domingo, 17 de maio de 2009
Guichê / 3
Dum cutelo-guichê sem higiafone
senti o frio na nuca e, por broma, imaginei-me na nuca de Antonieta
(referência cultural como qualquer outra).
Dar o pescoço e nem por aférese perder a cabeça
não é para todos quando nos burocratas.
Das doze e trinta às catorze e trinta
estive garrotado e encimado por um letreiro: ENCERRADO.
Estiquei a língua para um frasco de cola,
mas só a mosca dos tinteiros nele arriscava duas das patas.
Meditei (que fazer?) a gasta superfície do balcão
e, português derrotado, pensei:
«Onde veio parar a madeira das naus!»
O tempo demorava a passar como aquela estúpida reflexão
e eu, de grossa língua seca, sentia as ardências todas
do nauta que tragou meia barrica de sardinha.
Das mãos fiz passarinhos cegos contra o vidro,
baquetas ruflando a minha impaciência,
aranhas passeando o que me restava de pescoço.
«Vou pôr-me todo nos olhos, que os olhos salvam!»
e pela ponte pênsil dum olhar passei para o relógio,
que adiantei meia discreta hora.
Do mostrador alcancei uma flor num copo.
Com ela devaneei numa lapela imaginária,
mas o passeio não deu para mais nada.
Tocou a campainha e um contínuo entrou.
«Que faz aqui o senhor? O expediente ainda está encerrado!»,
praguejou o contínuo e, dando meia volta,
correu a chamar o general dos contínuos.
Este veio. Passou-me revista. Não se dignou falar-me.
Ainda hoje gostava de saber porquê.
Às catorze e trinta (três pela minha hora)
uma funcionária aproximou-se do guichê,
levantou o cutelo que me sujeitava,
retirou o letreiro e (até amável!) perguntou-me:
"O senhor o que deseja?"
E era, à beira-guichê, como se não tivesse acontecido nada!
Alexandre O’Neill, Tomai lá do O’Neill!,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1986