quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Neste outono







Foto
Anthero
Monteiro





Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor

do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. Pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma vida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes,
Lisboa, Gótica, 2001

Outono inglês







Foto
Anthero
Monteiro





Não para ver a luz que dos céus desce,
incerta nestes campos,
mas para ver a luz que, do escuro centro da terra,
às folhas sobe e as abrasa.
Não saí para ver a luz do céu
mas a luz que das árvores nasce.
Hoje o que os meus olhos vêem
não é uma cor que a cada instante sua beleza muda
e agora é tocha de ouro,
voraz incêndio, fumarada de cobre,
onda mansa de cinza.
Hoje o que os meus olhos vêem
é a profunda mudança da vida na morte.
Este esplendor tranquilo
é o acabamento digno de uma perfeita criação,
ainda mais se se descobre
a consumpção dolorosa dos homens,
apenas semelhantes em sua funda solidão,
mas com sofrimento e sem beleza.

O homem bem queria que sua morte
não carecesse de certeza alguma
e assim reflectiria em seu sorriso,
como o campo esta tarde,
uma tranquila espera.
------------------------- (Beleza dorminte
que imperceptível o mudo peito agita
para se erguer depois com maior vida;
como na primavera as árvores do campo.)
Como na primavera...?
Não é o que vejo, então, perturbação da morte,
mas o sonhar da árvore, que despe
sua fronte de folhagem,
e assim cristalina penetra a funda noite
que lhe dará mais vida.

É lei fatal do mundo
que toda a vida acabe em podridão,
e a árvore morrerá, sem nenhum esplendor,
pois o raio, o machado ou a velhice
hão-de abatê-la para sempre.
Na simulada morte que contemplo
tudo é beleza:
o estertor fatigado das aves,
a gritaria de uns cães velhos, a água
deste rio que não corre,
meu coração, mais pobre agora do que nunca,
porque mais ama a vida.

As asas gastas da noite vão caindo
sobre este vasto campo de cinza:
cheira a carniça humana.
A luz tornou-se negra, a terra
é pó somente, chega um vento
muito frio.
Se fosse morte verdadeira a deste bosque de ouro
só haveria dor
se um homem contemplasse a queda.
E chorei a perda do mundo
ao sentir em meus ombros e nos ramos
do bosque duradouro
o peso de uma mesma escuridão.

Francisco Brines, Ensaio de uma Despedida - Antologia (1960-86),
Lisboa, Assírio & Alvim, 1987 (selecção e tradução de José Bento)
______________

N. em Oliva - Valência, Espanha, em 1932. É licenciado em Direito e Filosofia. Foi leitor de espanhol na Universidade de Oxford de 1963 a 1965. Reside em Madrid e Valência, com estadas prolongadas no campo, em Elca - Oliva. Ganhou, em 2007, o IV Prémio Federico García Lorca, no valor de 50 000 euros.


terça-feira, 29 de setembro de 2009

Soneto de Outono





Foto
Anthero Monteiro






Já o outono deixou toda a folhagem
Das árvores. As noites são compridas.
As folhas secas caem, dando a imagem
Das irremediáveis despedidas.

Os poentes são longos. Na paisagem,
Campos lavrados, terras remexidas
Dão a impressão de coisas que reagem:
Eternas vencedoras e vencidas.

Mas há serenidade e confiança
Na vida. A terra loira enfim descansa
De florir os lilases e os trigais.

- Mas tu partiste... E nesse próprio dia
Pus-me a chorar em frente da invernia,
Como se o sol nunca voltasse mais!

Sílvio Rebelo, Poesias,
Edição de Isabel Rebelo, 1991

__________

Sílvio Rebelo nasceu em 1879 no Rio de Janeiro, filho de um emigrante de Fafe, onde a família se veio instalar, tendo posteriormente mudado para Lisboa.
Estudou na Suíça, preparando-se para uma carreira comercial.
Em 1899, a família vai residir para Peniche.
Frequenta a tertúlia de Nunes Claro.
Colabora em revistas e jornais, publicando poesia, não tendo os seus livros passado de projectos.
Inscreve-se, entretanto, na Escola Médico-Cirúrgica, concluindo o curso de Medicina com uma tese sobre a Sífilis.
Nesse mesmo ano, é o primeiro classificado, entre doze concorrentes, no concurso para médicos do quadro da Junta Consultiva do Hospital de S. José.

Em 1907, visita, em Génova, uma prima com quem irá casar dois anos depois, vindo viver para Lisboa. Deixara, entretanto, de escrever poesia, passando a trabalhar no Instituto Bacteriológico, onde faz importantes experiências laboratoriais.
Em 1911, é nomeado lente catedrático da Escola-Médico Cirúrgica, que a República transforma na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi o primeiro docente da nova cadeira de Farmacologia. Dedica-se à publicação de trabalhos científicos.
Em 1917 é chamado a cumprir serviço militar como capitão-médico miliciano, logo graduado em major, embarcando para França, onde dirige, em Hendaia, o Hospital do Corpo Expedicionário Português.
Regressa à sua Faculdade, ao seu laboratório, aos seus trabalhos científicos em 1919.

