terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Amolador de facas com pombos

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Hoje o mar está
uma lâmina azul. Os pombos do
Senhor Campos estão a dar a sua habitual volta matutina
de inspecção. Na varanda,

a regar os vasos, atravessa-me de jarra na mão
aquela frase melódica. Cinco notas, aquelas flautas
de madeira! É o nosso amolador de facas

anunciando o seu negócio pelas ruas. Ouvimo-lo
todas as quinzenas e a meio de cada manhã o tempo
pára. Tem mais de sonhador

que de comerciante. Quem lhe der a melhor
faca de cortar pão fica com ela
reduzida a um espeto imprestável na demanda

de conseguir um fio que corte em fatias
um cabelo. Ele é o que de mais perigoso pode ser
um homem, um perfeccionista - como aliás

toda a gente pode ouvir. Quantas
tonalidades poderão junstar-se
numa escala de cinco notas? Contudo ele

nunca se repete. De cada vez desdobra-se
subindo ou descendo, perfeita em si mesma,
queixosamente diferente. Os pombos volteiam

por sobre o brilho da baía, durante segundos
invisíveis quando se juntam em uníssono,
reaparecendo agrupados como um esquadrão

de amadores com dois em pânico
atrás deles. Aquelas notas mágicas. Põem-nos
os pêlos do pescoço

em pé. Tantos
mundos que este homem chora, tantas civilizações
caídas, tantas idades

de ouro denegridas. Outra vez, perfeito! Traz
as lágrimas aos olhos. As pessoas saem a correr
das casas com facas. Tudo

baloiça. A água cria depósito
na minha jarra. A baía estilhaça-se
como uma vidraça. Mas os cristais

são os risos. Lá em baixo
brinca-se, pedindo a restituição
das tesouras-espetos meio afiadas

ao músico frenético
que sorri por entre o suor
"por favor, só mais uma revoluçãozinha".

......................................................................

Os pombos do Senhor Campos juntaram
o seu adejar em direcção a casa. O seu cu-currú
é como um sonho de coisas domésticas

(Lá estão outra vez aquelas cinco notas no bairro ao lado).


Landeg White, Superfícies e Interiores,
Guimarães, Hélio Osvaldo Alves (tradução e edição), 1995

O autor nasceu no sul do País de Gales. Teve várias ocupações em Trinidad, no Malawi, na Serra Leoa e na Zâmbia. Leccionou na Universidade de York, no Reino Unido. Casado com uma moçambicana, viveu em Cascais, onde esteve a preparar uma tradução de Os Lusíadas para a língua inglesa.

Foto:
Amolador de facas in
spyvia.kouaa-blog.com