terça-feira, 30 de junho de 2009

Uma forma de me despedir







Aegina, Grécia
Setembro 2008
Foto A.M.






Há o mar há a mulher
quer um quer o outro me chegam em acessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta
e um prazer em o dizer
um gosto afinal em gostar
Enfim o mar a mulher
pode num dos casos ser a/mar a mulher
mera forma talvez de uniformizar o artigo
definido do singular
Há ondas no mar
o mar rebenta em ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher
que ela faz ondular melhor de tarde em tarde
no mês de setembro nas marés vivas
O melhor da mulher talvez o olhar
é para mim o mar da mulher
e à mulher que um só dia encontro na vida
de passagem um simples momento num sítio qualquer
talvez a muitos quilómetros do mar
mas mulher que não mais consigo esquecer
mesmo imerso na dor ou submerso em cuidados
a essa mulher qualquer
eu chamo mulher do mar
Nos fins de setembro quando eu partir
de uma cidade seja ela qual for
quando eu pressentir que alguém morre
que alguma coisa fica para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou numa água
num pouco de água ou em muita água
onda do mar lágrima ou brilho do olhar
eu recear seriamente vir-me a submergir
direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir

Ruy Belo, «Toda a Terra» in Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1999
_____________________

Esta é também a minha forma de me despedir do mês de Junho e do tema MARESIA / POESIA.
Despedida só a fingir, porque é impossível despedir-me do Mar (não há dia que não vá vê-lo...) e é impossível despedir-me da Poesia (que também visito quotidianamente).

Até ao próximo mês!
Até ao próximo tema!
ATÉ SEMPRE!

Mar Português








Foto A.M.






Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, Poesia do Eu,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006

Em Hydra, evocando Fernando Pessoa





Em Hydra,
Setembro 2008,
Foto A.M.








Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra
(E foi pelo som do cabo a descer que eu soube que ancorava)
Saí da cabine e debrucei-me ávida
Sobre o rosto do real - mais preciso e mais novo do que o imaginado

Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto
Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto de uma ilha grega
Murmurei o teu nome
O teu ambíguo nome

Invoquei a tua sombra transparente e solene
Como esguia mastreação de veleiro
E acreditei firmemente que tu vias a manhã
Porque a tua alma foi visual até aos ossos
Impessoal até aos ossos
Segundo a lei de máscara do teu nome

Odysseus - Persona

Pois de ilha em ilha todo te percorreste
Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa
Até as rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias

O casario de Hydra vê-se nas águas
A tua ausência emerge de repente a meu lado no deck deste barco
E vem comigo pelas ruas onde procuro alguém

Imagino que viajasses neste barco
Alheio ao rumor secundário dos turistas
Atento a rápida alegria dos golfinhos
Por entre o desdobrado azul dos arquipélagos
Estendido à popa sob o voo incrível
Das gaivotas de que o sol espalha impetuosas pétalas

Nas ruínas de Epheso na avenida que desce até onde esteve o mar
Ele estava à esquerda entre colunas imperiais quebradas
Disse-me que tinha conhecido todos os deuses
E que tinha corrido as sete partidas
O seu rosto era belo e gasto como o rosto de uma estátua roída pelo mar

Odysseus

Mesmo que me prometas a imortalidade voltarei para casa
Onde estão as coisas que plantei e fiz crescer
Onde estão as paredes que pintei de branco

Há na manhã de Hydra uma claridade que é tua
Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua
Há nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que é olhado por um deus
Aquilo que o olhar de um deus tornou impetuosamente presente -

Na manhã de Hydra
No café da praça em frente ao cais vi sobre as mesas
Uma disponibilidade transparente e nua
Que te pertence

O teu destino deveria ter passado neste porto
Onde tudo se torna impessoal e livre
Onde tudo é divino como convém ao real

Hydra, Julho de 1970

Sophia de Mello Breyner Andersen, «Dual» in Obra Poética III, Lisboa, Caminho, 1999, 4.ª ed.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Romance de Vila do Conde













Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Já me ponho a suspirar.

Vento Norte, ai vento norte,
Ventinho da beira-mar,
Vento de Vila do Conde,
Que é a minha terra natal!,
Nenhum remédio me vale
Se me não vens cá buscar,
Vento norte, ai vento norte,
Que em sonhos sinto assoprar...

Bom cheirinho dos pinheiros,
A que não sei outro igual,
Do pinheiral de Mindelo,
Que é um belo pinheiral
Que em Azurara começa
E ao Porto vai acabar...,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale
Nenhum remédio me vale,
Se te não posso cheirar...

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Mais nada posso lembrar.

Bom cheirinho dos pinheiros...,
Sei de um que quase te vale:
É o cheiro da maresia,
- Sargaços, névoas e sal -
A que cheira toda a vila
Nas manhãs de temporal.
Ai mar de Vila do Conde,
Ai mar dos mares, meu mar!,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum remédio me vale,
Nem chega a remediar…

Abria, de manhãzinha,
As vidraças par em par.
Entrava o mar no meu quarto
Só pelo cheiro do ar.
Ia à praia, e via a espuma
Rolando pelo areal,
Espuma verde e amarela
Da noite de temporal!
Empurrada pelo vento,
Que em sonhos ouço ventar,
Ia à praia e via a espuma
Pelo areal a rolar...

