domingo, 28 de dezembro de 2008

A senhora Lázaro


Voltei a fazê-lo.
Uma vez em cada dez anos
Lá consigo -

Uma espécie de milagre ambulante, a minha pele
Brilhante como a de um candeeiro nazi,
O meu pé direito

Um pisa papéis,
O meu rosto vulgar, fino
E de judia cepa.

Apaga-me da toalha
Oh inimigo meu.
Meto medo a alguém?

O nariz, as covas dos olhos, os dentes todos?
O hálito acre
Desaparecerá um dia.

Daqui a pouco, daqui a pouco a carne
Que a sepultura comeu ficará
À vontade comigo como se em sua casa.

Mas eu sou uma mulher optimista.
Só tenho trinta anos.
E como os gatos tenho sete vidas para viver.

Esta é a Número Três.
Que porcaria de vida
A aniquilar todos os dez anos.

Quantos milhões de filamentos.
Uma multidão a roer amendoins
Empurra-se para ver

Sôfregos a despirem-me-
Que fantástico strip tease.
Meus senhores, minhas senhoras

Estas são as minhas mãos
Os meus joelhos.
Talvez eu seja apenas pele e osso,

Contudo, sou precisamente a mesma mulher.
A primeira vez foi aos dez anos.
Foi um acidente.

Da segunda vez eu quis mesmo
Ir até ao fim e nunca mais regressar
Voltei fechada

Como uma concha.
Tiveram de me chamar e voltar a chamar
E arrancar de mim os vermes como se pérolas pegajosas.

Morrer,
É uma arte, como outra coisa qualquer.
E eu executo-a excepcionalmente bem.

Executo-a de forma a parecer-se com o inferno.
Executo-a de forma a parecer real.
Acho que se podia dizer que tenho um dom.

É bastante fácil executá-la numa cela.
É bastante fácil executá-la e ficar como se nada fosse.
É cena de teatro

Regressar em pleno dia
Ao mesmo lugar, ao mesmo rosto, ao mesmo brutal
E divertido grito:
-
Um milagre!
Que me põe K.O.
Há que pagar.

Para ver as minha cicatrizes,há que pagar
Para ouvir o meu coração -
É assim mesmo.

Há que pagar, e pagar bem.
Por uma palavra ou um toque
Ou uma gota de sangue

Ou por um bocado do meu cabelo ou da minha roupa
Vá lá então, então, Herr Doktor.
Então Herr inimigo.

Sou o seu opus,
Sou a sua jóia de estimação,
Um bébé todo em ouro

Que se funde como um grito.
Volto-me e ardo.
Não pense que subestimo as suas grandes preocupações.

Cinza, cinza -
Mexe e atiça.
Carne, osso, nada mais ali existe -

Um pedaço de sabonete,
Uma aliança de casamento,
A coroa em ouro de um dente.

Herr Deus, Herr Lúcifer
Tende cuidado
muito cuidado.

Renasço das cinzas
Com o meu cabelo fulvo
E devoro homens como faço ao ar.

Sylvia Plath, Ariel,
Lisboa, Relógio dÁgua, 1996

Nasceu em Boston, Estados Unidos, em 1932. Publicou o primeiro poema aos 8 anos. Com 21 anos, faz a promeira tentativa de suicídio e é internada. Casa em 1956 com o poeta inglês Ted Hughes. Em 1960, publica os eu primeiro livro de poesia, The Colossus and other Poems. Em 1961, escreve The Bell Jarr (A Campânula de Vidro, Assírio & Alvim, 1988) que foi editado só em 1963 sob o pseudónimo de Victoria Lucas. Em 1962, o casal separa-se. No dia 11 de Fevereiro do ano seguinte, depois de preparar o pequeno almoço para os dois filhos, Sylvia fecha-se na cozinha, calafeta todas as janelas e portas e abre o gás do fogão, sobre o qual se debruça. A Senhora Lázaro bem dissera neste poema que executava excepcionalmente bem a arte de morrer.

Foto in www.assirio.com
Ouvir Sylvia Plath a ler este seu poema em inglês: aqui