sábado, 28 de março de 2009

Primeiro excerto de duas odes








Noite

estrelada
(Van Gogh)


Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para ao pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das cousas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que é tudo o que nós não temos,
Que é tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso de fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das cousas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.
______

Álvaro de Campos, in Fernando Pessoa, Poesia dos Outros Eus,
Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, Círculo de Leitores e Richard Zenith, 2007

Lendo Álvaro de Campos





In

www.triplov.com




A lua dissolve no azul o pigmento de estrelas

Se há em mim alguma correlação
entre as qualidades e os defeitos
não a acho Se há que se anulem
que é como quem diz: que se lixe

Mas a poesia ainda vive

esquimó das minhas esperas árcticas

alvo da curiosidade à minha volta
--------------------------------- dêem-lhe ne giba

Oh Álvaro
na concha da minha paciência oceânica.

Sebastião Alba, Uma Pedra ao Lado da Evidência,
Porto, Campo das Letras, 2000

Sebastião Alba, ou seja Dinis Carneiro Gonçalves, nasceu na freguesia da Cividade - Braga em 11/3/1940. Viveu em Moçambique até 1981. De regresso a Portugal, foi viver para Braga. Foi opção sua romper com o seu estatuto e «viver sob um tecto de estrelas em parte incerta».
Dormia num banco de jardim ou nas entradas do prédios ou no alpendre da capela de Santo Adrião. Fazia-se acompanhar de um rádio sempre sintonizadona Antena 2. Eram também sua companhia habitual o café, o álcool e o tabaco.
Ganhou o Grande Prémio de Literatura ITF, mas entregou o dinheiro respectivo às filhas.
Em 14 de Outubro de 2000 foi atropelado por um automóvel à saída de um bar.
Outras obras: O Ritmo do Presságio, A Noite Dividida, O Limite Diáfano, Alba.

terça-feira, 24 de março de 2009

segunda-feira, 23 de março de 2009

A última estrela














Há ainda a última estrela. A rua
Dorme. As casas dormem. Eu não! Daqui a pouco
Só mesmo alguém completamente louco
Dirá que a noite ainda continua.

Uma estrela, quando já é apenas uma,
Anuncia sempre o fim de qualquer coisa bela.
(Nenhuma
estrela

É verdadeiramnete bela senão
Por que se apaga!) E, mais cedo ou mais tarde,
Uma estrela será a última no céu.

- A rua dorme. As casas dormem. Eu não!
Olho a última estrela, enquanto arde:
E sonho que essa estrela, enfim, sou eu...

Eduíno de Jesus, de A Cidade Destruída Durante o Eclipse, 1957
in Ruy Galvão de Carvalho (pref., sel. e notas), Antologia Poética dos Açores, Vol. II,
Angra de Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1979.
-------------

Deve ter sido mais ou menos pela altura da data da publicação desta antologia, que eu conheci Eduíno de Jesus, com quem participei, na altura, num estágio sobre Iniciação à Comunicação Audioviaul (ICAV) em Bordéus, França.
É natural de Arrifes - Ponta Delgada, onde nasceu em 1928. Ocupou, na poesia açoriana, um lugar cimeiro «como renovador temático e expressional».
Foi também ensaísta, crítico literário e de artes plásticas. Colaborou na imprensa açoriana e na do continente e publicou uma peça de teatro (Cinco Minutos e um Destino). Viu poemas seus serem traduzidos para francês. Além do livro de poesia mencionado, editou ainda Caminho para o Desconhecido (1952) e O Rei Lua (1955) e provavelmente outros mais.
Por onde andas, Eduíno?

À noite





In

www.partecipiamo.it



À noite
à ilharga do tempo
de mãos separadas
olhamos as estrelas.

Perdeste o isqueiro
e estás perturbada.
Tens razão:
deixaste para trás
um qualquer pertence
da realidade.

Hesitas se hás-de regressar
ao seu encontro
mas talvez te percas
exactamente aí
ao regressares.

