in diebus illis
quinta-feira, 30 de maio de 2013
o promontório
in diebus illis
o infante
tinha um promontório
que se
erigia emproado e orgulhoso
contra as
vagas e os ventos dominantes
era ali
que se sentava apostado
em dilatar
ainda mais os horizontes
pois sonhava
acordado
e à
revelia do velho do restelo
que a ponta
de sagres
se haveria
de retesar
muito para
além de si própria
e assim
fez o infante que até dobrou o cabo
para o
meter no caminho para a índia
mas agora quem
se senta no promontório
é mesmo o
velho do restelo
incapaz de sonhar acordado
decrépito
e sem tesão
está
apenas sentado e logo adormece
com
pesadelos povoados de adamastores
e o
próprio promontório
é incapaz
de se erigir contra as marés
por isso o
velhote em vez de se sentir a existir
só é capaz
de se sentar a desistir
e nos
intervalos do sono e dos pesadelos
recorda o
fausto do passado
aos
infantes incrédulos
o país das
maravilhas é agora
a terra
das maravalhas e dos maravelhos
e há mesmo
quem proponha
que o
promontório
passe a
chamar-se
busílis
Anthero
Monteiro
quarta-feira, 29 de maio de 2013
poema do homem sentado
Foto
A.M.
conheci um homem que esperava sempre sentado
nunca
se soube o quê no vão de uma porta
ou
no degrau de uma escada
é
possível que fizesse outras coisas mas raramente
conseguia
ser visto de pé
o
que fazia aquele homem sempre alapado
como
um soba para além de dar utilidade ao traseiro
depois
do árduo trabalho de deslocar o ponto de gravidade
para
ir ocupar o assento e de oferecer também
serventia
ao lugar de acolhimento
que
não saberia fazer mais nada de interessante?
que
mais fazia aquele homem para além de me colocar
pontos
de interrogação nos meandros do cérebro?
puxava
de um cigarro e acendê-lo era mais trabalhoso
do
que aos calceteiros pavimentar toda a rua
recostava-se
para trás contra o degrau
imediatamente
superior e arrancava por fim
umas
fumaças de dentro do peito
como
se quisesse provar que todo o seu âmago
era
apenas povoado de neblina
esperava
que o paivante se extinguisse
como
parecia fazer à própria vida
sem
qualquer pressa para apressar ou delongar a morte
sem
a mínima emoção existencial
aparentemente
sem interrogações
sobre
a sua sina de mortal e sem qualquer preocupação
acerca
do que lhe faltava ainda cumprir
antes
da inapelável descida para outro degrau
às
vezes dava-se o fenómeno extraordinário
de
se levantar e atravessar a rua
sem
se apressar sequer com o trânsito
e
ir ocupar o assento da paragem do autocarro
ali
ficava como se estivesse à espera dele
e
dos sucessivos autocarros de cada meia-hora
sem
embarcar em nenhum
punha-se
apenas a vê-los chegar e retomar a marcha
como
se tivesse por destino apenas ficar
enquanto
todos os outros só queriam partir
mas
também ele partiu certamente
pois
há muito vejo o degrau e o assento vazios
não
sei se caiu alguma vez de algum desses poisos
se
foi esmagado a atravessar a rua
ou
atingido por um raio ou um meteorito
penso
que finalmente deve ter tomado
o
único autocarro que lhe servia de destino
que
ele sabia que só passaria uma vez
e
que não podia perder de modo nenhum
Anthero Monteiro
segunda-feira, 27 de maio de 2013
sexta-feira, 24 de maio de 2013
peixes peixes e mais peixes
Foto
A.M.
era um
salmão brincalhão
uma truta
muito arguta
uma
sardinha fresquinha
um carapau
muito mau
era um
sável muito afável
era um
robalo de estalo
era um
goraz bom rapaz
e uma
faneca careca
era um
ruibarbo com garbo
uma
pescada aprumada
um
tamboril muito vil
uma tainha
mesquinha
uma
garoupa sem roupa
um ruivaco
bem velhaco
uma cavala
de gala
um
bacalhau bem marau
uma azevia
vadia
uma
corvina traquina
um badejo
benfazejo
um
peixe-porco de borco
à frente
ia um achigã
e iam
todos em cardume
direitinhos
à sertã
que a
minha mãe pôs ao lume
Anthero
Monteiro
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Poesia infantil,
ZOO
quinta-feira, 23 de maio de 2013
vazio
olho o vazio
penso no vazio
engendro mais vazio
e dele me inebrio
abstenho-me de mim
do tempo e do lugar
de tudo o que acontece
e está p’ra acontecer
abro os olhos para trás
para nada mais ver
pra nada mais sentir
dentro ou perto de mim
estou longe muito longe
onde de mim não sei
sou feliz sou feliz
porque já não sou nada
e porque ébrio de nada
a
dor
meço
Anthero Monteiro (inédito)
quarta-feira, 15 de maio de 2013
Fotografia do Porto
Foto
A. M.
O
Porto é uma menina a falar-me de outra idade.
Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz
de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou
um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes
de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos.
Entre mim e o Porto, existem milímetros que são
muito maiores do que quilómetros, mesmo quando
os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos
lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto,
deitados na cama, a respirar, transpirados e nus?
Eis uma pergunta que nunca terá responta.
José Luís Peixoto
Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz
de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou
um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes
de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos.
Entre mim e o Porto, existem milímetros que são
muito maiores do que quilómetros, mesmo quando
os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos
lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto,
deitados na cama, a respirar, transpirados e nus?
Eis uma pergunta que nunca terá responta.
José Luís Peixoto
Gaveta de Papéis, Quasi Edições.
sexta-feira, 10 de maio de 2013
ausência
a
noite derrapa
as
estrelas perscrutam o drama
são
pregos aos mil cravados nos olhos
o
vento quebrou como vidro
é
agora um montão de destroços num chão de silêncio
o
silêncio o silêncio coalhando tudo
calando
tudo até os impiedosos cães vizinhos
e os
seus ódios de todas as noites
um
navio de gelo rasga o pano do peito
rompe
no oceano da alma
abraçado
à insónia
bêbeda
e devassa
dói
dói
doidamente
apetece
fugir mas para onde
não
há nenhum lugar de refúgio para quem ama
a não
ser o peito de quem se ama
e é
então que a ausência se torna mais presente
ganha
corpo de monstro e crescem-lhe garras
di-la-ce-ran-tes
sitia-me
sitia-me
obsidia-me
ausência
ausência ausência
ausência
nome
de mulher
desapiedada
e ausente
Anthero Monteiro
quarta-feira, 8 de maio de 2013
poesia ao natural
Foto
A.M.
escoou-se
a manhã
do alto da
eternidade
o sol
riu-se de mim que meço o tempo
fez
murchar as horas
e não
floriu em mim um só poema
entretanto
mal o sol
rompera
desabrolhou
uma corola
no vaso da
varanda
subreptícias
mais outra
e outra
e outra
e muito
antes da primeira meia-hora
já a flor
tinha escrito um poema
inimitável
Anthero Monteiro
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FLORES,
Maldita Poesia,
Poemas de Anthero Monteiro,
Poesia Juvenil
terça-feira, 7 de maio de 2013
notas para um epitáfio (à maneira de Edgar Lee Masters)
Foto
A.M.
nasci decerto do ventre de um incunábulo
ou do ovo de um livro de asas abertas
como qualquer pássaro sedento de horizontes
os meus livros que fariam uma torre de babel
vazando as nuvens acotovelavam-se lá em casa
por um lugar nas estantes empurravam-se
encavalitavam-se uns sobre os outros
das prateleiras por cima da janela que dá para a rua
debruçavam-se as mais volumosas lombadas
sobre o sítio onde lia ou desenhava
os sulcos dos meus versos
sentado nos autocarros nos comboios
nas dunas nos rochedos ou à sombra das tílias
foi sempre um livro a minha irrevogável testemunha
escrevi livros publiquei livros fundei bibliotecas
vivi entre estantes dois terços da existência
li poemas e histórias para centenas e centenas
a vida foi um espesso tomo dedicado
à leitura à poesia à escrita à bibiofilia
naquela noite sentado no lugar dos meus labores
prosseguia eu a leitura do livro negro do padre dinis
e ali pela página duzentos e trinta e cinco
ouvi alguns ligeiros estalidos que se repetiram
era talvez a traça algum bibliófago a tosar
papel tenrinho mas não fiz caso pois essa
é uma entidade tão invisível quanto deus
alguns parágrafos adiante aquela frase do duque
de cliton: “quando o pressentimento da morte
nos fala muitas vezes não devemos desprezá-lo”
mal virei a página um estrondo de derrocada
sobre a mesa de leitura e o seu ocupante
ainda tentei apanhar a vida mas ela escoou-se
de repente como um peixe dos limos
