quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Quartas Mal Ditas, dia 5 Janeiro 2011


Aí está a primeira sessão das Quartas Mal - Ditas no novo ano:
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"habitualmente prefiro as curvas"
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5 de Janeiro no Piano Bar do Clube Literário do Porto - Rua Nova da Alfândega
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22 horas
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Convidado especial:
JOÃO HABITUALMENTE
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Leituras por:
Amílcar Mendes
Ana Almeida Santos
Anthero Monteiro
António Pinheiro
Cláudia Pinho
Diana Devezas
Luís Beirão
Mário Vale Lima
Rafael Tormenta
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Música por:
Rui Paulino David
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Guião / Coordenação:
Anthero Monteiro
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Comparece, participa, divulga, por favor.
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BOM NOVO ANO POÉTICO PARA TODOS.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Um beijo enorme



foi um momento de prodígio
olhei-a nos olhos e ela entendeu
teria que dar-me nesse dia
o beijo prometido há muito

nem pestanejou
passou-me de imediato
todos os micróbios que trazia na boca

dizem os entendidos
que são quarenta e dois milhões.

Anthero Monteiro

domingo, 12 de dezembro de 2010

de azul vestida











Femme en bleu
avec guitarre
de
Tamara de
Lempicka



de azul vestida vem trazer-me assim
um retalho lindíssimo do céu
pra que eu saiba que nunca será meu
o céu – ah não o céu não é pra mim

vem ligeira e tão grácil como a lua
nessas sandálias que me lembram asas
para eu te ver flutuando sobre as casas
que o meu lugar é o chão da minha rua

vem desse teu sorriso revestida
natural como um sol nas gotas de água
pra que eu sinta mais fundo a minha mágoa
de não ter visto a terra prometida

vem assim jovial e tão segura
vem sobrenatural como uma deusa
que essa alegria adoce esta tristeza
e que essa graça amaine esta tortura

vem cheia de surpresas nos cabelos
feitos de anéis de vento e de gavinhas
faz-me esquecer que apenas foram minhas
as ondas de pavor dos pesadelos

vem não te importe a minha condição
e não olhes sequer pra onde vegeta
esta figura triste de poeta
que é dono de um inútil coração

tu que fizeste do meu norte sul
não desças mais aqui à minha beira
ergue os olhos e sobe sobranceira
de azul vestida para além do azul

Anthero Monteiro
inédito (01/09/2010)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Fuga










Fugir-te.
Mas não hoje - hoje não.
Tenho de preparar-me
para o galope branco da fuga

Não posso dizer-me: parto agora
e partir, pronto.
Pensando que ia, teria ficado todo para trás

Pouco posso contra o teu universo.
Não sou Bogart, não sou Brando
não lutaria por uma ideia política.
Pouco posso - talvez um verso.
Ontem ainda teria ido a tempo.
Oferecia-te a flor que me pedes desde o início
fingiria gostar de animais
e, claro, iríamos ao cinema.
Devia ter convivido mais com o teu Bogart, com o teu Brando.
Devias ter tido o cuidado de investigar a atitude dos príncipes
as certezas dos guerreiros
mas quando cheguei
já o teu universo estava repleto

E agora posso pouco - nem mesmo um verso
Hoje não. Mas quando puder
partirei no primeiro barco.
Procuro o sítio ínfimo
onde os melros se matam sozinhos.

João Habitualmente, in Animais Antigos

O fogo do sorriso











Foto in
conscienciaeusou.
blogspot.com







continua a sorrir
pode ser que desponte
também uma fogueira
nos meus lábios

mas fá-lo discretamente
não quero que te prendam
por incendiária

Anthero Monteiro
(inédito)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Álvaros de Campos tema da Onda Poética


A Onda Poética realiza-se, como sempre na segunda quinta-feira do mês. Em Dezembro, será, portanto, no dia 9, pelas 21.30 horas.
Serão lidos poemas de ÁLVARO DE CAMPOS pelos residentes da tertúlia e, eventualmente, outros no período destinado aos espontâneos.
A sessão terá lugar na sala das sessões da Junta de Freguesia de Espinho,na Rua 23.
Coordenação de Anthero Monteiro.
Interlúdios musicais pelo Grupo de Baladas NOSTALGIA.
Entrada livre.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Eu nunca guardei rebanhos...








In
guardian.co.uk




Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.


Alberto Caeiro

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Natal


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Foto; Noya Maria
Dias Florêncio


Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
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Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
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Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.
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Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.
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Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.
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Manuel Alegre

Felina


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Foto in
Blog Palavras e Imagens




Galgam os gatos, guturais, gritando,
Nas gotejantes, glácidas goteiras,
As julietas maltesas namorando,
Em mios sensuais pelas trapeiras.

Chora, chapinha, chuviscando a chuva!
No deserto beiral do meu telhado,
Uma cinzenta graziela viúva
Contempla o seu «miau» envenenado...