Em 1932, está na Suíça para cura de uma doença. Pronto para regressar a Portugal, sofre um acidente, em 15 de Maio do ano seguinte, que lhe põe fim à vida.
Os jornais de Lisboa falam da perda do eminente cientista e não esquecem a sua vertente de poeta. Lisboa passou a ter uma rua com o seu nome.

Postal




Foto in
commons.wikimedia.org



Chovem pais e filhos sobre os campos,

terrenos de árvores húmidas, outono.

Os pais tentam sempre proteger os filhos,

essa é a natureza que corre nas árvores,

essa é a lei e esse é o sentido. É outono

e não poderia ser outra estação, começou

o frio e a fome, olho a força dos campos

pela janela submersa deste último outono

e compreendo por fim a minha idade:

chovem pais e filhos de mãos dadas.

Lá longe, sou pai. Lá longe, sou filho.


J
osé Luís Peixoto, Gaveta de Papéis
Edições Quasi
(Prémio Daniel Faria 2008)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Pálida e loira








Foto in
pontedelima.
blogspot.com






Morreu. Deitada no caixão estreito,
Pálida e loira, muito loira e fria,
O seu lábio tristíssimo sorria
Como num sonho virginal desfeito.

Lírio que murcha ao despontar do dia,
Foi descansar no derradeiro leito,
As mãos de neve erguidas sobre o peito,
Pálida e loira, muito loira e fria...

Tinha a cor da rainha das baladas
E das monjas antigas maceradas,
No pequenino esquife em que dormia...

Levou-a a morte em sua garra adunca!
E eu nunca mais pude esquecê-la, nunca!
Pálida e loira, muito loira e fria.


António Feijó, Líricas e Bucólicas, 1884

Belíssimo soneto de um recorte claramente parnasiano. É tão belamente outonal que, um dia, não resisti a dizê-lo, em voz alta e de cor, para quem passava, junto ao monumento erguido em sua memória (ver foto) em Ponte de Lima, sua terra natal (1859). Haveria de falecer em Estocolmo em 1917.

Idílio







Ceres, a Deusa das Searas,
na mitologia romana,
equivalente à deusa grega
Deméter, a que alude
o poema de Teócrito.






Nos mais profundos leitos feitos de junco fresco
e de folhas de vinha pouco antes cortadas,
alegres nos deitámos. Sobre nossas cabeças
os choupos e os ulmeiros seus ramos agitavam.

De uma gruta, a dois passos, às Ninfas consagrada,
ouvia-se em murmúrios a água que escorria...
E pelo sol crestadas penavam as cigarras,
a sombra procurando nos espinhos das silvas.

Mais ao longe coaxavam ligeiramente as rãs;
pintassilgos cantavam; a rola suspirava;
as abelhas uniam ao canto das calhandras
seu dourado zumbido sobre a fonte sagrada...

E rescendia a frutos. Sorvia-se o aroma,
em todos essas pomos, do Outono fecundo:
as maçãs e as pêras empilhavam-se em montes;
e vergavam-se os ramos, carregados de abrunhos.

Abriu-se então um vinho, cuja cera datava
de quatro anos antes...
-------------------- - Que sempre me sorria,
terminadas as ceifas, a Deusa das Searas,
com as mãos enfeitadas de papoulas e espigas!


Teócrito, Idílios,
tradução de David Mourão-Ferreira in
Vozes da Poesia Europeia I - Colóquio Letras n.º 163,
Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro-Abril 2003

______

Poeta grego de maior destaque do período helenístico (séc. III a.C.),
que influenciou a poesia bucólica posterior, como a de Virgílio.

Na velhice (fragmento)














Já tenho as fontes embranquecidas,
já, sobre a fronte, cabelos níveos.
Já não há jovens na minha vida.
E que é dos dentes que outrora tive?

Mesmo a doçura de inda estar vivo
pouco me resta para fruí-la.
Só com lamentos é que consigo
saudar as margens da «outra» vida...

Como é terrível aquele abismo!
Que triste a estrada que lá se infiltra!
Nunca mais pode voltar ao cimo
quem vai lançado por essa pista.

Anacreonte,
tradução de David Mourão-Ferreira in
Vozes da Poesia Europeia I - Colóquio Letras n.º 163,
Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro-Abril 2003

________

Poeta grego de dialecto jónico do séc. VI a.C.

Viveu na corte de Polícrates, tirano de Samos. As suas composições festivas, que celebram os prazeres da vida, da arte e do amor, chegaram até nós apenas em fragmentos, como acontece com este sobre o outono da vida. Viveu até aos 85 anos, altura em que, segundo li ainda muito jovem, entrou no rol das vítimas de morte "macaca": terá morrido engasgado com uma grainha de uva...

Entre outras mortes idênticas, a tradição refere também a do dramaturgo Ésquilo, que terá sucumbido à queda de uma tartaruga sobre a sua cabeça calva, provocada por uma águia, que tendo-a confundido com um penedo, pretendia, assim, apenas quebrar-lhe a carapaça.

Recordo-me ainda vagamente da história de um outro grego célebre (seria Aristófanes?), que terá perecido de riso, ao dar com o seu burro a comer-lhe uma ceira de figos que tinha guardado para o jantar...