Espuma verde e amarela
Das noites de temmporal,
Quem te viu como eu te via,
Se te pudera olvidar!
E ai não me posso curar,
Nenhum remédio me vale,
Se te não tenho nos braços,
Se te não posso beijar…

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Passo a tarde a divagar…

Até Senhora da Guia
Me deixava ir devagar,
Até Senhora da Guia,
Que entra já dentro do mar,
Como uma pomba que as ondas
Receassem de levar;
Talvez como uma gaivota
Colhida num vendaval…
Ou rosa branca, trazida
Quem sabe de que lugar,
Que embaraçando nas pedras,
Ficasse ali, sem murchar,
O pé metido no rio,
A flor já n’água do mar.

Lá de cima do seu monte,
Sobre o fundo do pinhal,
Senhora Sant’Ana, ao longe,
Parece um lenço a acenar.
Convento de Santa Clara,
Que vulto fazes no ar,
Que aos marinheiros no mar
Deitas o «pelo sinal»!
E o sol desmaia na cal
Da capela a branquejar
Da Senhora do Socorro,
Onde sonhei me ir casar…

Da banda de lá do rio,
As gaivotas a voar
Sobre Azurara se esfolham
Como um grande roseiral!

Lembranças da minha terra,
Da minha terra natal,
Nenhum remédio me vale
Se me não vindes buscar!
Nenhum me pode salvar,
Morro em pecado mortal…

Vila do Conde, espraiada
entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Sinto os olhos a turvar…

Ia até Poça da Barca,
Meu muito amado local,
(E quem diz Poça da Barca
Diz Caxinas, sua igual)
E parava a olhar de longe,
Estátuas de bronze a andar,
As belas gentes do mar…
Parava a olhar o estendal
Das águas a rebrilhar,
E o arco-íris das cores,
Cada qual mais singular,
Que à tarde, pelos céus fora,
Se entornavam devagar…

Caía a noite, e eu, parado,
Via, subindo no ar,
A Lua juncar as ondas
De espadanas de luar…

Duma vez, estava eu triste,
Senti que o Anjo do Mal
Vinha para me tentar!
Caio de bruços na areia,
Ponho as mãos, e, sem rezar,
Aguardo que Deus me valha,
Me não deixe desgraçar…
Foi então que ouvi, distinta,
Distinta!, posso-o jurar,
Posto vagarosa, grave
Do seu repouso eternal,
A voz de Ana, que partira
Lá para melhor Lugar,
Do fundo do seu coval
Cantar-me o velho cantar:
«…Tomou-o um Anjo nos braços,
Não no deixou afogar»…

Nenhum remédio me vale,
Ou sou eu que não sei qual,
Se me não levam depressa
A ver o extenso areal
Onde se davam mistérios,
Que eu sabia decifrar…

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Não me posso conformar…

Aquela funda toada,
Por toda a vila a toar,
Nas negras noites de inverno
Me vinha à cama acordar.
Vinha do cabo do mundo…?
Vinha do fundo do mar…?
Vinha do céu, ou do inferno?
Vinha de nenhum lugar…?

De olhos abertos no escuro
Me estarrecia a escutar…
E o meu gosto de a sondar
Que bem me fazia, ou mal!

Pela doçura outonal
Das tardinhas de Setembro,
Vai e vem, que bem me lembro!,
Como sabia embalar!
Vinha de longe, de longe,
Soturna e familiar,
Cada vez mais se achegando
Para se logo afastar…
Mas que viria dizer-me,
Que me diria, afinal,
Aquele canto fatal
Das ondas sempre a rolar…?

Fechava os olhos, sonhava…
Ai! Nem me quero lembrar!

Mas sei de um som quase igual
A que o posso comparar:
O som do vento rolando
Nas copas dum pinheiral…
Pinhal do Corgo, seguido
De outro mais longo pinhal,
E esse outro seguido de outro
Té onde a vista alcançar,
Como te posso olvidar
Se é na minh’alma, afinal,
Que chora, como num búzio,
Teu canto irmão do do mar…?

Fechava os olhos, sonhava…
Caía num meditar
Que era pairar noutros mundos…
Ai! Nem me quero lembrar!

Não quero, e nada mais lembro,
Nada me pode agradar,
Nada alcança distrair-me,
Nada me vem consolar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum me pode salvar,
Nenhum mitiga este mal
Que eu gosto de exacerbar,
Morro em pecado mortal,
Sem me poder confessar…,
Se me não levam depressa,
Depressa! Estou sem vagar,
A tomar ar! O meu ar
Da minha terra natal.

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar…

José Régio, Poesia I,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004

Mar!







Foto A.M.







Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!