Há lamentosos, lutulentos lances,
Por sobre a telha de Marselha, oblonga...
Sonhos, idílios, infernais romances,
Cavaleiros de Malta e barba longa!

Dum, conheço uma história muito triste,
Dum que lembrava o D. João doutrora,
Sempre com o bigode e a cauda em riste...
Mas era longo referi-la agora.

Pelos sítios escusos dos telhados
Há gatas sem pudor fazendo vistas,
Traições, banzés, focinhos arranhados,
Baralhas de saloios e fadistas.

Ouvindo-se, entre insónias horrorosas,
Paroquiais, pesados pesadelos,
Guloso, gloso gloriosas glosas,
E faço caracóis com os cabelos!...

António Feijó, Poesias Completas,
Edições Caixotim, Porto, 2004

Chuva















Foto
Anthero Monteiro




Chove como sempre. E,
sempre que chove,
as pessoas abrigam-se
(as que não estavam à
espera que chovesse);
ou abrem, simplesmente,
o chapéu-de-chuva - de
preferência com fecho
automático. Porque, quando
chove, todos temos de
fazer alguma coisa: até
nós, que estamos dentro
de casa. Vão, uns, até
à janela, comentando:
“Que Inverno!”; sentam-se,
outros, com um papel
à frente: e escrevem
um poema, como este.

Nuno Júdice,
Um Canto na Espessura do Tempo, 1992

domingo, 28 de novembro de 2010

Eu canto a chuva, a terra, o verme


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Toda a chuva a cair me torna grata
por ela e pela que tem caído sobre mim
nos anos sem tacto, sem vista, sem olfacto.
Aqui, bebo-a misturada com os resíduos
que o vento traz do fundo do pomar,
gravetos, folhas e as flores perdidas.
O cheiro da flor de laranja perfumou
esta água, para a ablução dos pés
de um poeta que antes fora nómada.
Depois, porque não hei-de vestir-me com a túnica
da chuva, que me envolva como árvores
ou um corpo humano vivo e natural?
Dormir, onde esta lama doce e insonora
calidamente me vista e me sepulte?
Verme, que constróis o altar da chuva
com os teus pequenos montículos e covas
e sob o córtex da nogueira velha
escondeste a tua vida, como oferenda
que vai ser recolhida pelas mãos
de uma criança que ame os dons naturais;
verme, que sabes que eu outrora
já fui muda, não-gerada e ausente,
mostra-me o que mais sabes da chuva,
como és sinuoso nela, vivente,
e eu que devo fazer na pura terra
contigo, lado a lado, ó laborioso?
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Fiama Hasse Pais Brandão, Âmago,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2010

sábado, 27 de novembro de 2010

Dona Doida















Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

Adélia Prado

Escritora e poeta brasileira, nasceu em Divinópolis em 1935. Foi professora durante 24 anos e formou-se em Filosofia. O último livro que publicou intitula-se Coração do Dia (Record, 2010).

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Poeta Albano Martins nas Quartas Mal Ditas


No próximo dia 1 de dezembro, pelas 22 horas,
o poeta Albano Martins será o convidado especial das Quartas Mal Ditas do Clube Literário do Porto, no ano em que completa 80 anos de vida e 60 de actividade literária.
Serão lidos poemas da sua autoria por Amílcar Mendes, Ana Almeida Santos, Anthero Monteiro, António Pinheiro, Cláudia Pinho, Isabel Marcolino, Mário Vale Lima e Rafael Tormenta.
Voz e guitarra acústica de Carlos Andrade.
Coordenação de Anthero Monteiro.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Chove lá fora



Há um silêncio enevoado e triste
a saber a demora
sobre tudo o que existe.

Minha alma recolhe-se do frio
e une as mãos às mãos do sentimento.
Chove lá fora. Engrossa o rio
do meu pensamento.

O dia agora é um lençol molhado
estendido ao longo dos caminhos.

Eu sou este dia de março
a arrefecer o amor dos primeiros ninhos.

Albano Martins, Assim São As Algas,
Porto, Campo das Letras, 2000, 1.ª ed.
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Albano Martins, natural do Telhado, Fundão, e residente em Vila Nova de Gaia, fez em Agosto 80 anos e está a comemorar os 60 anos de vida literária. Por isso mesmo, será o convidado especial da próxima sessão das Quartas Mal Ditas, no Clube Literário do Porto, na quarta-feira, dia 1 de Dezembro 2010.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Cruzamentos



















Tenho saudades da chuva
do meu Largo da Carvalha. Uma chuva
cinzenta e mole que abria longos riachos no meu peito de ansiedade
Tenho saudades do vento
do meu Largo da Carvalha. Um vento
agreste e serrano que agitava os plátanos
fazendo estremecer as folhas amarelecidas
no meu quintal de ternuras.
Tenho saudades das noites
do meu Largo da Carvalha. Noites passadas á mingua
de um abraço amigo e forte
noites de antigas vizinhas que me diziam
menina toma cuidado com os outros porque
tu és diferente e eles não gostam dos diferentes
histórias de lobisomem
cantigas do São João
rezas no adro da Sé.
Tenho saudades dos dias do outro lado do mar
dias de areia e de espuma a salpicarem-me o rosto
dias de barco sem cais nos escaleres da vida
dias de longe e de perto
a cruzarem o meu destino mestiço
entre as tílias do Rossio
e a ilha do chocolate.