Olha melhor as estrelas
é noite
e estamos à ilharga do tempo.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Dióspiro,
V. N. Famalicão, Quasi Edições, 2997

Estrelas virgens






In

mgsrc.hubblesite.org





Olha as estrelas, mãe, conhece-las?
Elas nunca dormem e olham para baixo para a terra com olhos ansiosos.
Tal como eu que não tenho asas e não posso voar, e me sinto infeliz,
As estrelas também são infelizes porque não têm pés e não podem descer à terra.

Todas as manhãs desces até à curva do rio com
O cântaro no gancho do teu braço para ir buscar água;

As estrelas olham os seus reflexos na água e hora após hora pensam como seriam felizes se tivessem sido donzelas aldeãs e pudessem nadar no rio com os seus cântaros a flutuarem ao lado delas.

Rabindranath Tagore, Poesia,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2004
(tradução de José Agostinho Baptista)

domingo, 22 de março de 2009

Uma mancheia de estrelas













Hoje fiquei mais rica

de uma mancheia de estrelas:
aprendi no céu uma nova constelação
que já conhecia de nome
------------------------- mas sem juntar
o nome à pessoa:
----------------- isto é: ao vivo
corpo palpitante dessa ígnea criatura

Teresa Rita Lopes, Afectos,
Lisboa, Editorial Presença, 2000

Pastor de estrelas






Foto in
www.africa21digital.com



para o marinheiro carlos barbosa

companheiro barbosa
me atraz novidades:
«o grilo é um pastor de estrelas...»
entorno enternecitudes. assim em
emochões.
o grilo é rasante, gritante, em negrecido.
um bicho do chão, concluímos.
«mas aí está», diz-me.
«por via do chão ele despe distâncias;
está mais próximo de estrelas, pois...»
entorno espantos, encantos.
«um pastor, guiante?» - eu.
«ah pois e sim. o mais certo apastoreiro!» - ele.
e entrando em explicamentos:
«no canto do grilo as estrelas rebrilham, acendidas.
comungam luz, iluminam poeiras, universias versos.
de tanto desconhecimento em medições
o grilo ganha é abraço com estrelas;
de tanta chãotoria
o grilo estreia é intimidade com a magia»;
mas elas altíssimas, dependuradas,
o grilo aquieto - patas impostas em húmida terra.
mas barbosa:
«estrela é brilho de sonho.
é rebanho manso, em simplicidades disponíveis.
não queira indagar mistérios.
somente dê-se a ouvitudes: ausculte o grilo,
esse pastor de estrelas...»
entorno crenças, desfalências.
arre e pio-me de silêncios.
o grilo é um adormecedor de inquietudes.
cessa o canto, o encanto.
vincadas de negrume, as estrelas grilaram-se
para sonos.
adormecimentos provisórios.

Ondjaki, Há Prendisagens com o Xão ( O Segredo Húmido da Lesma & Outras Descoisas),
Lisboa, Editorial Caminho, 2009 (2002)

Ondjaki (Ndalu de Almeida) nasceu em Luanda em 1977. Licenciado em Sociologia, é, para além de poeta, actor, pintor, romancista, e está traduzido para várias línguas. A sua mais recente obra poética, lançada este mês, tem por título Materiais para Confecção de um Espanador de Tristeza.

Como se vê, a sua linguagem poética, tal como a de Mia Couto, estrebucha de tanto que faz viver a Língua Portuguesa.


sexta-feira, 20 de março de 2009

Estrela de todas as horas










Foto in
assirioealvim.blogspot.com




Estrela da Ilha de Puros Ministros do Amor

Estrela da Tarde que acredita sempre na possibilidade da existência

Estrela do Meio-dia Antes e Depois da Nossa Época

Estrela da Noite de Todas as Cores

Estrela da Madrugada que traz sempre a esperança agrilhoada

Estrela da Manhã - os Mistérios de Ísis e Osíris - eu ainda menino.


