Foto in
peace-on-earth.org
Um enlutado dia cai dos sinos
como teia tremente duma vaga viúva,
e uma cor, um sonho
de cerejas afundadas na terra,
e uma cauda de fumo que chega sem descanso
para mudar a cor da água e dos beijos.
Não sei se me entendem: quando lá do alto
se avizinha a noite, quando o solitário poeta
à janela ouve correr o corcel do Outono
e as folhas do medo calcado estalam nas suas artérias,
há qualquer coisa sobre o céu, como língua de boi
espesso, qualquer coisa na dúvida do céu e da atmosfera.
Voltam as coisas ao lugar,
o advogado indispensável, as mãos, o óleo,
as garrafas, todos os indícios da vida: sobretudo as camas
estão cheias dum líquido sangrento,
as pessoas depositam a confiança em sórdidos ouvidos,
os assassinos descem escadas,
e afinal não é isto, mas o velho galope,
o cavalo do velho Outono que treme e dura.
O cavalo do velho Outono tem a barbada vermelha
e a espuma do medo cobre-lhe as ventas
e o ar que o segue tem forma de oceano
e perfume de vaga podridão enterrada.
Todos os dias desce do céu uma cor de cinza
que as pombas devem repartir pela terra:
a corda que o esquecimento e as lágrimas entretecem,
o tempo adormecido longos anos dentro dos sinos,
tudo,
as velhas roupas traçadas, as mulheres que vêem chegar a neve,
as papoilas negras que ninguém pode contemplar sem morrer,
tudo vem cair às mãos que levanto
no meio da chuva.
Pablo Neruda, Antologia Breve (tradução de Fernando Assis Pacheco)
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Convém não esquecer:
- 11 de Setembro não é apenas aquela data trágica dos atentados contra as torres gémeas de Nova Iorque. Nesse dia, ainda que em 1973, ocorreu também o golpe de estado de Pinochet que destruiu a democracia chilena. O poeta prémio Nobel Pablo Neruda, que estava gravemente doente de um cancro da próstata, ainda que estabilizdo, sofreu nesse dia um agravamento inesperado, atribuído à ansiedade dos acontecimentos políticos. Começa com febre alta e o médico aconselha umas injecções e que não tome conhecimento das notícias.
- 14 de Setembro: Neruda parece restabelecido, chama a sua mulher e dita-lhe o último capítulo de suas memórias. Nesse momento chegam camiões militares para vistoriar a casa. Matilde esconde os papéis, que conseguem ser salvos da inspecção.
- 18 de Setembro: Neruda volta a ter febre. Mandam buscar um ambulância para levá-lo para uma clínica.
- 19 de Setembro: ingressa na Clínica Santa María. O embaixador do México vem oferecer-lhe exílio, deixando um avião à sua disposição. O poeta nega-se a sair de seu país.
- 20 de Setembro: Matilde vai a Isla Negra buscar uns livros que lhe pedira Neruda. Quando ali estava, é avisada de que o marido piorara.
- 22 de Setembro: Neruda toma conhecimento dos horrores da repressão política e entra num estado febril ao saber sobre todos os seus amigos mortos. Nessa mesma noite a enfermeira dá-lhe um calmante e Neruda passa a noite toda dormindo calmamente.
- 23 de setembro: Às 22:30 exala o último suspiro, vítima de enfarte.
Das memórias de Matilde Urrutia ("Mi vida junto a Pablo Neruda") in
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/chile/chile-6.php