
que volta a cabeça para ver se a seguem
os filhotes,
nem como o caçador
que volta ao igloo seguindo as suas próprias pegadas
sobre a neve,
as pegadas que o vento já começa a apagar.
O tempo nunca se detém,
não olha atrás,
não regressa.

Eu era já velho, ainda os teus pais não tinham nascido;
e estarei morto
quando os teus peitos se mantiverem ainda firmes
debaixo do agasalho de pele de foca
que ontem te ofereci.

Amo em ti
o universo infinito, não a tua beleza passageira;
amo em ti a raça humana que não acaba,
não o barro mortal de que estás feita.
Amo em ti o modo como haverás de recordar-me
quando tu também te aproximares com passo vacilante
do inverno da tua vida,
e não a primavera do teu sorriso.
Mas, sobretudo, Maud,
amo em ti aquele que eu fui,
amo em ti todas as raparigas que queimaram suas asas
lá longe,
no fogo da minha juventude,
e que não puderam sobreviver-me.

W. S. T. Hillip Zen Eugen Jahra
in Joaquim Pessoa, Os Herdeiros do Vento - Antologia Apócrifa,
Litexa Portugal, 1984

N. na Nova Zelândia em 1872. Formou-se em medicina e correu meio mundo: viveu sucessivamente em Inglaterra, Áustria, Índia, África do Sul, Sicília, Cuba, México, Peru, Bolívia, Brasil, França. Casou com 60 anos com uma jovem de 18 anos da sua terra natal, mas, tendo tido conhecimento da descoberta de uma ilha a 2300 km da sua cidade, habitada por uma tribo de gente que vivia no período neolítico, o Dr. Zen partiu com a família e um grupo de jovens voluntários, disposto a conquistar a ilha, a que já dera o nome de Simbeck. A travessia durou 6 meses e perdeu nela a esposa, os filhos e 42 dos 50 acompanhantes, Durante 20 anos, ninguém soube deles, mas , em 1957, após uma expedição de cientistas da UNESCO, soube-se da existência de um estado, chamado República Independente de Simbeck, a menos de 100 km das contas da Antártida. Tinham leis, instituições, idioma, capital, hino, bandeira, etc. próprios, e cerca de 2000 habitantes. O Presidente era o Dr. Zen: tinha 85 anos e foi várias vezes reeleito. Em 1980, tinha 108 anos e era ainda o presidente do país mais pequeno do mundo: 46 km2.
Este belo poema foi-lhe inspirado por uma adoloescente de 16 anos chamada Maud, nome que em zénico significa "lábios gelados". (Resumo da aventurosa vida do Dr. Zen narrada no livro de Joaquim Pessoa: um autêntico romance.)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Sem clepsidra ou sem relógio...








O tempo escorre...
(Foto A.M.)





Sem clepsidra ou sem relógio o tempo escorre
E nós com ele, nada o árbitro ‘scravo
Pode contra o destino
Nem contra os deuses o desejo nosso.

Hoje, quais servos com ausentes deuses,
Na alheia casa, um dia sem o juiz,
Bebamos e comamos.
Deixa para amanhã a ciência e a vida.

Tombai mancebos, o vinho em nobre taça
E o braço nu com que o entornais fique
No lembrando olhar
Como a água da vida. Ah, vem o vinho!

Sim, heróis sê-lo-emos amanhã.
Hoje adiemos. E na erguida taça
O roxo vinho espelhe
Depois — porque a noite nunca tarda.

Ricardo Reis, «Outras Odes»
in Fernando Pessoa, Poesia dos Outros Eus,
Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2007

Pedra de Sísifo II










Relógio de sol

em Mourilhe -
Montalegre
(Foto A.M.)







Agora medirei o tempo
Pela vara erguida ao meio-dia
Pela areia a descer o coração
E o sono

Pela cinza no cabelo de Jacob
Pelas agulhas no colo de Penélope

Agora lavarei a minha face
Sem perturbar os círculos da água
Medirei o tempo pelo peso da pedra
De Sísifo, perto do cimo
E pelo musgo que dificulta
A firmeza dos seus pés

Partirei sozinho na viagem
Sem nenhuma pedra ou senda repetida
E no tempo repetido acharei uma saída
Uma manhã depois de uma manhã

Daniel Faria, Poesia,
V. N. Famalicão, Edições Quasi,2006, 2.ª ed.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poema XLIV de "O Guardador de Rebanhos"














FotOliveira




Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com
paredes vagamente brancas.

Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima
da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...

Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLIV"

terça-feira, 19 de maio de 2009

Horas rubras














Horas profundas, lentas e caladas,
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço as olaias rindo desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos.
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve branca e misteriosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

Florbela Espanca, Livro de Soror Saudade (1923)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O comboio correio das 10 da noite...















O comboio correio das 10 da noite partia da
minha terra para Lisboa. Fui tantas vezes
com o meu pai levar as cartas. Esperávamos
na gare. Se havia chuva ouvíamos o apito
quando passava à Granja vindo de Óbidos e

depois de correr o vale de S. Mamede.
O que mais me seduzia era o seu peso o negro
da máquina o movimento do êmbolo a nuvem de vapor
correndo toda a gare. Chegava entre videiras e
pântanos. O chefe da estação de

bandeirinha verde dava o sinal de entrada. Era
o intenso barulho os ferros da travagem
o bater das portas as carruagens verdes
enegrecidas, os castanhos wagons. Máquinas de carvão,
a diesel depois. O degrau de madeira ao

longo da carruagem, o romano nas portas I, II, e III.
Anos depois, já de mim se dizia «um homenzinho»
viajei nesse comboio das 10. Partia de
Coimbra, às cinco horas. Pelos campos do Mondego

a água, a matéria do ferro, confundi
com o caos. Reconheço neste comboio a forma
obscura, a intuição ridícula das imagens. A noite
corria de mistura com a triste lâmpada do
corredor, benefício do mistério, fogo fechado pela

trovoada sobre os campos do arroz, sobre o pinhal de Leiria.
Viajava em segunda. Vinha para casa no natal.
Eu tinha um emblema, vermelho e branco dos suíços,
na lapela do sobretudo. O meu irmão, as mãos
gretadas das frieiras sob umas luvas azuis. No

banco em frente,
uma professora de geografia rezava o terço
atenta à formação do espírito científico nascente.
Descolorido amor humano,
fornalha de comboio, coração das coisas a noite
corria fora e dentro da carruagem verde.

Meu pai estava na gare.
A longa fita de cabedal para fechar, abrir as
janelas. A rede onde pousava as malas.
Os corridos bancos de madeira ficavam na III.
Um guarda republicano cerrava todas as

noites sobre o azul do capote a portinhola.
O traço do comboio separa o céu da terra sob as estrelas
sob o limite da chama
a arte tanta vez a natureza.

João Miguel Fernandes Jorge, «Exposição» in O Regresso dos Remadores,
Lisboa, Editorial Presença, 1982

domingo, 17 de maio de 2009

Ofício de morrer



















eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que havia estrelas.

uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio. a do costume.
corria o mês de agosto com sua terra escura

encardindo as cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto àquela hora da tarde
de luz adocicada. e alguém pusera
três rosas de plástico num solitário verde.

vejo como pavese entrou, como pousou a maleta
com indiferença, dobrou alguns papéis
e despiu o casaco (como nos filmes
italianos da época). depois foi aos lavabos

no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em tudo aquilo.

ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, mesmo sem buzinas

excessivas. encheu um copo de água. e esperou.

quando a campainha tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna
vulneráveis; e míseros, inermes;

que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
foi mais ou menos isto – a nossa condição

demasiado humana, a voz humana, a frágil
expressão disso tudo, uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros e nenhum

remorso lancinante, ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil: tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.

foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou.

não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo, se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica.

não sei se entrou na morte como quem
traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono e vai calar-se e é justo.

não sei se foi assim, se existe uma outra
verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades

e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. eu prefiro
dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.


Vasco Graça Moura, «Os Rostos Comunicantes» in Poesia 1963-1995, Casais de Mem Martins / Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001


Poema sobre o suicídio do poeta italiano Cesare Pavese, o autor de Ofício de Viver, ocorrido em Turim em 1950. Nascera em Santo Stefano Belbo, nas Langhe, província de Cunco, em 1908.