Vegetal e só






Foto
Anthero Moneiro







É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto do verão,
o rosto antigo do verão,
sem nenhum rumor de lágrimas
nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como um rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Eugénio de Andrade, Antologia Breve, 1972

Teatro dos dias


















Ninguém cheira melhor
nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
da cal mordida pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.

Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência, 1994

Farewell Happy Fields















Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente

A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio entre
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado até a tua respiração
na cama ao meu lado,
e também tu estás morta,
duma forma que já não me importa.

Vamos então os dois outra vez
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas, visitamos
talvez algum último amigo
sem sabermos que eu já não estou vivo.

Poderia ter sido de outro modo?
Poderiam ter sido outras duas pessoas
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi por pouco;
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse chegado a casa cansado
se a louça não estivesse por lavar
e a janela da sala de jantar
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem eu tivesse ido ao supermercado,
e se eu não estivesse cheio de medo.

Agora estou voltado para cima,
para onde cantas ainda há muito tempo.
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu eu, ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro sozinho
e conversamos comigo
como com um desconhecido.
Que diremos agora um ao outro?

É tarde. Ainda há um momento
me apetecia conversar, agora estou outra vez cansado!
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro?

Manuel António Pina, «Farewell Happy Fields» in
Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001
_________

O poeta esteve, o ano passado, nas Quartas Mal Ditas que coordeno no Clube Literário do Porto
e, em autógrafo no meu exemplar de Poesia Reunida, escreveu que
«foi uma noite muito especial em Novembro, esse, sim, o mais cruel dos meses».

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Na mão de Deus





Jardim Anthero
de Quental, onde
o poeta se suicidou
em 11/11/1891



Foto in
www.eureka. reservation.com


Na mão de Deus, na sua mão direita,
descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da ilusão
desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais com que se enfeita
a ignorância infantil, despojo vão,
depus do Ideal e da paixão
a forma transitória e imperfeta.

Como criança em lôbrega jornada
que a mãe leva ao colo agasalhada
e atravessa sorrindo vagamente

selvas, mares, areias do deserto,
dorme o teu sono, coração liberto,
dorme na mão de Deus eternamente.

Antero de Quental, Sonetos
_____________________

Foi também no dia 11 de Setembro, em 1891, que Antero de Quental se suicidou.
Este soneto, ainda que não fale do Outono, é o seu testamento poético.
Nessa fase final da sua vida, o poeta tinha evoluído de um panteísmo romântico para uma ascese de carácter budista.


Escrevi agora o soneto sem nada consultar, pois, na minha juventude, aprendi de cor dezenas de sonetos seus: sempre era o poeta meu homónimo, que tinha como meu mestre.

Também o poeta espinhense Manuel Laranjeira o considerava o poeta- mor e só agora, depois de ter escrito 3 livros sobre o autor de Comigo, é que reparo na seguinte coincidência:

Antero suicidou-se numa data em que o algarismo 1 se repete várias vezes: 11/11/1891.
Laranjeira suicidou-se numa data em que é o número 2 que se repete também várias vezes: 22/02/1912.

E parece-me agora, claramente, que, dada a admiração de Laranjeira pelo grande sonetista, a data do suicídio daquele não terá sido mera coincidência.
E repare-se ainda: Antero desfechou sobre si 2 tiros do seu Lefauchaux.
E Laranjeira inverteu as coisas e disparou apenas 1 tiro do seu revólver.
Interessante, não é?...

Fim de outono






Foto
Anthero Monteiro






Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Tudo seco pelas hortas,
Grandes lágrimas no chão
Nem uma flor pelos montes,
Tudo numa quietação
Soluça numa oração
O triste cantar das fontes.

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

A terra fechou as portas
Aos beijos do sol ardente,
E agora está na agonia...
Valha à terra agonizante
A Santa Virgem Maria!

Fim de Outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Fernanda de Castro

Poema 6






Foto
Anthero Monteiro






Te recuerdo como eras en el último otoño.
Eras la boina gris y el corazón en calma.
En tus ojos peleaban las llamas del crepúsculo.
Y las hojas caían en el agua de tu alma.

Apegada a mis brazos como una enredadera,
las hojas recogían tu voz lenta y en calma.
Hoguera de estupor que en mi sed ardía.
Dulce jacinto azul torcido sobre mi alma.

Siento viajar tus ojos y es distante el otoño:
boina gris, voz de pájaro y corazón de casa
hacia donde emigraban mis profundos anhelos
y caían mis besos alegres como brasas.

Cielo desde un navío. Campo desde los cerros.
Tu recuerdo es de luz, de humo, de estanque en calma!
Más allá de tus ojos ardían los crepúsculos.
Hojas secas de otoño giraban en tu alma.

Pablo Neruda, Poesía de Amor

Outono





Foto in
moodle.apvm.net





Uma lâmina de ar
atravessando as portas. Um arco,
uma flecha cravada no outono. E a canção
que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
quando saio para a rua, molhado como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
como se, de repente, não houvesse mais nada senão
a imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
que a minha boca recusa. É outono
A pouco e pouco despem-se as palavras.

Joaquim Pessoa, 125 Poemas - Antologia Poética

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Melancolia de um fim de Setembro






Foto de
Anthero Monteiro






Ó manhã, manhã,
manhã de setembro,
invade-me os olhos,
inunda-me a boca,
entra pelos poros
do corpo, da alma,
até ser em ti,
sem peso e memória,
um acorde só
do vento e da água,
uma vibração
sem sombra nem mágoa.