Olinda Beja

Olinda Beja nasceu em Guadalupe - São Tomé e Príncipe, a 12 de Fevereiro de 1946. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade do Porto, sendo actualmente professora do ensino secundário. A sua obra tem incidido principalmente sobre temas africanos, com títulos como Bô Tendê (poesia), Leve, Leve (poesia), Quinze Dias de Regresso (romance), No país do Tchiloli (poesia) e Pingos de Chuva (ficção) em que a presença da sua Mãe África é profunda e plena de sentir...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Chove









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Foto: A. M.



A chuva cai.
Os telhados estão molhados,
Os pingos escorrem pelas vidraças.
O céu está branco,
O tempo está novo.
A cidade lavada.
A tarde entardece,
Sem o ciciar das cigarras,
Sem o jubilar dos pássaros,
Sem o sol, sem o céu.
Chove.
A chuva chove molhada,
No teto dos guarda-chuvas.
Chove.
A chuva chove ligeira,
Nos nossos olhos e molha.
O vento venta ventado,
Nos vidros que se embalançam,
Nas plantas que se desdobram.
Chove nas praias desertas,
Chove no mar que está cinza,
Chove no asfalto negro,
Chove nos corações.
Chove em cada alma,
Em cada refúgio chove;
E quando me olhaste em mim,
Com os olhos que me seguiam,
Enquanto a chuva caía
No meu coração chovia
A chuva do teu olhar.

Ana Cristina César,
Inéditos e Dispersos

Chuva na Hauptstrasse










Hotel Schöneberg







Enrodilhados neste disforme
edredão de penas, sofre-se o conceito
germânico de leito, ouvindo chegar
um Junho humedecido, no Balcon envidraçado
do quarto do Hotel Schöneberg. Desistimos
da visita à sepultura de Marlene, num
pequeno cemitério aqui próximo, que dizem
bastante arborizado e apetecivelmente
deserto. E ficámos a olhar
a mulher turca de cabeça velada, com
a filhita pela mão, vestida em tons
berrantes. No passeio em frente,
os grandes contentores da Rotes Kreuz,
para donativos de roupas usadas,
atestam a organizada caridade
do povo alemão. Até a chuva
parece aderir organizadamente a todas
as formas estáticas ou animadas, com
o seu antigo manto.

Berlim, 96

Inês Lourenço, Um Quarto com Cidades ao Fundo,
V. N. Famalicão, Quasi Edições, 2000

Inês Lourenço acaba de editar mais um belo livro de poemas com um sugestivo título: Coisas Que Nunca, da &etc.

Como uma flor sob a chuva




















cortei a unha do dedo
médio
da mão direita
bem curta
e comecei a esfregar-lhe a racha
enquanto ela sentada na cama
ia pondo creme nos braços
na cara
e nos seios
depois de tomar banho.
então acendeu um cigarro
«continua»,
e foi fumando e foi-se untando
com creme.
continuei a esfregar-lhe a racha.
«queres uma maçã?» perguntei-lhe.
«bom», disse, «tu vais comer uma?»
mas foi a ela que eu comi…
começou a rodar,
depois colocou-se de lado,
ia ficando cada vez mais húmida e abrindo- se
como uma flor sob a chuva.
depois virou-se de boca para baixo
e o seu formosíssimo cu
levantou-se para mim
e eu meti a mão por baixo
até alcançar de novo a racha.
esticou um braço e apanhou-me
a gaita, rodou e virou-se,
montei em cima
fundia-se a cara na mata
de cabelo vermelho
derramada em redor da sua cabeça
e a minha gaita tesa entrou
no milagre.
mais tarde brincamos acerca do creme
e do cigarro e da maçã.
depois fui à rua e comprei frango
e gambas e batatas fritas e bolinhos
e puré e molho
e salada de couve, e comemos, ela disse-me
como lhe soube bem e eu disse-lhe
como me soube bem e comemos
o frango e as gambas e as
batatas fritas e os bolinhos
e o puré e o molho
e até a salada de couve.

Charles Bukowski, 20 poemas
(tradução de Anthero Monteiro)

Chuva oblíqua (II)




















II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...

Fernando Pessoa
(excerto de “Chuva Oblíqua”, in Orpheu n.º 1, 1915)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Il pleure dans mon coeur...



Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville ;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur ?

Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits !
Pour un coeur qui s'ennuie,
Ô le chant de la pluie !

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi ! nulle trahison ?...
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine !


Paul Verlaine

Trapo



O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: O sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.


Álvaro de Campos

Arco-íris



Choveu tanto esta tarde
que as árvores estão pingando de contentes.
As crianças pobres, em grande alarde,
molham os pés nas poças reluzentes.

A alegria da luz ainda não veio toda
mas há raios de sol brincando nos rosais.
As crianças cantam fazendo roda
Fazendo roda como os tangarás:

- “Chuva com sol!
Casa a raposa com o rouxinol.»
De repente, no céu, desfraldado em bandeira,

Quase ao alcance da nossa mão
O arco-da-velha abre na tarde brasileira
A cauda policroma de pavão.

Olegário Mariano,
Canto da Minha Terra, 1930

Cai chuva do céu cinzento



Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Jogos de água



1
Corpo meu que no Mar de repente retomas
ao rebentar da onda a posição do feto
Surpreende a matriz de onde partem as ordens

Mas não perguntes mais Porque tudo é incerto

2
A sôfrega aventura A ligação mais firme
A flor de uma só noite A que se crê eterna
Não há forma de amor em que a água não vibre

Ou saliva Ou suor Ou lágrimas Ou esperma

3
Entranham-se na terra os arames da chuva
para apertar melhor as tábuas dos caixões
Ou para transmitir notícias de uma nuvem

Sem saberem que a morte as oculta depois

David Mourão-Ferreira,
Do Tempo ao Coração

Sobre flancos e barcos



Havia ainda outro jardim o da minha vida
exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães de pé
é sempre a mesma inquietação

este delírio branco ou o rumor
da chuva sobre flancos e barcos
o inverno vai chegar
sobre a palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem

era o sopro distante das manhãs sobre o mar
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar

Eugénio de Andrade, Vésperade Água

Neurastenia



Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Marias!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...

O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...

Chuva... tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento... tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!

Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!...

Florbela Espanca

Chuva



A chuva fina molha a paisagem lá fora.
O dia está cinzento e longo... Um longo dia!
Tem-se a vaga impressão de que o dia demora...
E a chuva fina continua, fina e fria,
Continua a cair pela tarde, lá fora.

Da saleta fechada em que estamos os dois,
Vê-se, pela vidraça, a paisagem cinzenta:
A chuva fina continua, fina e lenta...
E nós dois em silêncio, um silêncio que aumenta
se um de nós vai falar e recua depois.

Dentro de nós existe uma tarde mais fria...
Ah! Para quê falar? Como é suave, brando,
O tormento de adivinhar — quem o faria? —
As palavras que estão dentro de nós chorando...

Somos como os rosais que, sob a chuva fria,
Estão lá fora no jardim se desfolhando.

Chove dentro de nós... Chove melancolia...

Ribeiro Couto

Foi poeta, contista, romancista, jornalista, diplomata e membro da Academia Brasileira. N. em Santos, no Brasil, em 1898 e f. em Paris em 1963.

Barbara / Bárbara




Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-la
Et tu marchais souriante
Epanouie ravie ruisselante
Sous la pluie
Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest
Et je t'ai croisee rue de Siam
Tu souriais
Et moi je souriais de meme
Rappelle-toi Barbara
Toi que je ne connaissais pas
Toi qui ne me connaissais pas
Rappelle-toi
Rappelle-toi quand meme ce jour-la
N'oublie pas
Un homme sous un porche s'abritait
Et il a crie ton nom
Barbara
Et tu as couru vers lui sous la pluie
Ruisselante ravie epanouie
Et tu t'es jetee dans ses bras
Rappelle-toi cela Barbara
Et ne m'en veux pas si je te tutoie
Je dis tu a tous ceux que j'aime
Meme si je ne les ai vus qu'une seule fois
Je dis tu a tous ceux qui s'aiment
Meme si je ne les connais pas
Rappelle-toi Barbara
N'oublie pas
Cette pluie sage et heureuse
Sur ton visage heureux
Sur cette ville heureuse
Cette pluie sur la mer
Sur l'arsenal
Sur le bateau d'Ouessant
Oh Barbara
Quelle connerie la guerre
Qu'es-tu devenue maintenant
Sous cette pluie de fer
De feu d'acier de sang
Et celui qui te serrait dans ses bras
Amoureusement
Est-il mort disparu ou bien encore vivant
Oh Barbara
Il pleut sans cesse sur Brest
Comme il pleuvait avant
Mais ce n'est plus pareil et tout est abime
C'est une pluie de deuil terrible et desolee
Ce n'est meme plus l'orage
De fer d'acier de sang
Tout simplement des nuages
Qui crevent comme des chiens
Des chiens qui disparaissent
Au fil de l'eau sur Brest
Et vont pourrir au loin
Au loin tres loin de Brest
Dont il ne reste rien.

