terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Só na minha cabeça



















Eu aqui
preocupado
lixado
torturado
di - la - ce - ra - do
este bicho a roer-me de dentro p'ra fora
ou de fora p'ra dentro
- já não sei bem onde tudo começa -
e tu a dizeres-me
que isto só está na minha cabeça
que isto só está na minha cabeça
que isto só está na minha cabeça

queres tu dizer
que aquilo que me faz assim triste
nem sequer existe
embora pareça
mas lá porque não entrou na tua cabeça
e nela não se aninha
o certo é que entrou na minha

e fico ainda mais
preocupado
lixado
torturado
di - la - ce - ra - do
este bicho a acabar de roer-me
sem que me apeteça
e tu a tentares convencer-me
que este verme
só existe na minha cabeça
só existe na minha cabeça
só existe na minha cabeça

é simpática essa tua preocupação
pela minha preocupação
já quase me persuadiste
mas depois volto a pensar
que se é preciso que se reconheça
que tudo só existe na minha cabeça
é porque de facto existe

deixa-me lá ficar
preocupado
lixado
torturado
di - la - ce - ra - do
para que eu não esqueça
que uma doença como essa
este mal
existe afinal
ainda que seja apenas na minha cabeça
ainda que seja apenas na minha cabeça
ainda que seja apenas na minha cabeça

não insistas comigo
amigo
não penses
que me convences
ou que esse teu pensar se me insinua
convenceres-me seria
pores na minha cabeça
o que tens na tua

de forma que tenho toda a razão em estar
preocupado
lixado
torturado
di - la - ce - ra - do
não queiras que eu endoideça
com a troca da minha pela tua cabeça
é bom que tudo assim permaneça
tu com a tua cabeça
eu com a minha cabeça
sim eu com a minha cabeça


Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V. N. Gaia, Corpos Editora, 2003

Foto de Ondina Dominguez: o autor no Bar Dominó (Casino de Espinho),
onde, durante anos, decorreram as sessões da Onda Poética, que coordena.