Eugénio de Andrade, Ostinato Rigore

Outono







In
www.comlive.net/








Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono... Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará...)

E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo...

Mas o teu seio é que não quis:
tremeu de mais sob o meu rosto...
Agora, nu, será feliz,
sob o afago do sol-posto...

Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo...?
Seria Outono...
--------------- Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.

David Mourão-Ferreira, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Presença, 1996

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Sob os álamos





Foto in
www.bligoo.com






Como se a luz, ao despedir-se do corpo,
precisasse de ser ouvida.

As palhas da noite eram mornas em Setembro
Agora o tempo esconde-se um atrás do
outro. Em que nuvem se moverá
o ramo desta sombra?

Vou-me desabituando de ler
os vestígios ainda azuis do alpendre
onde te acrescentaste à solidão.

António Cabral
_________

António Joaquim Magalhães Cabral nasceu
em Castedo do Douro (Alijó), em 30-04-1931.

Era manhã de Setembro



Composição de
Joséph Woli,
(com um obrigado)





Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro

Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro

O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto

Ela me beijava o membro

Um passarinho cantava,
bem dentro da árvore, dentro
da terra, de mim, da morte

Morte e primavera em rama
disputavam-se na água clara
água que dobrava a sede

Ela me beijava o membro

Tudo que eu tivera sido
quanto me fora defeso
já não formava sentido

Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama

Ela a me beijar o membro

Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas

Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha

tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio
como beijava uma santa
no mais divino tranporte
e num solene arrepio

beijava beijava o membro

Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo

Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta

Ela me beijava o membro

O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar

eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia

radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa

Para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa

e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo

Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em setembro.

Carlos Drummond de Andrade, Amor Natural
________________

Esta é "a face" erótica de Drummond...

Sou Antonin Artaud




in
découvrez.fr






Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta que eu o diga
como só eu o sei dizer
e imediatamente
hão-de ver meu corpo actual
voar em pedaço
e juntar-se
sob dez mil aspectos diversos.
Um novo corpo
no qual nunca mais
poderão esquecer-me.

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!
Estou sempre vivo.

Mas um vivo morto,
um morto vivo.
Sou um morto
sempre vivo
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.

Eu represento totalmente a minha vida.

Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.

Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.

Antonin Artaud
__________

Escritor francês nascido a 4 de Setembro de 1896, desde cedo apresentou problemas de saúde e neurológicos. Aos 24 anos começou a tomar tintura de ópio para aliviar dores de cabeça. Tornou-se dependente. Internado diversas vezes. Sofreu vários tratamentos para loucura (!).

Frequentava os bares de Paris nos anos 20 e 30, e costumava sentar-se no balcão só. Sentia-se feliz no seu mundo de alucinações.

Escritor, actor, dramaturgo, poeta maldito e visionário, nos anos 30 concebeu um teatro onde não haveria nenhuma distância entre actor e platéia, todo seriam actores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo.
Queria devolver ao teatro a mágica e o poder do contági, contágio esse que era estabelecido pelo estado de êxtase. Uma vez abolido o palco, o ritual ocuparia o centro da plateia. Era o chamado Teatro da Crueldade.

Artaud é o existencialista do desespero. Poetas e críticos afirmam que Artaud ampliou a visão de Rimbaud do poeta vidente.

Um artista francês chegou a afirmar que ARTAUD era a reencarnação de RIMBAUD e seu sucessor espiritual. Aliás o nome ARTAUD é formado com as 3 primeiras letras de ARThur e as 3 últimas de RimbAUD.

Artaud foi encontrado morto em 4 de Março de 1948 no quarto de um sanatório de Ivry, bairro de Paris, onde estava internado. Estava aos pés da cama com um sapato na mão. Versões para a sua morte – cancro no recto (a oficial), intoxicação com heroína e morfina ou suicídio.

Ma bohème (fantaisie) / A minha boémia (fantasia)




In
gforum.tv







Je m' en allais, les poings dans mes poches crevées;
Mon paletot aussi devenait idéal;
J'allais sous le ciel, Muse! et j' étais ton féal;
Oh! là là! que d' amours splendides j' ai rêvées!

Mon unique culotte avait un large trou.
— Petit-Poucet rêveur, j' égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.
— Mes étoilles au ciel avaient un doux frou-frou.

Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;

Où, rimant au millieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais des élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!

Arthur Rimbaud



Lá ia eu, mãos enfiadas nos rotos bolsos,
o casaco a tornar-se em algo ideal;
lá ia eu sob os céus, ó Musa, e era-te leal;
sonhando – ah! – quantos amores maravilhosos!

Desfiavam-se-me as calças – e eu só tinha aquelas –
e deambulando, polegarzinho sonhador,
fazia versos. Minha estalagem era a Ursa Maior.
Sussurravam no espaço minhas doces estrelas.

Eu ouvia-as, sentado nas bermas do caminho,
nas noites de Setembro, com o orvalho na face,
como se foram gotas de um vigoroso vinho;

Ali, dobrado, entre sombras, rimando em surdina,
dedilhava, como se de uma lira se tratasse,
os atilhos dos pobres sapatos em ruína.