Miguel Torga, Antologia Poética,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 5.ª ed., 1999.

sábado, 27 de junho de 2009

Panfleto contra a paisagem II




















Vogo nas ondas
com uma nereida ao pescoço
a segredar-me de frio
na espuma da voz do mar:

«Esquece, esquece o desânimo do mundo
no sopro da minha pele
onde adormecem tufões
nas algas de polvo e enleio.

«Dá-me os teus pulsos
para algemá-los de frio.
Dá-me o teu coração
para pesá-lo de refúgio.
Dá-me as tuas lágrimas
para a sede dos espelhos.
Dá-me a tua boca
para sorri-la de enfeite.
Dá-me os teus cabelos
para afagá-los de mãos iluminadas.
Dá-me os teus olhos
para pintá-los de violino.
Dá-me o teu peito
para espreguiçar-me mulher nos teus braços.
Dá-me...»

Basta, nereida verde
de corpo de espuma frio
todo em ondas de embalar!
Sou firme como o não dum homem
e não há sereia ou mulher
que me tente de traição.

Sou firme como o não dum homem
e não há ninguém no mundo
que me arranque com cetins
ou garras de sangrar sóis
este Remorso Militante
que trago na pele e nos gritos
como a minha arma inútil de combate!

José Gomes Ferreira, Poesia I
Lisboa, Portugália Editora, 1969

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Oceanografia





Saramago recebendo o Nobel
in
nobelprize.org








Volto as costas ao mar que já entendo,
À minha humanidade me regresso,
E quanto há no mar eu surpreendo
Na pequenez que sou e reconheço.

De náufragos sei mais que sabe o mar,
Dos abismos que sondo, volto exangue,
E para que de mim nada o separe,
Anda um corpo afogado no meu sangue.

José Saramago, Os Poemas Possíveis,
Lisboa, Editorial Caminho, 1981, 2.ª ed.

Terra! (Land Ho!)









Vovó amava um marujo que andara nos mares gelados,
Vovô que arpoou baleias e me sentou nos joelhos.
Dizia-me: «Ó filho, aqui em terra dou em maluco.
Chama-me os meus camaradas, vamos por praias distantes.»

Era um velhote engraçado, tinha um sorriso de prata,
fumava um cachimbo de urze e corremos quatro milhas,
cantando canções de pegas e da antiga liberdade,
canções de amor e de morte e a favor do homem livre.

Jim Morrison, Uma Oração Americana e Outros Escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, trad. de Manuel João Gomes

James Douglas Morrison (Melbourne 1943- Paris 1971), cantor, compositor e poeta americano, elemento dos The Doors e autor da maior parte das letras cantadas pela banda.

Ouvir esta canção (Land Oh!!!) dos The Doors: aqui.

6 Poetrix (sobre o mar)








Foto A.M.








SOLUÇÃO


adoro o mar
peguei-o nos teus olhos
e trouxe-o para casa


MARÉ VAZA

envergonha-se o mar
de ser tão pouco
perante a maré cheia dos teus olhos


BELEZA

mais belo do que tu
só o reflexo da tua beleza
no mar da minha alma

REFLEXO

águas azuis precisam de azul no céu
e eu do teu sorriso
para espelhar nele o meu


NÁUFRAGO

anseio
a enseada
do teu seio


PLENITUDE

teu ritmo
marítimo
meu mar íntimo


Anthero Monteiro, Esta Outra Loucura - 50 Poetrix,
V. N. Gaia, Corpos Editora, 2004, 2.ª ed.
(1.º livro de Poetrix publicado em Portugal e na Europa)

________

Quer saber o que é um poetrix?
Quer praticar poetrix, isto é, quer ser poetrixta?
Quer saber por que razão o lema do poetrixta é "o mínimo é o máximo"?
Quer saber quem criou o poetrix?
Quer saber notícias deste Movimento Internacional, que não é nenhuma gripe, mas já grassa na América, na Europa e na Ásia?

Consulte o sítio do MOVIMENTO INTERNACIONAL POETRIX:
http://www.movimentopoetrix.com/

Dormem na praia os barcos pescadores









Foto A.M.





Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico
Rói a solidão.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral,
Lisboa, Portugália Editora, 1950

Praia









Foto A.M.





Brincávamos na areia. Os nossos passos
eram naqueles dias a cadência
a música do sol

Ó estilhaços do tempo ainda vivos
projectados num filme que regressa
ao ritmo das ondas
e fica ao nosso alcance, até ao fim
da tarde pouco a pouco devorada
pla sombra desses toldos

Dunas esquivas e pinhais
tão perto do que foi a minha infância
entre o riso dos primos e o mar
amigo de Brandão de António Nobre
batido pla nortada

Brincávamos na areia Como eu queria
roubar de novo a luz a essas praias
jogar ao prego -------- adivinhar
nas vozes infantis algum presságio
do céu ou do inferno - uma certeza
para sempre fiel a esse mundo

Fernando Pinto do Amaral, Poemas Escolhidos (1990 - 2007),
Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2009

