sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

«Cântico negro»

Cago na juventude e na constestação

e também me cago em Jean-Luc Godard.

Minha alma é um gabinete secreto

e murado à prova de som

e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes

nem uma só gravura de Lichtenstein

ou Warhol. Nas prateleiras

entre livros bafientos e descoloridos

não encontrareis decerto os nomes

de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos

volumes de qualquer filósofo

maldito, vários poetas graves

e solenes, recrutados entre chineses

do período T’ang, isabelinos,

arcaicos, renascentistas, protonotários

– esses abundam. De pop apenas

o saltar da rolha na garrrafa

de verdasco. Porque eu teimo,

recuso e não alinho. Sou só.

Não parcialmente, mas rigorosamente

Só, anomalia desértica em plena leiva.

Não entro na forma, não acerto o passo,

não submeto a dureza agreste do que escrevo

ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.

De alguns. De poucos. De um só se necessário

for. Tenho esperança porém; um dia

compreendereis o significado profundo da minha

originalidade: I am really the Underground.

-

Rui Knopfli, Memória Consentida, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1982


Rui Knopfli nasceu em Moçambique (1932). É autor também de O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1964), Máquina de Areia (1964), Mangas Verdes com Sal (1969), A Ilha de Próspero (1972) e O Escriba Acocorado (1978), entre outros.