Tradução de Anthero Monteiro

Tu és a Esperança







Foto
Anthero Monteiro









Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem
fundo, como quem bebe a madrugada.

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

Elegía de Septiembre



Casa natal
do poeta
colombiano

Foto by
Eduardo Rodgers in
www.panoramio.com






Cordero tranquilo, cordero que paces
tu grama y ajustas tu ser a la eterna armonía:
hundiendo en el lodo las plantas fugaces
huí de mis campos feraces
un día.
Ruiseñor de la selva encantada
que preludias el orto abrileño:
a pesar de la fúnebre muerte y la sombra y la nada,
yo tuve el ensueño.
Sendero que vas del alcor campesino
a perderte en la azul lontananza:
los dioses me han hecho un regalo divino:
la ardiente esperanza.
Espiga que mecen los vientos, espiga
que conjuntas el trigo dorado:
al influjo de los soplos violentos,
en las noches de amor, he temblado.
Montaña que el sol transfigura,
Tabor al febril mediodía,
silente deidad en la noche estelífera y pura:
¡nadie supo en la tierra sombría
mi dolor, mi temor, mi pavura!
Y vosotros, rosal florecido,
lebreles sin amo, luceros, corpúsculos,
escuchadme esta cosa tremenda: ¡HE VIVIDO!
He vivido con alma, con sangre, con nervios, con músculos,
y voy al olvido..

Porfirio Barba-Jacob, Poemas intemporales, 1943

Pseudónimo de Miguel Ángel Osorio, n. na Colômbia em 1883.
Antes deste pseudónimo, adoptara o de Ricardo Arenales, que usou até 1922, altura em que foi para a Guatemala e se viu obrigado a mudá-lo, por questões judiciais, uma vez que havia um homónimo. Peregrinou por toda a América, tendo vivido na Guatemala, Honduras, Costa Rica, El Salvador, Cuba, Peru e México, m cuja capital veio a morrer em 1942.

A propósito de pseudónimos:

Comigo, Antero Monteiro, aconteceu algo semelhante, embora não tenha havido qualquer recurso aos tribunais.
Não gosto de pseudónimos, prefiro arcar com as responsabilidades de tudo que escrevo. Mas, tinha eu já publicado vários livros com o meu nome próprio, fui um dia convidado para o lançamento de um livro de um homónimo.
Nessa altura, escrevi para a sua editora, alertando-a para o facto, uma vez que tal coincidência de nomes não seria benéfica para nenhum dos dois. O meu concorrente, contra quem nada me move, acrescentou um sobrenome: Antero Monteiro Fernandes. Eu, por via das dúvidas, adicionei, ainda que contra a vontade, um h ao meu nome literário: Anthero Monteiro.

Alguns julgam que terá sido por vaidade, mas foi o que rigorosamente se passou.
Mas, se preferirem, podem ver nesta alteração uma homenagem a um poeta que muito me influenciou na minha juventude - Antero de Quental - e que, na altura, se escrevia com um h.
Além disso, na etimologia, Anthero provém do grego antheros (florido, de anthos, flor), sendo o th transcrição fonética da letra teta (Θ).

Otoño



Foto in
fcom.us.es






Esparce octubre, al blando movimiento
del sur, las hojas áureas y las rojas,
y, en la caída clara de sus hojas,
se lleva al infinito el pensamiento.

Qué noble paz en este alejamiento
de todo; oh prado bello que deshojas
tus flores; oh agua fría ya, que mojas
con tu cristal estremecido el viento!

¡Encantamiento de oro! Cárcel pura,
en que el cuerpo, hecho alma, se enternece,
echado en el verdor de una colina!

En una decadencia de hermosura,
la vida se desnuda, y resplandece
la excelsitud de su verdad divina.

Juan Ramón Jiménez
(1881/1958)

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Pobre tísica




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Quando ela passa à minha porta,
Magra, lívida, quase morta,
E vai até à beira-mar,
Lábios brancos, olhos pisados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração põe-se a chorar.

Perpassa leve como a folha,
E, suspirando, às vezes, olha
Para as gaivotas, para o Ar:
E, assim, as suas pupilas negras
Parecem duas toutinegras,
Tentando as asas para voar!

Veste um hábito cor de leite,
Sainha lisa, sem enfeite,
Boina maruja, toda luar:
Por isso, mal na praia alveja,
As mais suspiram com inveja:
«Noiva feliz, que vais casar...»

Triste, acompanha-a um Terra Nova
Que, dentro em pouco, à fria cova
A irá de vez acompanhar...
O chão desnuda com cautela,
Que Boy conhece o estado dela:
Quando ela tosse, põe-se a uivar!

E, assim, sozinha com a aia,
Ao sol, se assenta sobre a praia,
Entre os bebés, que é o seu lugar.
E o Oceano, trémulo avozinho,
Cofiando as barbas cor de linho,
Vai ter com ela a conversar.

Falam de sonhos, de anjos, e ele
Fala de amor, fala daquele
Que tanto e tanto a faz penar...
E o coração parte-se todo,
Quando a sorrir, com tão bom modo,
O Mar lhe diz: «Há-de sarar...»

