segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Farewell Happy Fields















Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente

A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio entre
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado até a tua respiração
na cama ao meu lado,
e também tu estás morta,
duma forma que já não me importa.

Vamos então os dois outra vez
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas, visitamos
talvez algum último amigo
sem sabermos que eu já não estou vivo.

Poderia ter sido de outro modo?
Poderiam ter sido outras duas pessoas
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi por pouco;
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse chegado a casa cansado
se a louça não estivesse por lavar
e a janela da sala de jantar
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem eu tivesse ido ao supermercado,
e se eu não estivesse cheio de medo.

Agora estou voltado para cima,
para onde cantas ainda há muito tempo.
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu eu, ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro sozinho
e conversamos comigo
como com um desconhecido.
Que diremos agora um ao outro?

É tarde. Ainda há um momento
me apetecia conversar, agora estou outra vez cansado!
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro?

Manuel António Pina, «Farewell Happy Fields» in
Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001
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O poeta esteve, o ano passado, nas Quartas Mal Ditas que coordeno no Clube Literário do Porto
e, em autógrafo no meu exemplar de Poesia Reunida, escreveu que
«foi uma noite muito especial em Novembro, esse, sim, o mais cruel dos meses».