sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
Busco o teu perfil
Busco o teu perfil nos torvelinhos de uma cidade frenética
passo-te a mão pelo cabelo frondoso à sombra das faias
e esgoto os poderes da minha imaginação para seduzir-te
mais e mais
piso o teu hálito doce como quem coloca os pés em cama de cetim
e engasgo-me arranho-me atiro-me de bruços num poço de libelinhas
podia chamar-te açucena e morder-te a corola dourada
ou subir contigo uma escada até aos pés de um Buda louco
seguir num táxi com uma bandeira de esperma na janela
embarcar num cacilheiro e sair ao teu lado na cidade onde morremos há mil anos
mas estou nos teus braços numa velha sacristia em ruínas
ou no estádio confundido entre a multidão de proletários
encantados pelas cores das camisolas
e digo-te rosa de neve dos meus pulsos tremendo
ambição de âmbar arca de lençóis de linho adormecido
cestinho de figos em manhã de frescura figos em setembro mais doces do que o mel
é tão difícil caminhar nesta rosa-dos-ventos mas para quê a bússola para quê o mapa
mapa só o dos pontos desse corpo alto e majestoso viajados pela centopeia dos meus olhos
mapa só o dos locais sagrados de uma paixão semeada
pelas ruas emaranhadas nas pedras de basalto
e busco-te no resíduo do café numa chávena velha por onde bebeu Cesário Verde
e não tenho medo de viajar neste avião de motores enfurecidos
e não tenho medo de morrer devorando tábuas aplainadas pelas tuas mãos de serradura ardente
um dia nasci também num estábulo aquecido por animais de feltro
foste tu minha bruxa que me pariste para eu viver nas curvas do teu seio
li mil poetas de pátrias naufragadas mas o poema que te invente só eu tentei escrevê-lo
foi no Claustro do Mosteiro de Alcobaça foi numa cabana de palha antiga
nas rodas de um carro solar
ai dióspiro cereja passinha de uva estendida na eira à espera dos estorninhos
ai andorinha de Marrocos fazendo ninho nos meus dedos
ai coração de veado perseguido por infanes caçadores de má-fé
vamos procurar as árvores dessas ruas e escrever nelas o nosso encantamento
para que o mundo saiba que a redenção dos astros
passou pelos nossos lábios numa noite em que assaltámos
as portas de Deus
Levi Condinho, Roteiro Cego,
Alcobaça, Rebate - Movimento de Cidadania, 2001
Foto in http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/
Assim prosseguem as nossas "predilecções", ou seja, os nossos poemas preferidos.
E este é um fantástico e apaixonado poema de um quase desconhecido poeta nascido em 15 de Março de 1941 em Bárrio (Alcobaça) e o melhor representante, na devida altura, da nossa Beat Generation. É também, porventura, o poeta poortuguês que melhor escreve sobre a música, «da mais antiga à contemporânea», passando pelo Jazz, «grande música "do Mundo", no seu dizer.
Não passou despercebido a Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, que o contemplaram com a inserção de poemas seus na antologia Sião, 1987. Roteiro Cego é a antologia da sua poesia escrita entre 1965 e 2000, a todos os títulos recomendável.
passo-te a mão pelo cabelo frondoso à sombra das faias
e esgoto os poderes da minha imaginação para seduzir-te
mais e mais
piso o teu hálito doce como quem coloca os pés em cama de cetim
e engasgo-me arranho-me atiro-me de bruços num poço de libelinhas
podia chamar-te açucena e morder-te a corola dourada
ou subir contigo uma escada até aos pés de um Buda louco
seguir num táxi com uma bandeira de esperma na janela
embarcar num cacilheiro e sair ao teu lado na cidade onde morremos há mil anos
mas estou nos teus braços numa velha sacristia em ruínas
ou no estádio confundido entre a multidão de proletários
encantados pelas cores das camisolas
e digo-te rosa de neve dos meus pulsos tremendo
ambição de âmbar arca de lençóis de linho adormecido
cestinho de figos em manhã de frescura figos em setembro mais doces do que o mel
é tão difícil caminhar nesta rosa-dos-ventos mas para quê a bússola para quê o mapa
mapa só o dos pontos desse corpo alto e majestoso viajados pela centopeia dos meus olhos
mapa só o dos locais sagrados de uma paixão semeada
pelas ruas emaranhadas nas pedras de basalto
e busco-te no resíduo do café numa chávena velha por onde bebeu Cesário Verde
e não tenho medo de viajar neste avião de motores enfurecidos
e não tenho medo de morrer devorando tábuas aplainadas pelas tuas mãos de serradura ardente
um dia nasci também num estábulo aquecido por animais de feltro
foste tu minha bruxa que me pariste para eu viver nas curvas do teu seio
li mil poetas de pátrias naufragadas mas o poema que te invente só eu tentei escrevê-lo
foi no Claustro do Mosteiro de Alcobaça foi numa cabana de palha antiga
nas rodas de um carro solar
ai dióspiro cereja passinha de uva estendida na eira à espera dos estorninhos
ai andorinha de Marrocos fazendo ninho nos meus dedos
ai coração de veado perseguido por infanes caçadores de má-fé
vamos procurar as árvores dessas ruas e escrever nelas o nosso encantamento
para que o mundo saiba que a redenção dos astros
passou pelos nossos lábios numa noite em que assaltámos
as portas de Deus
Levi Condinho, Roteiro Cego,
Alcobaça, Rebate - Movimento de Cidadania, 2001
Foto in http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/
Assim prosseguem as nossas "predilecções", ou seja, os nossos poemas preferidos.
E este é um fantástico e apaixonado poema de um quase desconhecido poeta nascido em 15 de Março de 1941 em Bárrio (Alcobaça) e o melhor representante, na devida altura, da nossa Beat Generation. É também, porventura, o poeta poortuguês que melhor escreve sobre a música, «da mais antiga à contemporânea», passando pelo Jazz, «grande música "do Mundo", no seu dizer.
Não passou despercebido a Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, que o contemplaram com a inserção de poemas seus na antologia Sião, 1987. Roteiro Cego é a antologia da sua poesia escrita entre 1965 e 2000, a todos os títulos recomendável.