Sarar? Misérrima esperança!
Padres! ungi essa criança,
Podeis sua alma encomendar:
Corpinho de anjo, casto e inerme,
Vai ser amada pelo Verme,
Os bichos vão-na desfrutar.

Sarar? Da cor dos alvos linhos,
Parecem fusos seus dedinhos,
Seu corpo é roca de fiar...
E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina,
Eu julgo ouvir numa oficina
Tábuas do seu caixão pregar!

Sarar? Magrita como o junco,
O seu nariz (que é grego e adunco)
Começa aos poucos de afilar,
Seus olhos lançam ígneas chamas:
Ó pobre mãe, que tanto a amas,
Cautela! O Outono está a chegar...

Leça, 1889
António Nobre, Só
_____________
N. no Porto em 1887 e também ele morreu tísico, na Foz do Douro, aos 32 anos, em 1900.
O foi dos primeiros livros portugueses de poesia que eu terei lido.
Lembro-me que, um dia, teria eu 18 anos, fui de propósito à Biblioteca Municipal do Porto, para o conhecer. Como não havia nenhum exemplar disponível nesse dia, requisitei as Despedidas, do mesmo autor, e li-o de uma assentada. O ficou para outro dia.
Mas acho que o primeiro livro de poesia que li foi em espanhol: Elevación, de Amado Nervo, um poeta mexicano. Aliás, por essa altura, terei devorado também em espanhol, o D. Quixote de Cervantes.
Meu pai foi emigrante na Venezuela e, quando vinha a Potugal, trazia sempre livros em castelhano.
Acho que o primeiro livro que comprei em português, mas de autor espanhol (coincidências...), foi Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, Nobel de 1956. A seguir, poderemos ler um poeta desta poeta andaluz, também sobre o Outono.

Primeiro dia de Outono






Foto
Anthero Monteiro







Primeiro dia de Outono.
Primeira névoa de mágoa
Nos meus olhos rasos, mudos
De tristeza e de abandono
Onde o sonho é nostalgia...

O sol enfraqueceu - está doente;
E a paisagem parece adormecida
Na sua diluída rebeldia.

Um desalento vago, uma incerteza
Cinge o teu gesto sóbrio de quem busca
Uma nova ilusão para vencer...
A natureza mostra o derradeiro
Sorriso nos jardins... Tudo esmorece
Na graça deste lindo anoitecer!

Não ponhas essa dúvida na fronte,
Não entristeças, ri - foge ao compasso
Das longas atitudes lentas;
Reforça mais o teu riso
E pensa que na vida quem é forte
Retarda as intenções mortais da própria morte.

Outono! A sombra é a luz
Em prece de saudade!
Abre a janela e vê
se o mundo não disfarça
Os seus motins de sangue
neste silêncio d'oiro
Que vem do infinito...

Não falas? E porquê?

Tudo isto que eu te digo
E o mais que no meu peito me fica por dizer,
Amor, pode ser triste,
Mas olha que é verdade
E tem razão de ser!

António Botto, As Canções de António Botto,

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Viento de otoño





Foto in
belgrado.cervantes.es







Hemos visto, alegria! dar el viento
gloria final a las hojas doradas.
Arder, fundir-se el monte en llamaradas
crepusculares, trágico y sangriento.

Gira, asciende, enloquece, pensamiento.
Hoy da el otoño suelta a sus manadas.
No sientes a lo lejos sus pisadas?
Pasan, dejando el campo amarillento.

Por eso, por sentirmos todavía
música y viento y hojas, alegria!
Por el dolor que nos tiene cautivos,

por la sangre que mana de la herida,
alegria en nombre de la vida!
Somos alegres porque estamos vivos.

José Hierro, Antología poética 1936-1998,
Madrid, Editorial Espasa Calpe S.A.


Poeta existencialista espanhol, n. em Madrid em 1922 a aí morreu em 2002.

Outono: Square Marie-Louise




Square Marie-Louise,
em Bruxelas
(Foto in
brusselspictures.com)



Cargas de outono, folhas podres, saudade,
O lago onde lavei o exílio, o lodo doce
E os rijos passos da menina que não há-de
Ser minha (a loira, a madurinha) - e antes que fosse!

A dourada expressão de tudo, a cinza de tudo,
E ainda o que nem ouro nem fogo resolvem:
Como certa mulher toda embainhada em veludo
(Espada de honra), e as tardes, as ilhas que não volvem...

Terei lepra comigo, usagre, sarna,
Para que se não cole à minha vida uma folha?
Ou será o meu osso, que lentamente se descarna,
Único ramo de outono para que ninguém olha?

Vão, no lago do exílio, aqueles patos grasnando,
Os patos que nenhuma filha de rei guardou:
Pelo contrário - eles é que estão guardando
A minha cara, que em seu lago se espelhou.

Eh, patos! ah, folhas podres, cheiro a húmus,
Desejo vivo, recalcado em literatura,
E os erros, as pistas, os rumos
Perdidos! terra estrangeira dura!

Oh meus dias, buscai vosso estrato profundo
Onde cada um de vós é como os bichos que têm
Ânus, pulmões e boca juntos,
Dos outros sendo um só ao mesmo tempo pai e mãe!
Dias que eu tive, bichos defuntos,
Fazei de Ela o vosso caldo de cultura:
De Ela - e nesta amargura -
Cria-a bem!