N. em Lisboa em 1960. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas. Mestrado e Doutoramento em Literatura Portuguesa. Professor do Departamento de Literaturas Românicas da Fac. de Letras de Lisboa.
Publicou seis livros de poesia, um romance, ensaios e traduções várias.
Crítico literário no JL, Público e Diário de Notícias, entre outros.
O seu "Fado da Saudade", cantado por Carlos do Carmo, recebeu em Espanha o Prémio Goya para a melhor canção original em 2008. (In Op. cit.)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Espinho







Foto A.M.







aqui
eu ganho o ritmo da espuma
das asas da lonjura e destas dunas
que viajaram no vento

aqui
te beijo apenas no que escrevo
esta imagem de ti bem à medida do
i n c o m e n s u r á v e l

aqui
estou mais só e estou mais perto
sei que não tens contornos e és da cor
das tardes insubmissas

aqui
saio de mim e sou maior
pois descubro que falas infinito
e sabes a dilúvio

é aqui
que tudo és tu

Anthero Monteiro, MARíntimo (ainda inédito)

Balada do Mar de Espinho






















Eram só três pescadores
Ou seriam trinta e três.
Quem vai agora contá-los
Um a um de cada vez?
Eram poucos e sozinhos
Mas foram eles os padrinhos
Desta cidade afamada
À beira do nosso mar.

Deram-lhe o nome de Espinho,
Outro também lhe servira
Pelo traçado das ruas
Onde o vento corre livre
Sem medo de tropeçar.

Com muito engenho e sucesso
De pequenina cresceu
Até à saturação.
Tem de tudo que é progresso
Menos ódio e poluição.

Entre o mar e o casario
As palmeiras logo acenam
O seu fraterno sinal,
A quem de longe ou de perto
Volta sempre com prazer
Em cada quadra estival.

Cidade de oiro e lazer,
Ó jóia da natureza,
A tua maior riqueza
Não vem dos jogos de azar,
Vem da força do trabalho
E dos encantos do mar!

Edgar Carneiro, Mar Amar - Poemas do Mar de Espinho,
Edição do autor, patrocinada pela Editora & etc., 1992

Nasceu em Chaves em 1913, mas, tendo ido leccionar para a zona de Espinho, ficou a viver nesta cidade desde 1967. É pai do poeta, já falecido, Eduardo Guerra Carneiro. Com 96 anos, planeia ainda publicar o seu 12.º livro de poesia, pois continua a escrever assiduamente.
O seu nome consta do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (Publicações Europa-América – Vol. IV). O Município de Espinho acaba de lhe atribuir, no dia da cidade (16/6), uma segunda medalha de mérito. Fez parte desde a criação, há quase 12 anos, da Onda Poética, coordenada por Anthero Monteiro.

Literatura explicativa (onde se fala de Espinho)








Praia de Espinho
Foto A.M.





O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medicis
onze quilómetros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero de junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr-do-sol apenas pôr-do-sol

Ruy Belo, Homem de Palavra(s)
Lisboa, Editorial Presença, 1978

Praia de Olhos de Água




Praia de Olhos de Água
(Carvoeiro)
Foto in
www.trekearth.com/






olhos olhos olhos
olhos de água
e a água espelho de cristal
olhos de céu
e o céu surdina de catarse
olhos de sol
e o sol candelabro de alogénio
olhos de areia
e a areia leito de sumaúma
olhos de falésia
e a falésia vulto hipnótico

e que minúsculos os meus olhos
perante a profusão destes
olhos olhos olhos

Manuela Correia, Escritos de Areia,
Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2005

Praia do Furadouro




Praia do Furadouro
Foto in
www.ovarnews.com



junto conchas
e lembro coxas

junto verdes
e lembro ventres

junto espuma
e lembro esperma

Manuela Correia, Escritos de Areia,
Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2005

Praia da Granja






Praia da Granja,
foto in travel.webshots.com



de que marca
a mímica da areia
está despida

de que sono
as pequenas rochas
são represas

de que orquestra
a espuma das ondas
tem o espasmo

de que silêncio
todo o céu
está coroado

de que tempo
este sol
ainda intacto

Manuela Correia, Escritos de Areia,
Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2005

O Rei de Tule


Capa da revista
Folhas de Poesia n.º 3
in
http://folhas-de-poesia.blogspot.com/










Como um anjo não falas, e o silêncio,
sussurro de presença e de cuidados,
que linguagem será na tua boca
senão dos lábios a moverem-se húmidos?

Às vezes, quando a noite avança
e drapejantes param luminosas trevas,
eu escuto que não escuto
sequer teus lábios horizontes de asas.
E lágrimas me descem, desceriam,
por tanto alheio rosto sobreposto ao meu,
que à minha porta e alisando as penas
pacientemente mas recolhes.

Porém, está seca a taça que me estendes:
ou já bebi, ou tudo foi outrora.

11/9/1951

Jorge de Sena, in revista Folhas de Poesia n.º 3, Setembro 1958

Ver outras versões da célebre balada de Goethe ou outros poemas nela inspirados, em posts anteriores.