Jacques Prévert

Remember Barbara
It rained all day on Brest that day
And you walked smiling
Flushed enraptured streaming-wet
In the rain
Remember Barbara
It rained all day on Brest that day
And I ran into you in Siam Street
You were smiling
And I smiled too
Remember Barbara
You whom I didn't know
You who didn't know me
Remember
Remember that day still
Don't forget
A man was taking cover on a porch
And he cried your name
Barbara
And you ran to him in the rain
Streaming-wet enraptured flushed
And you threw yourself in his arms
Remember that Barbara
And don't be mad if I speak familiarly
I speak familiarly to everyone I love
Even if I've seen them only once
I speak familiarly to all who are in love
Even if I don't know them
Remember Barbara
Don't forget
That good and happy rain
On your happy face
On that happy town
That rain upon the sea
Upon the arsenal
Upon the Ushant boat
Oh Barbara
What shitstupidity the war
Now what's become of you
Under this iron rain
Of fire and steel and blood
And he who held you in his arms
Amorously
Is he dead and gone or still so much alive
Oh Barbara
It's rained all day on Brest today
As it was raining before
But it isn't the same anymore
And everything is wrecked
It's a rain of mourning terrible and desolate
Nor is it still a storm
Of iron and steel and blood
But simply clouds
That die like dogs
Dogs that disappear
In the downpour drowning Brest
And float away to rot
A long way off
A long long way from Brest
Of which there's nothing left.


Tradução para inglês por Lawrence Ferlinghetti


Lembra-te Bárbara
Chovia em Brest
sem cessar naquele dia
Caminhavas à chuva
sorridente
radiosa encantadora deslumbrante
Lembra-te Bárbara
chovia em Brest
sem cessar
e eu passei por ti
na Rua do Sião.
Sorrias
e eu sorria
Lembra-te Bárbara
tu a quem não conhecia
tu que não me conhecias
Lembra-te
Lembra-te mesmo assim
daquele dia
Não te esqueças
Sob um pórtico
abrigava-se um homem
que gritou o teu nome
Bárbara
Correste para ele
à chuva
deslumbrante encantadora
radiosa
lançaste-te nos seus braços
Lembra-te Bárbara
E não me queiras mal
se te trato por tu
trato assim todos os que amo
mesmo se os vi só uma vez
trato assim todos os que se amam
mesmo até se os não conheço
Lembra-te Bárbara
Não te esqueças
essa chuva sábia e feliz
nesse teu rosto feliz
nessa cidade feliz
essa chuva sobre o mar
sobre o arsenal
sobre o barco para Ouessant
Ó Bárbara
que estupidez é a guerra
o que é feito de ti
agora
sob esta chuva de ferro
de fogo de aço de sangue
e daquele que te apertava nos braços
amorosamente
Morreu desapareceu
está vivo ainda
Ó Bárbara
Chove em Brest sem cessar
como chovia então
mas já nada é o mesmo
e tudo se estragou
É uma chuva de luto
de terrível desalento
Já não é sequer
o temporal
de ferro de aço de sangue
não passa agora de nuvens
que rebentam como cães
os cães que desaparecem
nessas torrentes de Brest
e apodrecerão lá longe
longe bem longe de Brest
onde já não resta nada.


Tradução para português por Anthero Monteiro

_______


Brest era um importante porto da Bretanha (França) que foi bombardeado pelos Aliados para neutralizar as defesas alemãs e possibilitar o desembarque nas praias francesas em Junho de 1944.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A chuva chove



A chuva chove mansamente... como um sono
Que tranquilize, pacifique, resserene...
A chuva chove mansamente... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine...
E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono...
Véspera triste como a noite, que envenene.

... Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha...
Paço de imensos corredores espectrais,
Onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas,
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais...

Cecília Meireles

Cai chuva. É noite



Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,
Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
Este luzir é melhor. O que é a vida?
O espaço é alguém pra mim.
Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
E, sem querer, tem dó.
Extensa, leve, inútil passageira,
Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
A minha vida jaz.
Barco indelével pelo espaço da alma,
Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
Final do inútil bem. Que, se quer, e, se veio, se desconhece
Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
Na noite agora fria

Fernando Pessoa

Desolação










A casa está vazia.
Ao cimo da escada apareces às vezes com as
cores do inverno,
e és um vulto,
o sétimo selo sobre a minha palidez.
Não falas, não te moves,
e no entanto a minha vida estremece,
assaltada pelas tuas máquinas profundas.
O pranto cresce nos campos ao abandono.
Os meus dedos fecham os olhos dos
guerreiros mortos.
Chove, chove sempre que os encontro nos
desfiladeiros do norte,
hirtos,
entregues à sua sorte,
como este lugar desabitado cujas lâmpadas
se apagaram,
esta casa vazia onde te deitas para sempre,
já tão longe das hortênsias.

