Foto
A.M.
ou do ovo de um livro de asas abertas
como qualquer pássaro sedento de horizontes
os meus livros que fariam uma torre de babel
vazando as nuvens acotovelavam-se lá em casa
por um lugar nas estantes empurravam-se
encavalitavam-se uns sobre os outros
das prateleiras por cima da janela que dá para a rua
debruçavam-se as mais volumosas lombadas
sobre o sítio onde lia ou desenhava
os sulcos dos meus versos
sentado nos autocarros nos comboios
nas dunas nos rochedos ou à sombra das tílias
foi sempre um livro a minha irrevogável testemunha
escrevi livros publiquei livros fundei bibliotecas
vivi entre estantes dois terços da existência
li poemas e histórias para centenas e centenas
a vida foi um espesso tomo dedicado
à leitura à poesia à escrita à bibiofilia
naquela noite sentado no lugar dos meus labores
prosseguia eu a leitura do livro negro do padre dinis
e ali pela página duzentos e trinta e cinco
ouvi alguns ligeiros estalidos que se repetiram
era talvez a traça algum bibliófago a tosar
papel tenrinho mas não fiz caso pois essa
é uma entidade tão invisível quanto deus
alguns parágrafos adiante aquela frase do duque
de cliton: “quando o pressentimento da morte
nos fala muitas vezes não devemos desprezá-lo”
mal virei a página um estrondo de derrocada
sobre a mesa de leitura e o seu ocupante
ainda tentei apanhar a vida mas ela escoou-se
de repente como um peixe dos limos
que nos resvala das mãos
Anthero Monteiro