vejo passar eternidades e comboios
e horas de chegada e de partida
também no relógio da gare
dois comboios concêntricos
fingem travar as rotações da terra
e afinal
rodam inexoráveis
no seu destino de ponteiros
não é verdade que eu goste de ver
passar comboios atrás de comboios
os comboios é que gostam de passar
e ver-me acomodado no meu banco
a ouvir o ritual daquela voz
atenção senhores passageiros
vai partir da linha número um
o comboio rápido com destino ao porto
aquilo não é para mim
eu nunca fui passageiro
apenas soube ficar
e nunca encontrei nos painéis da estação
nas listas dos horários
nos rótulos das malas
ou impresso nos bilhetes
um destino que me servisse
atenção
senhor sentado no banco há dez eternidades
vai partir de uma linha qualquer
um comboio qualquer
com destino ao destino
é a hora de acordar
adeus senhor banco
adeus dona letargia
adeus relógio de tédio
adeus eterna sala de espera
adeus senhor chefe da estação
tão passageiro quanto eu fui
esta voz agora é mesmo comigo
e este comboio que aí vem
chega a arquejar
de me ter procurado
em todas as estações e apeadeiros
dizem que parto atrasado
mas os comboios partem sempre
à hora que partem
demais a mais
este é um comboio irrecusável
Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V. N. Gaia, Corpos Editora, 2003