terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Cabeça


Cabeça, ó minha página sempre outra,
folha de um livro que é todos os livros,
livro em branco aonde escrevo e emendo e onde às vezes
rasuro, rasuro, até provocar ferida. Cabeça,
pequeno mundo desdobrável como um mapa, como um filme, uma fita gravada, pequena cabeça que tantas vezes gostava de enfeitar com penas como um índio,
que tantas vezes sinto coroada de espinhos por dentro,
ferindo, rasgando, inutilizando, doendo e doendo e doendo.
Umas vezes sinto-a como a deve ter sentido Alexandre
com o odor do vento e o perfume do louro; outras,
como um monarca carregando nela o ouro jovem de uma coroa,
e o medo de uma coroa e o peso de uma coroa.
A minha cabeça, uma qualquer cabeça, deve sentir-se assim:
de mármore ou de luz, de palha ou de granito, vazia,
oca, cheia a transbordar de coisas que não sabe, de
coisas que não quer, querendo coisas que não há, sonhando com gente e dias tão reais, acordando o passado,
abrindo écrans para o futuro. Cabeça, ó minha cabeça
pouco minha, mais vossa, mais tua, mais de todas
as coisas. Que falta fizeste a Luís XVI, que falta fazes quando me exalto
e te perco e é como se tivesse mais, muito mais de quarenta mil anos
e não soubesses nada, ou do nada soubesses muito pouco,
um risco, uma cor, um movimento, e uma paisagem
que não soubeste transportar para o futuro. Agarro-me
à cabeça: por que fui eu escrever um texto assim,
porquê, porquê, onde teria eu, meu Deus, onde teria eu
a minha cabeça?

Joaquim Pessoa, Vou-me Embora de Mim,
Lisboa, Hugin Editores, 2000