quarta-feira, 24 de junho de 2009

A taça do rei de Tule


O rei de Tule era velho, e sobre velho, enfermiço e triste. Sentindo avizinhar-se a morte, distribuiu pelos filhos as suas terras e riquezas. E ficou sozinho e pobre num antigo roqueiro castelo – o mar batia por baixo, minando cavernas e invadindo as masmorras de entorno aos cataventos das torres, gritavam as aves do temporal, e por salas de armas e corredores ainda a desoras ressoavam as passadas duma corte dispersa aos quatro ventos, vendo o rei sem território. O trôpego monarca, chamando as forças que lhe restavam, vestiu-se dos seus vestidos de gala, coroou ele mesmo os velhos longos cabelos com a sua coroa de ferro, e arrancando do seio uma taça preciosa, disse ao pajem lhe vazasse um velho vinho do Reno. Triste é dizer a mágoa que o rei exprimia ante essa taça que a amante lhe dera, à volta de montear, a primeira vez que os dois tinham falado a sós. E o rei, que então era mimoso adolescente, curvado sobre o palafrém da amante, jurara nunca profanar a taça em brindes libertinos, nos festins do seu castelo roqueiro.

O pajem deitou-lhe vinho, ao largo era já noite no mar – ele, erguendo o braço trémulo, bebeu vagarosamente, e havia nos seus olhos cansados, como no seio duma gruta marinha, ossadas de antigas e abrasadoras paixões.

Mas embalde o licor lhe circulava nos pergaminhos do corpo, à mira de incender-lhe reminiscências da mocidade.

E atirou a taça ao mar, do varandim rendilhado, por que ninguém mais, bebendo por ela, viesse a conhecer os segredos daquele amor de balada, feito de suspiros e raios de lua, perfumes de laranjeira e baques de coração espezinhado.

A taça oscilou ligeiramente nas águas, fez umas reviravoltas antes de seguir mar em fora, como uma gôndola deserta que procura o gondoleiro.

E o rei considerava em voz triste - quem mesmo velho pudera guardar-te dia e noite, taça de amor por onde os meus lábios beberam os vinhos generosos, por essas noites perladas dos ecos das serenatas, dos perfumes festivais das rosas, e da embriaguez dos profundos amores? ...Abandonaram-me os meus cavaleiros e não me queixo, fugiram-me os cortesãos e estou tranquilo: só a ideia de te deixar me atormenta, pois tu guardas inteira e palpitante a história do meu coração.

[...]


Fialho de Almeida, O País das Uvas (excerto),
Lisboa, Ulisseia, 1987

Ver outras versões da célebre balada de Goethe, imediatamente antes e depois deste post.