segunda-feira, 16 de março de 2009
Doa Lua
Dona Lua é uma princesa
De sangue azul, verdadeiro...
Seu palácio – ah! que lindeza –
Tem o céu todo por chão.
Sete-Estrelo é o craveiro
Que dá flor no seu balcão…
Dona Lua é branca e fria
Como a espuma sobre a areia.
Às vezes, noite sombria,
Vem debruçar-se à janela;
E tudo em redor clareia
Da neve do rosto dela.
Dona Lua ama os poentes,
Não sai senão às tardinhas…
Tem poder sobre os doentes,
E os meus nervos de exaltado,
E as penas das criancinhas,
E as ondas do mar salgado…
Dona Lua é uma vaidosa,
Nunca vi vaidade assim!
Como sabe que é formosa,
Não cansa de se mirar:
Debruça-se ao varandim…
Qualquer dia, cai ao mar!
Dona Lua é perdulária,
De ninguém ouve os conselhos.
Vive entre incensos, é vária,
Por tudo se some e gasta.
Tem cem rios por espelhos…
Enfim, é mulher… e basta.
Dona Lua tem repentes
E uns nervos extravagantes:
Passeia, nua, os céus vagos;
E atira os seus diamantes
Aos rios, ao mar e aos lagos.
Dona Lua tem mistérios
Que bem no peito recata…
Por vezes, nos cemitérios,
Junto aos braços de uma cruz,
Despe os brocados de prata
E chora um leite de luz…
Dona Lua é requestada
De poetas sonhadores…
Ninguém já foi tão amada.
Em todos os versos passa.
Teve já milhões de amores,
E é pura e cheia de graça.
Demais, é, por sanguidade,
Neta de astros e de heróis;
Mas, cheia de caridade,
Nenhuma diferença a aterra:
Despreza o amor dos sóis
Pelo dos loucos da terra!
E é tão singular o encanto
Que ela tem, gelada e nua,
Que até eu, que apenas canto
Se estou nervoso e sombrio,
Cantando de Dona Lua,
Oh! Coisa rara!... – eu sorrio…
José Régio, “Colheita da Tarde” in Poesia II,
Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004