No Alto um Piloto por caminhos secretos.


Nos Gumes tudo que não possa durante este tempo

mergulhar como dois personagens distintos
num seio enorme de mármore nu

não pode fazer mais do que arrastar-se atrás dum Grande Carro.


ESTRELA DE TODAS AS HORAS - ODASASHOR-ASEST-R


mil novecentos e cinquenta
um pássaro de granito.

António Maria Lisboa
, Poesia,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1995

Poema da Utopia



























A noite caiu sem manchas e sem culpa.
Os homens largaram as máscaras de bons actores.
Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde.

No alto, a utópica Lua vela comigo
E sonha coalhar de branco as sombras do mundo.
Um palhaço, a seu lado, sopra no ventre dos búzios.
Noite! Se o espectáculo findou
Deixa-nos também dormir.

Fernando Namora

quinta-feira, 19 de março de 2009

O primeiro cometa da minha vida






Cometa Hale-Bopp
sobre Indican Cove,
no Nevada - E.U.A.
in apod.nasa.gov/





Confesso que me desiludiste um pouco
Quando ouvi dizer que estavas para chegar
pus-me ansiosa à tua espera
----------------------------- Foste o primeiro
cometa da minha vida
---------------------- Antes de te conhecer pensava
que serias maior mais vistoso mais em fogo
------------------------------------------- Depois
aceitei o teu recato a tua timidez
--------------------------------- e tentámos
acertar o passo e o olhar
------------------------ Encontrámo-nos no c éu
de Cacela e depois puseste-te a caminhar comigo
até Lisboa
---------- Aqui perdemo-nos de vista
-------------------------------------- Há luz electrica
a mais
------ Nesta cidade até do céu somos despossuídos:
o burburinho das luzes obscurece os astros
------------------------------------------- que fogem
a esconder-se atrás dos montes mais próximos
----------------------------------------------- Dizem
os cientistas que voltas daqui a três mil anos
Que é isso para o deus de quem és brinquedo
e eu também?
-------------- Em breve regressarás ao teu abismo
e um dia destes também eu mergulharei no meu
Marquemos já encontro para o dia 11 d Abril
de 4997
-------- à esquina do crepúsculo

Teresa Rita Lopes, Afectos
Lisboa, Editorial Presença, 2000
--------------------------------

É
do cometa Hale-Bopp que se fala neste poema: surgiu na Primavera de 1997 e só regressará, como aqui se diz, 3 000 anos depois.

quarta-feira, 18 de março de 2009

La cometa











Cometa McNaught



Foto in
www.dailymail.co.uk



Nel denso buio del cielo
verso plaghe remote,
dove il nostro occhio, e la mente
e il cuore non arrivano,
ti sospendi, radiosa,
nelle chiome infiammate di sole,
per farti ammirare, e il tuo splendore
m'inquieta.
Cupa una certezza
s'aggrappa alla tua scia:
nessuno che stanotte
stringerà tra le ciglia
il tuo chiarore
abbastanza vivrà per rivederti.
Ripasserai, ignara,
su quel ch'io non vedrò,
farfalla di luce danzante
sui gorghi infiniti del tempo.
-
Paola Stacconne (1997)
in http://www.bellatrixobservatory.org/2.html

Da influência da lua













Foto in
/www.galileo-web.com


Outono. O Sol, qual brigue em chamas, morre
Nos longes da água… Ó tardes de novena!
Tardes de sonho em que a poesia escorre
E os bardos, a cismar, molham a pena!

Ao longe, os rios de águas prateadas,
Por entre os verdes canaviais, esguios,
São como estradas líquidas, e as estradas,
Ao luar, parecem verdadeiros rios!

Os choupos nus, tremendo, arrepiadinhos,
O xaile pedem a quem vai passando…
E nos seus leitos nupciais, os ninhos,
As lavandiscas noivas piando, piando!

O orvalho cai do céu, como um unguento.
Abrem as bocas, aparando-o, os goivos;
E a laranjeira, aos repelões do Vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos.

