quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

A que morreu às portas de Madrid

A que morreu às portas de Madrid,

Com uma praga na boca

E a espingarda na mão,

Teve a sorte que quis,

Teve o fim que escolheu.

Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.

E antes de flor, foi, como tantas, pomo.

Ninguém a virgindade lhe roubou

Depois de um saque – antes a deu

A quem lha desejou,

Na lama dum reduto,

Sem náusea mas sem cio,

Sob a manta comum,

A pretexto do frio.

Não quis na retaguarda aligeirar,

Entre champanhe, aos generais senis,

As horas de lazer.

Não quis, activa e boa, tricotar

Agasalhos pueris,

No sossego dum lar.

Não sonhou minorar,

Num heroísmo branco,

De bicho de hospital,

A aflição dos aflitos.

-

Uma noite, às portas de Madrid,

Com uma praga na boca

E a espingarda na mão,

À hora tal, atacou e morreu.

-

Teve a sorte que quis.

Teve o fim que escolheu.

-

Reinaldo Ferreira, Um Voo Cego a Nada


Texto e Imagem in alfarrabio.di.uminho.pt