José Agostinho Baptista,
Agora e na Hora da Nossa Morte

Estavas sentado...

-







Foto: A.M.





Estavas sentado e havia uma paisagem agreste
nos teus olhos: as nuvens a prometerem chuva,
os espinheiros agitados com a erosão das dunas,
um mar picado, capaz de todos os naufrágios.

O teu silêncio fez estremecer subitamente a casa —
era a força do vento contra o corpo do navio; uma
miragem fatal da tempestade; e o medo da tragédia;
a ameaça surda de um trovão que resgatasse a ira
dos deuses com o mundo. Quando te levantaste,

disseste qualquer coisa muito breve que me feriu
de morte como a lâmina de um punhal acabado
de comprar. (Se trovejasse, podia ser um raio
a fracturar a falésia no espelho dos meus olhos.)
Hoje, porém, já não sei que palavras foram essas —
de um temporal assim recordam-se sobretudo os despojos
que as ondas espalham de madrugada pelas praias.

Maria do Rosário Pedreira,
O Canto do Vento nos Ciprestes

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O inverno

DEUS está no seu palácio de cristal. Quero dizer que chove, Platero. Chove. E as últimas flores, que o Outono deixou teimosamente presas nos ramos exangues, carregam-se de diamantes. Em cada diamante, um céu, um palácio de cristal, um Deus. Olha esta rosa; tem dentro outra rosa de água; e ao sacudi-la, vês?, cai-lhe a nova flor brilhante, como alma sua, e ela fica murcha e triste, como a minha.
A água deve ser tão alegre como o sol. Se não, olha como correm felizes, sob ela, as crianças, fortes e coradas, com as pernas nuas. Vê como os pardais entram, num alvoroçado bando súbito, na hera — na escola, como diz Darbón, teu médico.
Chove. Hoje não vamos para o campo. É dia de contemplações. Olhem como escorrem as goteiras do telhado. Olha como se lavam as folhas verdes, como o barquito das crianças, ontem parado entre a erva, voltou a navegar na valeta. Olha agora, neste sol instantâneo e débil, como é belo o arco-íris que sai da igreja e morre, num vago vislumbre, a nosso lado!

Juan Ramón Jiménez,
Platero e Eu

Poeta espanhol, n. em 1881, f. em 1958.
Prémio Nobel (1956)

Poema das nuvens fofas











Foto: A.M.



Nos píncaros do Olimpo as nuvens pairam
como clara batida, fofa e crespa.
O Olimpo é um monte, e as nuvens, água
que as baixas temperaturas condensaram
em estrelados cristais.
Ali, atrás das nuvens, se instalaram
os deuses, em seus tronos marchetados
(pois se os grandes da Terra tinham tronos
corn mais razão os deuses os teriam).
Ali, atrás das nuvens, planearam o meu futuro,
sem saberem que as nuvens eram água.

Eram, de facto, água,
e como água caíram sobre a Terra.
Primeiro em fios breves, voluptuosos
como chuveiro tépido nas pálpebras;
depois em fios grossos,
em baraços, em cordas, em colunas,
cataratas do céu que o proprio céu ruíram
em bátegas cerradas.
Na precipitação das catadupas de água
envolveram-se os deuses na enxurrada,
deuses e tronos,
e corn eles também o meu futuro.

António Gedeão, Poemas Póstumos

Chove...



Chove...

Mas isso que importa,!
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir na chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


José Gomes Ferreira,
Poeta Militante, 1.º Vol.

A chuva recomeçou. Lembrei-me, assim, de prosseguir o tema já iniciado neste blogue: CHOVE... Num país com uma razoável pluviosidade, não faltarão decerto bons poemas. Creio que a nosssa literatura é nesse assunto bastante copiosa. E trata-se afinal de um tema a que não consigo furtar-me. Chova, por isso, poesia.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Alberto Caeiro na Onda Poética


ONDA POÉTICA
-
Quinta-feira,
11/11, 21.30 h,
Junta de Freguesia
de Espinho, Rua 23.
-
Tema:
POEMAS DE
ALBERTO CAEIRO
-
...e um cheirinho de
S. Martinho.
-
Entrada livre.
Convívio poético-musical.
Interlúdios musicais pelo
GRUPO DE BALADAS
NOSTALGIA

terça-feira, 2 de novembro de 2010

o anjinho cupido









imagem in
www.lendo.org








estávamos a grelhar o anjinho cupido e o
anjinho cupido grelhado é como um
franguinho encolhido sem muita diferença
resolvemos comer o amor porque a
fome era tanta e o amor um desperdício

as flechinhas, com as quais o
anjinho cupido se preocupava tanto, serviram
para fazer o lume, arderam bem e
com facilidade. íamos meter as
flechinhas no cu para as mandar às
urtigas e vingarmo-nos de algum modo, mas
o lume era essencial e a fome grande e
o anjinho cupido tão tenrinho, nós
queríamos mesmo era comer

