quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Cântico tinto

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«Não bebas vinho» - dizem-me alguns com olhos abstémios,

retirando-me os copos, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: «não bebas vinho»!

Eu olho-os com olhos bêbados

(Há, nos meus olhos, ironia e mágoa)

E enxugo mais um copo,

E nunca bebo água…

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A minha glória é esta:

Sem a botija cheia,

Não acompanhar ninguém!

- Que eu bebo vinho com o mesmo à-vontade

Com que um menino chupa o leite a sua mãe.

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Não, não vou por aí! Só vou por onde

Haja tascas no caminho…

Se quando a conta vem meu bolso é que responde,

Porque me repetis: «não bebas vinho»?

Prefiro ir esbarrar nos guardas sonolentos

Sentir que sou levado pelos ventos,

Redemoinhar em volta dos postes macilentos,

A não beber vinho…

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Se vim ao mundo, foi

Só para esvaziar canecas cheias,

E para lavar os pés tenho a água reservada…

O mais que faço não vale nada.

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Como, pois, sereis vós

Que me fareis discursos, rogos e promessas

Querendo entre mim e os copos pôr obstáculos?

Corre, nas vossas veias, sangue velho e capilé

E vós amais o que não tem sabor!

Eu amo o Aveleda, o Colares, o Cartaxo,

Só no verde e no tinto ponho fé

Só ao branco e ao maduro tenho amor…

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Ide! tendes laranjadas,

Tendes sumos, tendes cocas

Tendes Vidago , Pedras Salgadas

E outras águas “boas”, gabadas pelos sábios…

- Eu tenho a minha alegre bebedeira!

Levanto-a, como um facho, ou uma bandeira

E sinto espuma, e vinho, e cânticos nos lábios…

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O Copo e a Garrafa é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, a quem beber jamais estafa,

Nasci do amor que há entre o Copo e a Garrafa.

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Ah, que ninguém me dê água de Luso em garrafões!

Ninguém me ofereça pingos ou galões,

Ninguém me diga: «não bebas vinho»!

A minha vida é uma rolha que saltou.

É uma garrafa que se esvaziou

É um copinho a mais que me animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

O que não vou é sem vinho!

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J. M. de Matos Vila, Cântico Tinto,

Santa Maria da Feira, 1998


Foto A.M.: o autor do blogue e o autor da paródia ao "Cântico Negro" de José Régio, preparando-se para lê-lo numa sessão do Quarto Crescente, em S. Paio de Oleiros.
O opúsculo de J. M. de Matos Vila
, que exerceu funções em Terras de Santa Maria, sob o pseudónimo anagramático de J. M. da Silva Mota, traz a seguinte nota:
"Edição a favor dos Bombeiros (que sabem dar à água uma aplicação adequada)"
A sua edição ficou a dever-se ao empenho do bibliófilo Dr. Celestino Portela e de Mestre Joaquim Carneiro
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