terça-feira, 7 de maio de 2013

notas para um epitáfio (à maneira de Edgar Lee Masters)









Foto 
A.M.





nasci decerto do ventre de um incunábulo
ou do ovo de um livro de asas abertas 
como qualquer pássaro sedento de horizontes

os meus livros que fariam uma torre de babel 
vazando as nuvens acotovelavam-se lá em casa 
por um lugar nas estantes empurravam-se 
encavalitavam-se uns sobre os outros

das prateleiras por cima da janela que dá para a rua 
debruçavam-se as mais volumosas lombadas
sobre o sítio onde lia ou desenhava 
os sulcos dos meus versos

sentado nos autocarros nos comboios
nas dunas nos rochedos ou à sombra das tílias
foi sempre um livro a minha irrevogável testemunha 

escrevi livros publiquei livros fundei bibliotecas
vivi entre estantes dois terços da existência
li poemas e histórias para centenas e centenas
a vida foi um espesso tomo dedicado 
à leitura à poesia à escrita à bibiofilia

naquela noite sentado no lugar dos meus labores
prosseguia eu a leitura do livro negro do padre dinis
e ali pela página duzentos e trinta e cinco
ouvi alguns ligeiros estalidos que se repetiram 
era talvez a traça algum bibliófago a tosar 
papel tenrinho mas não fiz caso pois essa 
é uma entidade tão invisível quanto deus

alguns parágrafos adiante aquela frase do duque 
de cliton: “quando o pressentimento da morte 
nos fala muitas vezes não devemos desprezá-lo”
mal virei a página um estrondo de derrocada
sobre a mesa de leitura e o seu ocupante

ainda tentei apanhar a vida mas ela escoou-se
de repente como um peixe dos limos
que nos resvala das mãos


Anthero Monteiro
(inédito)