Canção do suicida










De repente, não sei como
Me atirei no contracéu.
À tona d’água ficou
Ficou dançando o chapéu.

E entre cascos afundados,
Entre anênomas azuis,
Minha boca foi beber
Na taça do Rei de Tule.

Só minh’alma aqui ficou
Debruçada na amurada,
Olhando os barcos… os barcos!…
Que vão fugindo do cais.

Mário Quintana, Canções,
São Paulo, Editora Globo, 2005

Ver outras versões da célebre balada de Goethe ou outros poemas nela inspirados, imediatamente antes e depois deste post.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A taça do rei de Tule


O rei de Tule era velho, e sobre velho, enfermiço e triste. Sentindo avizinhar-se a morte, distribuiu pelos filhos as suas terras e riquezas. E ficou sozinho e pobre num antigo roqueiro castelo – o mar batia por baixo, minando cavernas e invadindo as masmorras de entorno aos cataventos das torres, gritavam as aves do temporal, e por salas de armas e corredores ainda a desoras ressoavam as passadas duma corte dispersa aos quatro ventos, vendo o rei sem território. O trôpego monarca, chamando as forças que lhe restavam, vestiu-se dos seus vestidos de gala, coroou ele mesmo os velhos longos cabelos com a sua coroa de ferro, e arrancando do seio uma taça preciosa, disse ao pajem lhe vazasse um velho vinho do Reno. Triste é dizer a mágoa que o rei exprimia ante essa taça que a amante lhe dera, à volta de montear, a primeira vez que os dois tinham falado a sós. E o rei, que então era mimoso adolescente, curvado sobre o palafrém da amante, jurara nunca profanar a taça em brindes libertinos, nos festins do seu castelo roqueiro.

O pajem deitou-lhe vinho, ao largo era já noite no mar – ele, erguendo o braço trémulo, bebeu vagarosamente, e havia nos seus olhos cansados, como no seio duma gruta marinha, ossadas de antigas e abrasadoras paixões.

Mas embalde o licor lhe circulava nos pergaminhos do corpo, à mira de incender-lhe reminiscências da mocidade.

E atirou a taça ao mar, do varandim rendilhado, por que ninguém mais, bebendo por ela, viesse a conhecer os segredos daquele amor de balada, feito de suspiros e raios de lua, perfumes de laranjeira e baques de coração espezinhado.

A taça oscilou ligeiramente nas águas, fez umas reviravoltas antes de seguir mar em fora, como uma gôndola deserta que procura o gondoleiro.

E o rei considerava em voz triste - quem mesmo velho pudera guardar-te dia e noite, taça de amor por onde os meus lábios beberam os vinhos generosos, por essas noites perladas dos ecos das serenatas, dos perfumes festivais das rosas, e da embriaguez dos profundos amores? ...Abandonaram-me os meus cavaleiros e não me queixo, fugiram-me os cortesãos e estou tranquilo: só a ideia de te deixar me atormenta, pois tu guardas inteira e palpitante a história do meu coração.

[...]


Fialho de Almeida, O País das Uvas (excerto),
Lisboa, Ulisseia, 1987

Ver outras versões da célebre balada de Goethe, imediatamente antes e depois deste post.

Nova balada do rei de Tule










Imagem in
alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/






Num país nada vizinho...
Em Tule, até mui distante,
Houve outrora um rei farsante,
Um rei amigo do vinho.

Quando a sua amante fiel
Mimosa e cheia de graça,
Morreu, deixou-lhe uma taça,
Que semelhava um tonel.

Era tamanha a grandeza
Da taça que nada iguala.
- Ficava sempre, ao esgotá-la,
El-rei debaixo da mesa.

Quase sempre ao lusco-fusco,
De noite, até horas mortas,
Folgava, as pernas já tortas,
Este rei velho e patusco!

E noite d'agreste vento,
Na sua mais alta torre,
Pensando em que tudo morre,
Tratou do seu testamento.

A sua amizade cega
Legava a todos dinheiro.
E a seu filho e seu herdeiro
Seu reino, seu povo... e a adega.

Da sua amizade em prova,
A todos dava uma graça.
Só aquela enorme taça
Levava El-Rei para a cova!

Um dia, os altos barões,
Fez juntar, para uma orgia,
Numa sala onde curtia
As suas indigestões.

E ali, depois de libar...
Passados curtos momentos,
Começou a ver, aos ventos,
Os seus castelos dançar.

Assoma, trocando o pé,
De taça em punho, à janela,
Mas nisto, tropeça... e ela
Vai levada da maré.

E afunda-se... mas tal revés
Tomba o rei morto de mágoa.
- Era esta a primeira vez
Que a taça se enchia d'água!

Gomes Leal, Claridades do Sul,
Mem Martins, Publicações Europa-América, 1999

Ver outras versões da célebre balada de Goethe, imediatamente antes e depois deste post.

A canção do Rei de Tule





Antero de Quental
in www.acores.net







Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.
-
Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.
-
Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.
-
Chegada a hora da morte
Põs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.
-
Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.
-
No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para o último festim.
-
Convidou sem mais tardar
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.