de barriga cheia sentimos o coração
mirrar, mas nada que não pudéssemos
esperar. foi até engraçado estarmos de
papo para o ar, o sol quentinho, uma brisa
fresca a vir do norte, um sossego dos
bons, e sentir no peito um ratinho a emagrecer
como se tivesse feito exercício e ganho
juízo. comer o amor dá saúde, pensámos, e
a vida de ali em diante tem sido só
graça

a mim, a barriga do cupido soube-me
bem e curou-me a tristeza
a mim, os braços do cupido souberam-me
bem e curaram-me a tristeza
a mim, o rabinho do cupido soube-me
bem e curou-me a tristeza
curado da tristeza, compreendo agora, tudo
me sabe bem

valter hugo mãe,
(inédito)

valter hugo mãe nas Quartas Mal-Ditas


Próxima quarta, dia 3/11, as Quartas Mal-Ditas contarão com a presença do poeta e romancista valter hugo mãe.
-
Serão lidos poemas de várias das suas obras pelos "dizedores" residentes:
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Amílcar Mendes
Ana Almeida Santos
Anthero Monteiro
António Pinheiro
Cláudia Pinho
Diana Devezas
Isabel Marcolino
Luís Beirão
Mário Vale Lima
Rafael Tormenta
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Contaremos ainda com a participação especial dos diseurs e poetas, Isaque Ferreira e João Rios, e do músico José Peixoto.
-
Coordenação de Anthero Monteiro.
-
Quartas Mal-Ditas
Poesia
Música
Conversas

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A puta ao balcão (in memoriam de Carlos Pinto)










Foto do álbum do
Púcaros Bar
(facebook)







naquele bar à hora dos poemas
ela sentava-se ao balcão num banco alto
eu não a via mas via os seus estratagemas
e sentia no ar um estranho sobressalto

era sempre à quarta-feira aquele assédio
a puta fixava o olhar no outro lado do balcão
que bem se adivinhava naquela feição
da vítima de olhos presos e sem remédio

devia morrer-se de outra maneira
era um poema que nos ouvia ler a malvada
mas o silêncio era ferido por uma funesta gargalhada
e era ela a rir-se de nós e do josé gomes ferreira

e ela continuava naqueles modos a seduzi-lo
servia-se sem pagar dos tremoços e da sangria
batia também palmas no fim de cada poesia
e lançava o seu hálito de fumo a tudo aquilo

e ele o carlos mal saía do balcão
continuava preso àquele olhar satânico
dizia umas lérias pra afugentar o pânico
mas sentia-lhe as garras aduncas no pulmão

bem queria mandá-la pró raio que a parta
mas aquele olhar aquele bafo aqueles gadanhos
aquela presença invisível tinha poderes tamanhos
que ele só sabia respirá-la a cada quarta

até que no meio dos versos debaixo das arcadas
à meia-noite da última quarta-feira
ele sentiu que aquela quarta era mesmo a derradeira
e a puta confirmou-o com quatro gargalhadas

decidira a rameira aquela galdéria sem um pingo
de vergonha na cara que não tinha aquele ser suspeito
que o seu bafo letal produziria lentamente efeito
um mortífero efeito no imediato domingo

deixou-lhe em cima do balcão um passaporte
que não permite escusa nem permuta
e saiu impante e irresistível essa puta
cujo nome já sabem que é morte

dos versos a marafona agora não se importa
e o carlos seduzido por aquela miragem
no domingo partiu para a indeclinável viagem
e agora quem aos poemas e a nós abrirá a porta?

Anthero Monteiro,

1 de Novembro 2010

domingo, 24 de outubro de 2010

Prece ateia













Foto de
Anthero Monteiro
por Anaas



dos arremedos do amor
livrai-me senhor

não dos teus olhos vívidos libertos
modelares no espelho destes meus
que eu troco pelos olhos que há nos céus
e luzem na amplidão dos meus desertos

da rotina do amor
livrai-me senhor

não dessa boca túmida faminta
não do veneno bom da tua língua
que engana a minha sede a minha míngua
que a mim só ama quem sempre me minta

das verdades do amor
livrai-me senhor

não dessa voz que tanto me maltrata
como a voz das sirenes fez a ulisses
como se a minha rouquidão punisses
com argêntea e suavíssima chibata

das delícias do amor
livrai-me senhor

não dessa fronte limpa que deslumbra
e beijo grato até por existires
não dessa aura não desse arco-íris
do qual desfruto ao menos a penumbra

dos acenos do amor
livrai-me senhor

mas não das tuas mãos frescas purinhas
que me estrangulam saborosamente
que estraçalham meu coração doente
só com o gesto de tocar as minhas

dessa palavra amor
livrai-me senhor

porque de amor de amor eu não preciso enfim
nem dos seus desencantos que hão de vir
do que eu preciso mesmo é de sentir
agora que te tenho ao pé de mim

