domingo, 14 de junho de 2009

Inventário marinho








Foto A.M.






os seixos as pedrinhas diminutas
esporos fecundíssimos de areia
mil braços a brotar na maré-cheia
teimosias de lapas pelas grutas
------------ a água que me foge
------------ a mágoa de hoje
------------ e estas loucas angústias

anémonas solares abrindo à aragem
os mexilhões eternos e submissos
os bichos emigrando dos ouriços
objectos e dejectos sempre à margem
------------ lixos impertinentes
------------ e os meus olhos doentes
------------ de não estares na paisagem

os traços dos meus passos coisa pouca
signos do vento hieróglifos do bando
das gaivotas grasnando e conspirando
------------ o glauco latifúndio que treslouca
------------ o dilúvio no estreito
------------ anquilosado peito
------------ e a aridez desta boca

os barcos ou os braços já sem remos
os olhos desprovidos de astrolábios
a tormenta o tormento dos meus lábios
os meus lábios dos teus lábios abstémios
------------ este meu leme à toa
------------ e o silêncio que ecoa
------------ dos beijos que não demos

a tarde solitária que se esfuma
tão vagarosamente peregrina
um adeus adejante da gaivina
o mar sob a escumilha desta bruma
------------ a vestir o disfarce
------------ e o desejo a evolar-se
------------ a desfazer-se em espuma

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V. N. Gaia, Corpos Editora, 2009, 2.ª ed.

Leia o recente prefácio de Manuel Poppe para esta 2.ª edição de Desesperânsia, no blogue Sobre o Risco.