Então, vazando-a de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou a taça à água.
-
Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais na vida!
-
Antero de Quental, versão do Fausto de Goethe

Ver outras versões da célebre balada de Goethe, imediatamente antes e depois deste post.

Canção do Rei de Tule




Estátua de Castilho, mandada erigir pela Câmara Municipal de Lisboa, em homenagem ao poeta invisual. É da autoria de Leopoldo de Almeida e foi inaugurada, na Av. da Liberdade, em 27 de Maio de 1952


Cf. revelarlx.cm-lisboa.pt






Reinava, em Tule, algum dia
Um bom rei, tão fino amante,
Que, até morrer, foi constante
À dama com quem vivia.

À hora do passamento
Deixou-lhe ela um vaso de oiro,
Que foi do real tesoiro
O mais falado ornamento.

Punham-lho sempre na mesa;
Só por aquele bebia;
E o choro que então vertia
Causava a todos tristeza.

Vendo o seu termo chegado,
Repartiu pelos herdeiros,
Os bens 'té aos derradeiros,
Excepto o vaso adorado.

Foi isto em jantar de mágoas
Que el-rei deu à fidalguia,
Em torre herdada que havia
Ao rés das marinhas águas.

Como el-rei houve bebido
O seu último conforto,
Co braço já quase morto
Levanta o vaso querido.

E por não deixá-lo ao mundo
Da janela ao mar o atira;
Ondeia o vaso revira,
Enche-se, e desce ao profundo.

No mesmo triste momento
Em que o vaso se abismava,
O rei seus olhos cerrava,
Soltando o último alento.

António Feliciano de Castilho, versão do Fausto de Goethe

Ver outras versões da célebre balada de Goethe, imediatamente antes e depois deste post.

O Rei de Thule





Goethe, de Warhol
in www.differnet.com






Houve em Thule um rei, fiel
Até que a morte o levou;
A sua amada, ao morrer,
Taça de oiro lhe deixou.

Nada amava ele mais na vida;
Consigo sempre a trazia;
Os olhos se lhe toldavam
Sempre que dela bebia.

As cidades do seu reino
Contou, ao chegar-se a morte.
Tudo - só a taça não! -
Deixou ao herdeiro em sorte.

Com seus cavaleiros foi-se
El-rei à mesa assentar,
No salão de seus avós
Do castelo à beira-mar.

O rei velhinho bebeu
Ardor último da vida,
E atirou a taça santa
Pra a água, por despedida.

Viu-a cair, e no mar
se embebeu e mergulhou.
Embaciou-se o olhar...
Nunca mais vinho provou.
-
J. W. Goethe, Poemas,
Coimbra, Centelha, 1986, 4.ª ed., versão de Paulo Quintela

Esta é uma das célebres baladas do grande poeta alemão, autor do Fausto, obra em que se integra este poema. Daremos, de seguida, conta de outras várias versões de importantes poetas portugueses: Castilho, Antero de Quental, Gomes Leal, etc.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Salsugem (2)









Foto A.M.






queria ser marinheiro correr mundo
com as mãos abertas ao rumo das aves costeiras
a boca magoando-se na visão das viagens
levaria na bagagem a sonolenta canção dos ventos
e a infindável espera do país assustado pelas águas
debruçou-se para o outro lado do espelho
onde o corpo se torna aéreo até aos ossos
a noite devolveu-lhe outro corpo vogando
ao abandono dum secreto regresso... depois
guardou a paixão de longínquos dias no saco de lona
e do fundo nostálgico do espelho
surgiram os súbitos olhos do mar
cresceram-lhe búzios nas pálpebras algas finas
moviam-se medusas luminosas ao alcance da fala
e o peito era o extenso areal
onde as lendas e as crónicas tinham esquecido
enigmáticos esqueletos insectos e preciosos metais
um fio de sémen atava o coração devassado pela salsugem
o corpo separava-se da milenar sombra
imobilizava-se no sono antigo da terra
descia ao esquecimento de tudo... navegava
no rumor das águas oxidadas agarrava-se à raiz das espadas
ia de mastro em mastro perscrutando a insónia
abrindo ácidos lumes pelo rosto incerto dalgum mar

Al Berto, «Salsugem», in O Medo,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Um dia prometi ao Al Berto






Autógrafo de
valter hugo mãe

para A.M.











Um dia prometi ao Al Berto
nunca escrever um poema com
a palavra salsugem

valter hugo mãe, entorno a casa sobre a cabeça,
Esposende, Silêncio da Gaveta, 1999

Sussurros







Foto A.M.







O barulho do limite das águas, a areia.
É preciso alcançar o fundo, aprender a desconfiar de mim.
Não somos da têmpera do amor, da limpidez da água,
somos isto que o tempo vai desprezando.

E o tempo despreza a vontade e a sua força,
deixa um rastro com formas de culpa,
um sofá, uma cama, o desinteresse.
Tudo objectos para secar um corpo, uma alma.

