sexta-feira, 13 de março de 2009

O eclipse


















(24 de Setembro de 1884)


Naquela tarde eu contemplava, ansioso,
A lua das marés:
Ia ver um fenómeno curioso,
Pela primeira vez.

Desde as sete horas que eu me achava pronto,
Pois vinha no jornal
Que se daria, às sete e meia em ponto,
O eclipse total.

Na praia, Miss! àquela hora havia
Enorme sensação:
Entusiasmada, a gente discutia
Com o óculo na mão.

E como, é certo, com a vista nua,
Tão fraca e tão subtil,
Tu não podias observar a lua,
Astrónomo gentil.

Um moço poeta, rouxinol das praias,
Um óculo ofereceu,
A ti, meu casto Ptolomeu de saias,
Geómetra do céu!

Assestaste-o, mas nada: uma imprevista
Mancha aos teus olhos sai,
Pois que estava graduado pela vista
Do teu velhinho pai…

Da praia, entanto, na deserta areia,
Caía o luar, a flux,
E nos céus fulgurava a lua cheia,
Cheia de tanta luz,

Que tu, imaginando ver da aurora
O lúcido arrebol,
Disseste: «Estou capaz de abrir, agora,
O meu chapéu de sol…»

Única frase que tombou, criança,
Do róseo lábio teu,
Porque, depois – que súbita mudança,
Tornou-se escuro o céu…

E a lua, a pouco e pouco desmaiando,
Sumia-se no ar,
Como se um monstro a fosse devorando,
Na sombra… devagar…

À luz da lua sucedeu a treva,
Treva de horror sem fim,
Cor dos teus olhos, deliciosa Eva,
Meu pálido jasmim!

E ao ver-me só nas trevas, de repente,
Clamei por ti, clamei…
Interrogando a multidão, a gente,
Em vão! Não te encontrei!

Ah, bem dizem as lendas, os adágios,
E as bruxas de Sabbat,
Que os eclipses da lua são preságios,
Sinais de coisa má!

Por isso o Mal com sua garra adunca
Me separou de ti,
Pois que tu nunca mais me viste, nunca!
E eu nunca mais te vi…

E, hoje, nas trevas sepulcrais e calmas,
Eu vivo, por meu mal:
É que também se deu em nossas almas
O eclipse total!

António Nobre, Primeiros Versos e Cartas Inéditas,
Lisboa, Editoral Notícias, s/ data
__________

O astrónomo Luís Tirapicos analisou este poema, que António José Saraiva e Óscar Lopes consideram, na sua História da Literatura Portuguesa, ser de teor altamente autobiográfico, colocando-se a hipótese de António Nobre ter assistido mesmo a um eclipse, tal o realismo do fenómeno e das circunstâncias nele narrados.
Apesar de o poema vir antecedido de uma data, que se poderia supor a do fenómeno - 24 de Setembro de 1884 -, Luís Tirapicos, admitindo embora que o poeta tenha presenciado um qualquer eclipse da Lua, terá investigado nos Borda d'Água daquele ano e dos quatro precedentes (e os Borda d'Água «são elaborados com base em efemérides astronómicas») e concluiu que as circunstâncias descritas não correspondem a nenhum eclipse real.

Estranhamos, porém, a colocação daquela data a anteceder o poema, o que não acontece com mais nenhum da colectânea, e uma nota transcrita da 2.ª edição organizada por Júlio Brandão, em que este assevera: «Poesia impressionada por um eclipse, em 1884. Estava em Leça, então. Setembro, creio.»
Esta dúvida («Setembro, creio.») é sintomática: deverá ter havido um ligeiro desacerto na data.

Bastará pesquisar no Google, a partir dos elementos "eclipse da lua + 1884", para se concluir que houve, de facto, um eclipse da Lua, observado em várias partes do Mundo - no Brasil, no Canadá ou no Observatório da Universidade de Oxford -, dez dias depois: 4 de Outubro.
Sabe-se inclusivamente que a contemplação do fenómeno terá sio dificultada pelo obscurecimento causado pela erupção do Krakatoa, ocorrida em Agosto no ano anterior, e pelos 1 800 quilómetros cúbicos de cinzas que lançou na alta atmosfera.

O que pode
, eventualmente, duvidar-se é que o eclipse tenha sido duplo, tal como vem narrado. Ou seja, o eclipse da lua deve ter mesmo ocorrido e sido presenciado pelo poeta do ; o eclipse total da amada é que poderá ter sido romanceado...

Cf.:
- texto de Luís Tirapicos in:

http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/e47.html

- descrição do fenómeno pela Royal Astronomical Society of Canada in:
http://articles.adsabs.harvard.edu//full/1946JRASC..40..267S/0000267.000.html