Que entretanto este exílio, o lago onde apodreço
Como uma bengala que se não pôde tirar,
Me encha de tempo, me dê preço
E paciência, para acabar.

Que me engorde,
Me desvaneça em mim e nestas nuvens do Brabante
Em que me envolvo como um Lorde
(Porque eu às vezes sou pedante),
Mas me adelgace e apure todo
Com dores e pontas de vergastadas,
Levando a minha carne até ponto de lodo
E as minhas vergonhas arrastadas.

Neste desterro da Mulher,
Dos quatro Filhos e da Casinha,
Nosso Senhor assim o quer...
Seja pelas vides da sua vinha!

Vitorino Nemésio, Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1988

de pedra










é outono eu parto
deste amor cansado
e só pelo hábito
é que me arde o corpo

é outono e afiado
é maduro e aflito
e só por erosão
é que se come um fruto

é outono que estranho
e caem folhas de louro
de uma estátua de anjo
ouve-se o nevoeiro

Joaquim Castro Caldas, do baú,
Esposende, Silêncio da Gaveta, 1999

Outono














Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga, Antologia Poética,
Casais de Mem Martins / Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001

Fotografia de 11 de Setembro














Atiraram-se dos andares em chamas.
Um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra runo à terra.

Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.

Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.

Ainda estão no âmbito do ar,
ao alcance dos lugares
que acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer:
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.

Wislawa Szymborska, Alguns Gostam de Poesia,
Lisboa, Cavalo de Ferro Editores, 2004.

Volta o Outono




Foto in
peace-on-earth.org







Um enlutado dia cai dos sinos

como teia tremente duma vaga viúva,

e uma cor, um sonho

de cerejas afundadas na terra,

e uma cauda de fumo que chega sem descanso
para mudar a cor da água e dos beijos.
Não sei se me entendem: quando lá do alto

se avizinha a noite, quando o solitário poeta

à janela ouve correr o corcel do Outono

e as folhas do medo calcado estalam nas suas artérias,

há qualquer coisa sobre o céu, como língua de boi
espesso, qualquer coisa na dúvida do céu e da atmosfera.


Voltam as coisas ao lugar,

o advogado indispensável, as mãos, o óleo,

as garrafas,
todos os indícios da vida: sobretudo as camas
estão cheias dum líquido sangrento,

as pessoas depositam a confiança em sórdidos ouvidos,

os assassinos descem escadas,

e afinal não é isto, mas o velho galope,

o cavalo do velho Outono que treme e dura.


O cavalo do velho Outono tem a barbada vermelha

e a espuma do medo cobre-lhe as ventas

e o ar que o segue tem forma de oceano

e perfume de vaga podridão enterrada.


Todos os dias desce do céu uma cor de cinza

que as pombas devem repartir pela terra:

a corda que o esquecimento e as lágrimas entretecem,

o tempo adormecido longos anos dentro dos sinos,

tudo,

as velhas roupas traçadas, as mulheres que vêem chegar a neve,

as papoilas negras que ninguém pode contemplar sem morrer,

tudo vem cair às mãos que levanto

no meio da chuva.


Pablo Neruda
, Antologia Breve (tradução de Fernando Assis Pacheco)
___________

Convém não esquecer:

- 11 de Setembro não é apenas aquela data trágica dos atentados contra as torres gémeas de Nova Iorque. Nesse dia, ainda que em 1973, ocorreu também o golpe de estado de Pinochet que destruiu a democracia chilena. O poeta prémio Nobel Pablo Neruda, que estava gravemente doente de um cancro da próstata, ainda que estabilizdo, sofreu nesse dia um agravamento inesperado, atribuído à ansiedade dos acontecimentos políticos. Começa com febre alta e o médico aconselha umas injecções e que não tome conhecimento das notícias.

- 14 de Setembro: Neruda parece restabelecido, chama a sua mulher e dita-lhe o último capítulo de suas memórias. Nesse momento chegam camiões militares para vistoriar a casa. Matilde esconde os papéis, que conseguem ser salvos da inspecção.

- 18 de Setembro: Neruda volta a ter febre. Mandam buscar um ambulância para levá-lo para uma clínica.

- 19 de Setembro: ingressa na Clínica Santa María. O embaixador do México vem oferecer-lhe exílio, deixando um avião à sua disposição. O poeta nega-se a sair de seu país.

- 20 de Setembro: Matilde vai a Isla Negra buscar uns livros que lhe pedira Neruda. Quando ali estava, é avisada de que o marido piorara.

- 22 de Setembro: Neruda toma conhecimento dos horrores da repressão política e entra num estado febril ao saber sobre todos os seus amigos mortos. Nessa mesma noite a enfermeira dá-lhe um calmante e Neruda passa a noite toda dormindo calmamente.

- 23 de setembro: Às 22:30 exala o último suspiro, vítima de enfarte.


Das memórias de Matilde Urrutia ("Mi vida junto a Pablo Neruda") in
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/chile/chile-6.php

O Outono é triste



Foto
A.M.