E o orvalho cai… E, à falta de água, rega
O vale sem fruto, a terra árida e nua!
E o Padre-Oceano, já de longe, prega
O seu Sermão de Lágrimas à Lua!

A Lua! Ela não tarda aí, espera!
O mágico poder que ela possui!
Sobre as sementes, sobre o Oceano impera,
Sobre as mulheres grávidas influi…

Ai os meus nervos, quando a Lua é cheia!
Da Arte novas concepções descubro,
Todo me aflijo, fazem lá ideia!
Ai a ascensão da Lua, pelo Outubro!

Tardes de Outubro! Ó tardes de novena!
Outono! Mês de Maio, na lareira!
Tardes…
-------- Lá vem a Lua, gratiae plena,
Do convento dos céus, a eterna freira!

António Nobre, ,
Porto, Livraria Tavares Martins, 1971

Lua amiga minha









Foto in
www.ouellette001.com


Eis-te de repente ----- Espreitas ----- e devagar
levantas-te do leito do rio ----- afogueada
sacudindo a saia
---------------- Que fazias aí deitada com ele
minha magana?
--------------- Ah lua! Maluca lua que não tomas
juízo!
----- Aqui estamos de novo ----- cara a cara
sorriso no sorriso
----------------- Quantas vezes nos olhámos
assim nos olhos ----- tão enamoradas?
--------------------------------------- Saboreio
daqui deste meu décimo andar jardim suspenso
todos os momentos da tua caminhada céu acima
Agora já estás perfeitamente senhora de ti
redonda e rutilante
------------------- e olhas de alto o rio
que se aquieta para te receber e espelhar
tua inevitável retirada
---------------------- Ninguém te dá a idade
que tens
-------- Quem haveria de dizer que ficaríamos
grisalhas um dia!
---------------- Mas a ti fica-te bem esse cabelo
de neve luminosa ----- O meu pediu ao Outono
o ruivo fulgor de suas folhas
--------------------------- Ah lua amiga minha
da longínqua infância da perdida juventude
cúmplice de tanto fervor adulto ----- sozinho e
comungado ----- confidente de tanto pranto em fogo
transformado ----- à tua alquímica maneira ----- em fina
prata
-----aonde vais buscar esse sorriso manso
teu sereno aceitar de tudo o que acontece
tua ironia doce?
--------------- Quem me dera libertar-me assim
da canseira do dia!
------------------ Minha amiga minha Mãe meu amor
porque és tudo isso ao mesmo tempo
------------------------------------- afaga o áspero
dorso da minha irrequieta mágoa
--------------------------------- e afoga-me no teu
mar de luar
------------ que é água e ar e fogo ao mesmo tempo

Teresa Rita Lopes, Afectos,
Lisboa, Editorial Presença, 2000

terça-feira, 17 de março de 2009

Panfleto contra a paisagem X












Apaga-te, lua!
- lâmpada dos lírios e dos cães.

Não finjas de alma
esta realidade violenta
que me dói até às raízes.

Não pintes de mistério
estas bocas de fome
onde só há metafísicas de pão negro.

Não abras asas
na planície das pedras
de fogo apodrecido.

Apaga-te, lua!
Apaga-te! Apaga-te!
Peço-te que te apagues!

Para os tímidos poderem amar-se à vontade na sombra sem olhos,
para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas às castelãs de carne invisível,
para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo da noite,
para os trémulos morrerem heróicos em barricadas de imaginação,
para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão verde dos caixotes,
para os cegos dizerem: “Não vemos porque não há luar!”,
para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a arrastar mantos negros,
para os escorraçados saírem dos canos lôbregos
e forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
onde só os pobres deitaram moedas falsas,
para os visionários mergulharem as mãos na noite
em busca de outra lua sem vincos de caveira,
para as mães das caves convencerem os filhos: “Moramos num palácio às escuras”…

Ouviste, lua?
Apaga-te!
- lâmpada dos cães e dos poetas magros.