que nos resvala das mãos
Anthero Monteiro
ou do ovo de um livro de asas abertas
como qualquer pássaro sedento de horizontes
os meus livros que fariam uma torre de babel
vazando as nuvens acotovelavam-se lá em casa
por um lugar nas estantes empurravam-se
encavalitavam-se uns sobre os outros
das prateleiras por cima da janela que dá para a rua
debruçavam-se as mais volumosas lombadas
sobre o sítio onde lia ou desenhava
os sulcos dos meus versos
sentado nos autocarros nos comboios
nas dunas nos rochedos ou à sombra das tílias
foi sempre um livro a minha irrevogável testemunha
escrevi livros publiquei livros fundei bibliotecas
vivi entre estantes dois terços da existência
li poemas e histórias para centenas e centenas
a vida foi um espesso tomo dedicado
à leitura à poesia à escrita à bibiofilia
naquela noite sentado no lugar dos meus labores
prosseguia eu a leitura do livro negro do padre dinis
e ali pela página duzentos e trinta e cinco
ouvi alguns ligeiros estalidos que se repetiram
era talvez a traça algum bibliófago a tosar
papel tenrinho mas não fiz caso pois essa
é uma entidade tão invisível quanto deus
alguns parágrafos adiante aquela frase do duque
de cliton: “quando o pressentimento da morte
nos fala muitas vezes não devemos desprezá-lo”
mal virei a página um estrondo de derrocada
sobre a mesa de leitura e o seu ocupante
ainda tentei apanhar a vida mas ela escoou-se
de repente como um peixe dos limos
que nos resvala das mãos
Anthero Monteiro
(inédito)
sábado, 4 de maio de 2013
Dança I
Patrícia Portela
Amo-te tanto que me doem mais os pés que o coração.
tropecei ao correr estrada abaixo, torci o tornozelo
direito e feri gravemente o pé do outro lado. Dois dedos estão mortos e três
não têm unhas.
Tu não sabes, mas desde então, um
dos pés chora ininterruptamente por não ser mão e não te poder escrever pedidos
de socorro e cartas de amor.
Pensei seriamente amputar o meu
pé esquerdo, mas não consigo imaginar-me a amar-te apenas com o meu lado
direito.
Patrícia Portela,
Se não bigo, não digo, Lisboa, Fenda, 1998
Escritora, dramaturga,
encenadora, cenógrafa e atriz, entre outras coisas, cria, segundo Maria João
Guardão, «mundos paralelos em forma de livros, jardins, tertúlias, performances
e peças radiofónicas». Nasceu em Lisboa em 1974, viveu em Macau, estudou em
Utrecht e Helsínquia. Mudou-se para Antuérpia, por ter conhecido o músico belga
Christoph De Boeck e continua fascinada pela Bélgica. Publicou vários livros,
entre os quais: Operação Cardume Rosa,
Se não bigo, não digo, Odília ou a história das musas confusas do
cérebro de Patrícia Portela, Escudos
Humanos, Banquete ou a Trilogia Flatland
e recebeu vários prémios relacionados com o teatro.
quarta-feira, 1 de maio de 2013
Catarina viva, viva Catarina!
A morte de
Catarina Eufémia,
desenho de
José Dias Coelho
se não estivesses viva Catarina
não floriam de novo certamente
as papoilas sanguíneas do teu peito
mas viva estás constante no teu posto
e quando gritas às armas
logo enxadas disparam sobre o chão
tanques avançam firmes nas campinas
e lançam-se minúsculas granadas
para explodir em chama verde e fulva
ferindo a multidão com grãos de trigo
se não estivesses viva Catarina
o gigante dormia sobre as presas
e o povo não sabia que o não teme
mas viva estás e mais do que isso alerta
e quando gritas parem
o rubro das bandeiras faz-se negro
e em liliput sentam-se os anões
nas barbas do gigante furibundo
e comungando a raiva e o silêncio
gela o sangue nos braços dos sobreiros
se não estivesses viva Catarina
há muito que teriam estrangulado
as vozes militantes dos poetas
Anthero Monteiro,
in Abril Certo na Hora Incerta, Porto, 2010
Este poema foi cantado em 28/03/1981 no IV Festival da Canção Jovem (JCP), tendo ganho o prémio da melhor letra, prémio esse que me foi entregue pelo cantor Carlos Mendes.
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Anthero Monteiro,
LIBERDADE,
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