E pode passar muitos dias sem que um seio me chegue às mãos.
Talvez um ninho de folhas brancas e um engano.
Mas que Deus o permita, permita aceitá-lo sem culpa.
O barulho do limite das águas, a areia.

Paulo José Miranda, de A Voz Que Nos Trai
in
Jorge Reis-Sá (selecção e organização), Anos 90 e Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, V.N. Famalicão, Edições Quasi, 2001

Vieste como um barco carregado de vento








Foto A.M.






Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes,
Lisboa, Gótica, 2001

Compaixão










Autógrafo de
José Tolentino Mendonça
in A Que Distância
Deixaste o Ciração




Vi pela primeira vez o mar
era muito difícil frente a mim
compreender esse território absoluto
falámos só de coisas inúteis
e o mundo inteiro se escondia

somos novos. Lemos nos olhos fechados
precauções, derrotas, recusas
quando a intimidade sugere
a maior compaixão

José Tolentino Mendonça, A Que Distância Deixaste o Coração, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998

domingo, 21 de junho de 2009

Saudades Trágico-Marítimas







Foto A.M.








Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Na praia, de bruços,
fico sonhando, fico-me escutando
o que em mim sonha e lembra e chora alguém;
e oiço nesta alma minha
um longínquo rumor de ladainha,
e soluços,
de além...

Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.

São meus Avós rezando,
que andaram navegando e que se foram,
olhando todos os céus;
são eles que em mim choram
seu fundo e longo adeus,
e rezam na ânsia crua dos naufrágios;
choram de longe em mim, e eu oiço-os bem,
choram ao longe em mim sinas, presságios,
de além, de além...

Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.

Naufraguei cem vezes já...
Uma, foi na nau S. Bento,
e vi morrer, no trágico tormento,
Dona Leonor de Sá:
vi-a nua, na praia áspera e feia,
com os olhos implorando
- olhos de esposa e mãe -
e vi-a, seus cabelos desatando,
cavar a sua cova e enterrar-se na areia.
- E sozinho me fui pela praia além...

Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.

Escuto em mim, - oiço a grita
da rude gente aflita:
- Senhor Deus, misericórdia!
- Virgem Mãe, misericórdia!
Doidos de fome e de terror varados,
gritamos nossos pecados,
e sai de cada boca rouca e louca
a confissão!
- Senhor Deus, misericórdia!
- Misericórdia, Virgem Mãe!
e o vento geme
no bulcão
sem astros;
anoitecemos sem leme,
amanhecemos sem mastros!
E o mar e o céu, sem fim, além...

Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.

Ah! Deus por certo conhece
minha voz que se ergue, branca e sozinha,
- flor de angústia a subir aos céus varados
p'la dor da ladainha!
Transido, o clamor da prece
do mesmo sangue nos veio
Deus conhece os meus olhos alongados;
onde o mar e o céu deixaram
um pouco de vago anseio
nesse mistério longo do seu halo...
Rezam em mim os outros que rezaram,
e choraram também;
há um pranto português, e eu sei chorá-lo
com lágrimas de além...

Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.

Ó meu amor, repara
nos meus olhos, na sua mágoa clara!
Ainda é de além
o meu olhar de amor
e o meu beijo também.
Se sou triste, é de outrora a minha pena,
de longe a minha dor
e a minha ansiedade.
Vês como te amo, vês?
Meu sangue é português,
minha pele é morena,
minha graça a Saudade,
meus olhos longos de escutar sem fim
o além, em mim...

Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.

Afonso Lopes Vieira, Ilhas de Bruma,
Coimbra, 1917

Diário de Bordo








Foto A.M.






Letra a letra,
hora a hora,
linha a linha,
marquei no Diário de Bordo
as fases da viagem.

Dias e dias no embalar das vagas,
sem que um bafo de brisa poluísse
o abandono tentador das velas;
expedições forçadas, abordagens;
fome e sede de carne, nos jejuns
de cem dias de Mar;
velhos contos de bordo, em noites podres,
sem lua e sem estrelas;
o escorbuto na alma, apodrecida
à espera dos combates;
os rateios da presa recolhida
e, ao fim,
a Ilha dos Amores de qualquer porto
onde as mulheres se vendem.

E tudo foi, profundamente,
inútil.

Livro de Bordo de Corsário, deixa
que o tempo apague a tua prosa inútil
e escreve a história imensa
daquela frota em que tu vais partir
- como pobre navio auxiliar -
à demanda e à conquista
do Novo Continente!

Álvaro Feijó, Os Poemas de Álvaro Feijó,
Porto, Brasília Editora, 1978, 3.ª edição

Georges! anda ver o meu país de Marinheiros










Foto in
www.povoadevarzim.com.pt






Georges! anda ver o meu país de Marinheiros
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera de maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o com toda a força,
Clamam todas à uma: «Agôra! agôra! agôra!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!

Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!

Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Sêmos probes!

Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!

Parece o Farol...

Maim de Jesus!

É tal e qual ela, se lhe dá o Sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!

Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matuzinhos!

Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Martir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!

Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
«As armas e os varões assinalados...»

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira,..
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...

Adeus! adeus! adeus!