Anthero Monteiro (inédito)

Espinho, 9 setembro 1998

Deficiência













os pais inconsoláveis
a família inundada de mágoa
o recém-nascido alvo do espanto dos vizinhos
que vêm espreitar o fenómeno

o parto decorreu sem problemas
mas a criança saiu afinal
com defeito de fabrico

cabeça dotada de um sorriso inteligente
tronco escorreito
articulações eficientes

apenas os dedos
os pobres dedos das mãos
não trazem consigo
o habitual
tele-
móvel

Anthero Monteiro (inédito)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A janela



-






Foto in
http://www.faraonepvc.com/


Todos os dias na rua
defronte de uma janela.
Que barbaridade a tua,
porque não chegas a ela?
-

O quente sol no horizonte
com todo o peso d'agosto
e eu na rua e eu defronte
da tua janela posto.
-

Dezembro, o mês inclemente,
o sangue nas veias gela,
e eu na rua e eu em frente,
em frente dessa janela.
-

Sempre esta ideia constante!
Ah! meu Deus! Se hoje a visse...
Se ao menos um só instante
a janela hoje se abrisse...
-

E nunca se abre, Senhor!
Abrem-se os lábios num riso;
o botão abre-se em flor;
abre-se o teu paraíso;
-

abre o seu cálice a rosa;
Abre-se o mar tão profundo:
só tu, janela teimosa,
nunca te abriste um segundo.
-

Pois fica sempre fechada
como a noite mais escura,
como a alma condenada,
como negra sepultura.
-

Mas o que estou a dizer?
Meu Deus, meu Deus, o que disse!
Ai, que infinito prazer
se a janela hoje se abrisse!
-

Guilherme Braga,
in Correio da Feira, 22/o1/1919

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Dia da Mãe


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Gustav Klimt,
Mother and Child


-
-
mãe.
por dentro da mãe o filho habita o mundo, por fora
um sorriso alto, caminhos de sangue.
e eu penso que o nada pode ser outra coisa.
esse azul coagulado no trono de uma reticência etérea,
que se debruça por onde o leite da linguagem
enche um copo. pelas aves envio
o silêncio em pedra. onde os lugares ardem
no seu movimento impossível. construo
a morte que espreita pela própria agonia
e flores, as doces flores que se abrem
até ao centro da estufa do seu umbigo.
seu sonho delicado em círculo, mãe,
consagrando a fala lírica que se funde
em sílabas novas. sem direcções impressas.
e eu penso que o nada pode ser outra coisa.
e eu dei-te nadas no espírito de outra coisa.

Sylvia Beirute
in Uma Casa em Beirute

http://networkedblogs.com/9fOav

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A evocação do chimpanzé



comprei um bilhete e um cartucho de amendoins e
entrei no cinema. tu compraste um bilhete e um
cartucho de amendoins e entraste no cinema, sen
támo-nos na mesma fila, lado a lado. eu abri o meu
cartucho de amendoins, tu abriste o teu cartucho
de amendoins, com um ruído exactamente igual ao
meu. voltei-me para ti e mostrei os dentes. tu
voltaste-te para mim e mostraste os dentes. quan
do a luz apagou, tu pousaste o teu cartucho de a
mendoins no colo e eu pousei o meu cartucho de
amendoins no colo. com a mão direita comecei a le
vantar-te a saia. para me facilitar a tarefa, tu
levantaste levemente as nádegas do assento. com
esse gesto, caiu-te do colo o cartucho de amendo
ins. assim que os amendoins acabaram de se espal
har no chão, abaixei-me para tos apanhar, mas es
queci-me do meu cartucho de amendoins, o qual me
caiu igualmente ao chão. gastei um tempo enorme
a procurar e a recolher todos os amendoins. lembro
me de que passei o tempo quase todo até ao inter
valo recolhendo amendoins. todo o tempo tu
não deixaste de suspirar e de gemer, embora esti
vesse apenas a decorrer um documentário sobre
o narciso e nenhum drama comovente. a voz do lo
cutor lembro-me que dizia: «no começo da primave
ra, quando montes e vales acordam do longo sono
de inverno, centenas e centenas de narcisos ele
vam as douradas cabeças em todas as frestas e a
brigos do solo, e lançam seu olhar inocente pelos
portentosos rochedos e pelas raízes nodosas da
floresta.» isto, como certamente te lembras, foi
antes do intervalo. depois, quantas vezes, oh quan
tas vezes não deixaste cair e eu não deixei cair
os amendoins que nos restavam. e ora eu, ora tu,
de cada vez descíamos a procurá-los, e a colhê-los
com suaves, ternos guinchos. o filme, no dizer da
crítica, era daqueles que se não podem perder.

Alberto Pimenta