José Gomes Ferreira, Poesia –I, Lisboa, Portugália Editora, 1969, 4.ª ed.


Na antologia Os Poemas da Minha Vida, organizada por Mário Soares para o Público, vem a seguinte nota:
(«Futuro: este poema foi cortado pela Censura na revista “Vértice” de Coimbra. Acontecia isto no tempo do tiranete Salazar).
»

O passeio de Santo António















Imagem in
minhaitalia.blogspot.com/





Saíra Santo António do convento,
a dar o seu passeio costumado
e a decorar, num tom rezado e lento,
um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
o divino sermão piedoso e brando,
e nem notou que a tarde esmorecia,
que vinha a noite plácida baixando...

E andando, andando, viu-se num outeiro,
com árvores e casas espalhadas,
que ficava distante do mosteiro
uma légua das fartas, das puxadas..

Surpreendido por se ver tão longe,
e fraco por haver andado tanto,
sentou-se a descansar o bom do monge,
com a resignação de quem é santo...

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
o Menino Jesus baixou do céu,
pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
ele trazia... o coração no peito.

Sem suspentarem de que alguém os visse,
trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
— Ó Frei António, o que foi aquilo?...

O santo, erguendo a manga do burel
para tapar o noivo e a namorada,
mentiu numa voz doce como o mel:
— Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada...

Uma risada límpida, sonora,
vibrou em notas de oiro no caminho.
— Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
— Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...

— Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo António de Lisboa
calou-se embaraçado, mas, por fim,

corado como as vestes dos cardeais,
achou esta saída redentora:
— Se o Menino Jesus pergunta mais,
... queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
e contra aquele amor sem casamento,
pegou-lhe ao colo e acrescentou: — Jesus,
são horas...
------------ E abalaram prò convento.

Augusto Gil, Luar de Janeiro,
Sintra, Manuscrito Editores, 1984

Poema para Galileo














Túmulo de Galileo
na Igreja de Santa Cruz
em Florença



Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios).
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da
praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando um perigo
para a Humanidade
e para a civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscava os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andava a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso, estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo
caindo
caindo
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967),
Lisboa, Portugália Editora, 1975, 5.ª ed.

O eclipse










O senhor Henri olhava para o eclipse anunciado que ainda não começara.
Se os astros se atrasam, o que fará o resto – disse o senhor Henri.
O senhor Henri tinha trazido uns binóculos enormes.
…se os meus binóculos tivessem o comprimento que vai da terra ao sol, aí sim, eu veria as coisas mais próximas – disse o senhor Henri.
… em chinês existe uma única palavra para eclipse e para comer. O eclipse é uma coisa escura que come um astro.
… é uma bela imagem.
O senhor Henri, entretanto, pousou os binóculos e tirou da sua mochila uma garrafa de absinto.
Depois de beber umas boas goladas o senhor Henri disse: que belo eclipse! E bebeu mais umas goladas.
Deitado no chão à espera que algo acontecesse no céu o senhor Henri acabou por fechar os olhos e adormecer.
Quando acordou pegou na sua mochila e na sua garrafa de absinto e retirou-se.
Tive um eclipse privado, disse o senhor Henri para si próprio, satisfeitíssimo com os astros que conseguira ver no seu céu particular.
Um eclipse que só depende de mim, eis o que trago nesta garrafa – disse senhor Henri.