António Nobre, ,
Porto, Livraria Tavares Martins, 1971

sábado, 20 de junho de 2009

Anthero Monteiro na Escola EB1 de Souto - Nogueira da Regedoura



























































































































Esta semana estive na Escola EB1 de Souto, em Nogueira da Regedoura (Santa Maria da Feira).

Estas são algumas fotos da visita àquele estabelecimento, onde o poeta foi extraordinariamente bem recebido por todos, dos mais pequenos aos maiores.

Como acontece nestas situações, o que melhor sabe é verificar que os alunos conviveram com os meus livros e os meus poemas e trabalharam a partir das leituras feitas: os desenhos tentam reproduzir as ilustrações, saúdam o visitante, registam os títulos dos poemas que mais apreciaram.

Também os professores se empenharam e organizaram leituras, apresentações em power-point, entrevistas e outros pretextos para motivarem os alunos para a leitura e para a escrita.
O que pareceu entusiasmar mais os miúdos foram as leituras que fiz de alguns textos de A Sara Sardapintada* e de A Lia Que Lia Lia** e nas quais puderam participar, repetindo os refrãos (ou refrães, se preferirem).


Finalmente, foram os autógrafos - os poemas mais difíceis de escrever -, nos quais se passaram largos minutos, seguidos de prolongada e amistosa despedida.

Talvez que aquele extraterrestre que aportou na aula tenha saído de lá mais parecido com as crianças, sempre ansiosas pela brincadeira: que fiz eu mais do que brincar com o papel, com as palavras e com elas?


* Anthero Monteiro, A Sara Sardapintada, Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2004

** Antero Monteiro, A Lia Que Lia Lia, Espinho, Elefante Editores, 1999 (esgotado, mas pode consultar o texto integral aqui).

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Dunas








Foto A.M.





Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:

«O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem».

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético (Antologia),
Braga, Editora Angelus Novus, 1996

De regresso ao rochedo







Foto inportugalia.free.fr






animais milenários
os rochedos ajoelharam na fome das ondas
e adormeceram submissos
no sono dos lustros
curiosas
vieram as águas espiolhar
os indícios da nossa presença um dia
e levaram-nos todos há muito para o largo

o que é feito da brisa das tuas palavras
ou das palavras da tua brisa
e do sal de todas as tuas salivas
e dos meus dedos que aprenderam no mar
todas as redes e rendilhados da insídia?

está tudo no fundo dos pélagos
a alimentar os peixes que vão devorando as tardes
e eu sou mais um animal petrificado
rendido e de joelhos
perante a voracidade
do infinito

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V. N. Gaia, Corpos Editora, 2009, 2.ª ed.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Segredo




Foto in
http://universomarino.com





Nas profundidades marinhas
há coloridos imóveis e penumbra...
Há cavernas onde ressoam silêncios eternos...
Há tesouros...
Há calma...

Nas profundidades marinhas
há todo o encanto das profundidades marinhas...
E no liso chão de areia
há talvez um esqueleto descansando...

Cristovam Pavia, Poesia,
Lisboa, Moraes Editores, 1982

Compare com poema anterior: Fundo do mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Fundo do mar








No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I,
Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 4.ª ed.

Compare com poema seguinte: Segredo, de Cristovam Pavia.

Escafandro





Foto in
plongeur.romandie.com








Fosse eu em ti, dentro de ti, escafandro,
Ao fundo mais fundo do mar sem fundo!
E lá, com léguas d'água sobre mim,
Cortasse o cabo de ligar-me ao ar
Um peixe horrorosamente belo,
Maravilhosamente desconhecido,
Com a sorte divina de nunca ter sido classificado
Pela prosaica sabedoria dos homens.

Fosse eu em ti, dentro de ti, escafandro,
Levando comigo, ao fundo do mar,
Um processo roubado aos sábios do futuro
De já não ser preciso os poetas comerem,
Porque o Sonho possui inesgotáveis vitaminas
E mais oxigénio do que toda a atmosfera.
(Ah! se algum dia a Ciência visse isto,
Acabava de vez com a fome dos pobres.)

Fosse eu em ti, dentro de ti, escafandro,
Iluminado pela incrível fosforescência dos peixes,
No fundo mais fundo do mar sem fundo,
Com léguas e léguas d'água sobre mim,
Sem outro medo que não fosse descobrir
Carcaças de navios torpedeados
Ou idênticas coisas diabólicas
Com que os homens maculam a pureza das águas.

Fosse eu em ti, dentro de ti, escafandro!
(Ah! como eu vejo o belo itinerário
E sinto o espanto e a maravilha dos encontros!)
Fosse eu em ti, já sem memória, já sem nome,
Com gestos e passos de monstro inofensivo,
Ébrio de sonho e solidão,
Anos e anos e anos a andar,
- Eterno «globe-trotter» do fundo do mar!

Carlos Queiroz, Epístola aos Vindouros e Outros Poemas,
Lisboa, Edições Ática, 1989

Ver também neste blogue, o Poema do Homem-Rã, de António Gedeão