terça-feira, 5 de maio de 2009

Na aldeia








Foto A.M.






Duas horas da tarde. Um sol ardente
Nos colmos dardejando e nos eirados
Sobreleva aos sussurros abafados
O grito das bigornas estridente.

A taberna é vazia; mansamente
treme o loureiro nos umbrais pintados;
Zumbem à porta insectos variegados
Envolvidos do Sol na luz tremente.

Fia à soleira uma velhinha: o filho
No céu mal acordou da aurora o brilho
Saiu para os cansaços da lavoura.

A nora lava na ribeira, e os netos
Ao longe correm seminus, inquietos,
No mar ondeante da seara loura.

Gonçalves Crespo

N. no Rio de Janeiro em 1846 e veio para Portugal aos 14 anos (era filho de um negociante português e de uma mestiça). Naturalizou-se mais tarde português para poder exercer a advocacia, pois estudara e formara-se em Direito, em Coimbra, tendo aí colaborado em A Folha de João Penha. Introduziu o Parnasianismo em Portugal. Foi sonetista de grande mérito. Veio a casar com a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho e foi deputado às Cortes. A tísica matou-o aos 37 anos (1883). 

Não sei, agora, se este texto vinha incluído em Miniaturas (1870) ou em Nocturnos (1872), porque, quando adolescente o copiei para uma sebenta que ainda hoje conservo, não aprendera ainda a citar a obra, não esquecendo, porém, nunca o autor.
Gonçalves Crespo foi, aliás, talvez o primeiro responsável pelo meu gosto pela poesia e pela escrita: um dia, estava a aula de Português a terminar, o professor pediu que decorássemos um texto dele para dizer na aula seguinte. Quando cheguei ao recreio, depois de descer dois andares, já sabia o poema de cor. Era aquele intitulado "Alguém", que começa assim: «Para alguém sou o lírio entre os abrolhos / e tenho as formas ideais do Cristo. / Para alguém sou a vida e a luz dos olhos / e se na terra existe é porque existo». Nunca mais o esqueci, como aconteceu com dezenas de outros poemas, que ainda hoje recito por aí... 
Há algum tempo, a conduzir de regresso a casa do Algarve e para não adormecer, vim de Montegordo até Lisboa a dizer poemas de cor, ininterruptamente. E não repeti nenhum. 

(Curiosidades que registo para mim próprio, antes que o Sr. Alzheimer se apodere de mim... Aliás, uma das perguntas mais comuns, quando visito as escolas, é aquela que pretende saber donde me vem esse tal gosto pela poesia. Aqui fica a resposta.)