domingo, 21 de dezembro de 2008
Orquestra, flor e corpo
Orquestra, flor e corpo:
doravante direi
como do corpo a música se extrai,
como sem corpo a flor não tem perfume,
como de corpo a corpo o som se repercute.
Orquestra, sim: orquestra. E flor. E noite.
Doravante dizendo orquídea negra
é logo o violoncelo nomeado;
e logo, logo, os instrumentos de arco
arremessando vão a flecha ao alvo;
e é logo o alvo peito;
e é logo amor,
e é logo a noite
murmurando «Até logo!» à outra noite...
De corpo a corpo a noite se transmite.
Orquestra, sim: orquestra. E flor. E vaga.
E a noite é sempre o corpo anoitecido,
e o corpo é sempre a noite que se aguarda.
De corpo a corpo o som se repercute,
de vale em vale,
de monte a monte,
de címbalo, de cítara, et coetera,
ao tímpano sensível que o recebe.
Sem concha do ouvido,
o mar não tem rumor.
Sem asa do nariz,
não voa a maresia.
E o mundo só é mundo enquanto houver o corpo,
de música e de flor universal medida.
David Mourão-Ferreira, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Presença, 1996, 2.ª ed.