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Henri,
Lisboa, Editorial Caminho, 2003

O domador de luas



















estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria
conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos

sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso
eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
que os dedos enlear-se-ão uns nos outros e sobre a pele
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor

bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem a mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
La vie est une gare, je vais bientôt partir, je ne dirai pas où.
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
com tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas

Al Berto, O Medo
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997

A lua e Marilyn
















Tinha duas faces como a lua
Uma que toda a gente conhece
e outra (a que nunca se vê, a que não reflecte o sol)
e que ninguém (ou quase ninguém) está interessado em conhecer
É esse o teu lado que me fascina
que sempre me fascinou
Pousavas sobre as coisas (uma bicicleta, os lábios de Yves Montand)
como uma borboleta
e não pesavas mais do que isso
e o écran ficava amarelo quando te punhas a sacudir
o pólen que trazias agarrado nas mãos
Eu que sempre gostei de ir ao fundo de tudo
(e acabo por me ficar pela superfície de tudo)
custa-me a entender como é que tu ao passares a língua
pela casca de um fruto carnudo
lhe ficavas logo a conhecer o sabor ácido da polpa

90-60-90…

São essas rigorosamente as medidas do universo
em que te movias
as medidas do pesadelo
que faz com que de manhã o céu acorde com olheiras enormes
e eu todo partido como se tivesse levado uma grande surra
Vejo-te a navegar num mar onde milhares de homens
desaguam desesperadamente
O mar está encapelado
Nem me dou conta que está morta –
Subiram o pano
A sessão da tarde vai começar…
Gostaria de me encontrar depois contigo
num dos manicómios desta cidade
(há vários e vai ser difícil escolher)
Talvez nos pudéssemos dedicar aí a cultivar rosas
amarelas e fragrantes
nos jardins da nossa inconsistência

Jorge de Sousa Braga, O Poeta Nu
Lisboa, Fenda, 1999

segunda-feira, 16 de março de 2009

Nenúfar





Foto in
moonshadowfireheart.blogspot.com




Um nenúfar flutua
na mesma água
que a lua

Jorge de Sousa Braga

Celas








Foto in
www.ime.unicamp.br




Lua cheia:
com esta moeda de oiro
posso comprar um sorriso

Jorge de Sousa Braga, O Poeta Nu,
Lisbosa, Fenda, 1999

Didáctica





Foto in

cvc.instituto-camoes.pt





Uma noite por ano uma noite pelo menos
Assaltemos o céu e a Lua aprisionemos
Uma noite Uma noite Uma noite pelo menos

Armas Algemas Cães O que for necessário
Tragam-na dentro dum foguetão celular
E mantenham-na presa uma noite pelo menos

Interroguem então a prisioneira Lua
Não lhe poupem o corpo a nenhuma tortura
Uma noite por ano Uma noite pelo menos

Veremos se confessa o que nem nós sabemos
Chicoteiem-lhe o peito E fustiguem-lhe o ventre
Deixem-na toda em sangue uma noite pelo menos

É preciso que saiba os recursos que temos
É preciso que aprenda É preciso que a prendam
Uma noite por ano Uma noite pelo menos

David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988,
Lisboa, Editorial Presença, 1996, 2,ª ed.

O poeta e a lua








Imagem in

www.naturepixel.com






Em meio a um cristal de ecos
O poeta vai pela rua
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua.
Entre as esfera nitentes
Tremeluzem pêlos fulvos
O poeta, de olhar dormente
Entreabre o pente da lua.
Em frouxos de luz e água
Palpita a ferida crua
O poeta todo se lava
De palidez e doçura.
Ardente e desesperada
A lua vira em decúbito
A vinda lenta do espasmo
Aguça as pontas da lua.
O poeta afaga-lhe os braços
E o ventre que se menstrua
A lua se curva em arco
Num delírio de volúpia.
O gozo aumenta de súbito
Em frêmitos que perduram
A lua vira o outro quarto
E fica de frente, nua.
O orgasmo desce do espaço
Desfeito em estrelas e nuvens
Nos ventos do mar perpassa
Um salso cheiro de lua
E a lua, no êxtase, cresce
Se dilata e alteia e estua
O poeta se deixa em prece
Ante a beleza da lua.
Depois a lua adormece
E míngua e se apazigua...
O poeta desaparece
Envolto em cantos e plumas
Enquanto a noite enlouquece
No seu claustro de ciúmes.

Vinícius de Morais, Antologia Poética,
São Paulo, Companhia das Letras, 1972