segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Canto e alegro-me...


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Antonio Gala
Foto in blogs.diariosur.es



Canto e alegro-me. Olho
a rua entardecida
e os parques de ouro
na passada de novembro.
A luz, desorientada,
resvala pelo passeio como uma lagartixa.
Mas canto e alegro-me, porque esta noite
ainda me afligiam lástimas de amor
sem saber bem porquê.

Canto e alegro-me. Há dias
que deviam prender-se como bosques de pinheiros
para evitar que nos aproximássemos.
Porque rapidamente, uma manhã, abres
os olhos e encontras tudo ardente
e queimam as carícias.
Por isso canto hoje
e por isso me alegro.
Porque estes lábios hão-se ser cinza
e sobre este peito
nenhuma outra fronte
se há-de reclinar.

Canto e alegro-me. Não quero mentir a mim mesmo:
tudo o que possuo
está ao alcance da minha mão agora.
Se não o tomo e sofro,
é porque o sofrimento me embeleza
esta tarde de outono em que vivo.
Por isso cantarei ainda amanhã
e depois de amanhã
a minha voz será aquele vazio de silêncio
que se faz de repente
na conversação de dois amantes.

Canto e alegro-me e essa é a razão
do meu júbilo. Podem
ferir-me, destroçar-me espadas, garras,
perfurar-me a sede de um lado ao outro:
depressa a morte me imporá as suas mãos,
nomear-me-á seu filho predilecto
e já não ficará de quanto fui
mais que um pouco de frio e este canto.

Antonio Gala, Poemas de Amor, Barcelona, Editorial Planeta, 1997 (2.ª edição)
Tradução de Anthero Monteiro

Poeta, novelista, dramaturgo, nasceu em 1936 próximo de Ciudad Real, mas mudou-se logo a seguir para Córdova, pelo que é considerado um escritor andaluz. É autor premiadísismo não só no campo da poesia, mas também pelo seu contributo para o teatro e para a ópera.
O seu sucesso como poeta pode aquilatar-se, por exemplo, pelo facto de os Poemas de Amor, de onde retirei este texto para tradução, ter tido duas edições no mesmo mês de Abril de 1997.
Terá sido mais ou menos nessa altura que perguntei numa livraria da Galiza qual era, então, o poeta mais conhecido em Espanha. Responderam-me: Antonio Gala. E não foi, certamente (ainda nem se falava nele), por se parecer tanto fisicamente com o negregado George W. Bush.