quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Cântico negro

«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: «vem por aqui»!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)

E cruzo os braços

E nunca vou por ali…

-

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

-

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Porque me repetis: «vem por aqui»?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí…

-

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

-

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

-

Ide! tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

-

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

-

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: «vem por aqui»!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

- Sei que não vou por aí!


José Régio, Poemas de Deus e do Diabo,

Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2002 (1925)

Este é talvez o poema mais conhecido entre os portugueses, pelo menos o mais lido e recitado.
Leia a seguir uma interessante e, há muito, também recitada paródia escrita por J. M. de Matos Vila.


Foto in www.esec-jose-regio.rcts.pt/