Aonde estou não há Outono. O Outono é triste...
Aqui não deixam nunca as folhas de ser verdes
e há a relva e os rebentos e a alegria dos pássaros...
E os sítios em que amámos?... Vou contigo, Mulher,
vamos de braço dado aos sítios de outro tempo...
Ah! que não vemos musgo, muros velhos, mofo...
Saudades?... Nem ao menos saudades... Somos os dois tão jovens!...
Lá vai uma flor nova romper. Detemo-nos, deixamos
de respirar - e eis o botão rasgado e a flor aberta...


Sebastião da Gama,
Pelo Sonho É que Vamos,
Lisboa, Edições Ática, 1979, 3.ª ed.

Mar de Setembro






Foto
A.M.






Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves – só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.


Eugénio de Andrade, Mar de Setembro

domingo, 20 de setembro de 2009

Tempo






Foto
A.M.








Não sei se te nomeie ou nomeie o vento,
isto que passa
e procura os outros lugares onde o pólen cai.
Talvez uma colmeia confie ao seu mel o que
ficou de um ano
em que a tempestade não se fez ouvir sobre
as corolas.
O que viste antes de setembro perdeu-se,
apagou-se,
afastou-se sem dizer nada,
como os barcos que pouco a pouco se
afastaram da nossa vida,
calados e brancos,
com as suas gaivotas de asas fechadas,
envelhecendo lado a lado, sobre o convés.


José Agostinho Baptista, Agora e na Hora da Nossa Morte
,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1998

Oração







Foto
A.M.








Outono. Morre o dia.
Cai sobre as coisas plácidas e calmas
um véu de sombra e de melancolia
que dulcifica e embrandece as almas.

Todo o meu ser se invade
de enervantes e místicas doçuras,
de mansidão, de paz, de suavidade,
de sentimntos bons, de ideias puras.

No coração perpassa
uma piedade e compaixão serena
por todos os validos da desgraça,
por tudo quanto sofre e quanto pena:

pelos pequenos entes,
sem abrigo, sem lar e sem carinho,
que são como avezinhas inocentes
postas por mão cruel fora do ninho;

pelos encarcerados
que lançam, dentre as grades da cadeia,
ao ar, à luz, aos montes afastados
a vista aflita e de amargura cheia;

pelos que vão pedindo
de porta em porta o pão de cada dia,
tristes, que sempre a morte olham sorrindo
porque ela unicamente os alivia;

pelos que andam distantes,
entre cruezas, fomes e perigos,
sentindo a nostalgia lancinante
da família, da pátria, dos amigos;

e numa emoção crente,
numa fé viva, forte e benfazeja,
a Deus suplico fervorosamente
que os guie, que os socorra, que os proteja.


Augusto Gil, Musa Cérula, 1894

Tema de Setembro: OUTONO









Foto
Anthero Monteiro








Setembro vai adiantado.
Mas ainda teremos tempo para coligir alguns poemas, dentro do espírito temático deste blogue.


Pé ante pé, o Outono está a chegar. Sente-se na suavidade dos seus passos e no rumorejar das suas roupagens.


Os poetas pressentem-no, apreciam a sua chegada e simultaneamente temem-no: às vezes essa suavidade engana... Basta o prenúncio das folhas que já se lançam no chão, para servir de tapete às gerações vindouras...


Este mês, aqui na Praça da Poesia, falaremos, então do...

...OUTONO

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O laço do poeta










Fotógrafo Evaristo
Espinho, 1949(?)







Esta foto está patente, entre outras, num móvel do hall da minha casa. Entrando e saindo a todo o momento, há muito que não reparava nela.

Hoje deu-se o reencontro, quando estive a limpar-lhe o pó a ela e às suas congéneres.

E isso levantou outro pó e foi possível encontrar também na memória o tempo dos meus primeiros anos de professor, em que lia aos meus alunos, provocando-lhes momentos inolvidáveis ora de riso ora de lágrimas, O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos.

Aí, o Zezé ansiava repetidamente por ter um dia o seu laço de poeta.

Também eu me queixava muitas vezes, recordando essa simpática personagem, por nunca ter tido um laço ou, ao menos, uma gravata-borboleta como usaram alguns poetas que conheci, ao vivo ou em fotografias.

Afinal, a foto atesta que eu tive também o meu laço de poeta. Só que nessa altura não imaginava sequer o que era a poesia e só pelos 12 ou 13 anos comecei a versejar.

Só? Muito poucos devem ter começado mais cedo, embora só tenha publicado o primeiro livro de poesia aos 51 anos.

Hoje, tive saudades daquele laço, mas também daquele tempo... Sinal de que a idade avança e de que me sinto a regressar à infância até recuperar o meu laço de poeta...

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Hoje regressei também ao blogue, depois de me ter ausentado para parte incerta para uns dias de descanso e de sol... Não contava interrompê-lo, mas o hotel não tinha wireless, apesar de esse serviço estar anunciado, e só podia dispor de um computador onde o acesso à net só era feito através de moedas que se iam introduzindo numa maquineta. Peço, por isso, desculpa de nem sequer me ter despedido dos meus amigos e leitores.

Mas aqui estamos de novo e creio que é boa altura para encerrar este tema que dediquei abusivamente a mim próprio durante o mês de Agosto. Até já. Anunciarei logo que possível o tema seguinte.