sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Posso escrever os versos...


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Posso escrever os versos mais tristes esta noite.


Escrever, por exemplo: «A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe.»


O vento da noite gira no céu e canta.


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a, e por vezes ela também me amou.


Em noites como esta tive-a eu nos meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.


Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi já.


Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.


Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.


Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.


Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, e ela não está comigo.


A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.


Já não a amo, é verdade, mas tanto que eu a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.


De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.


Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.


Porque em noites como esta a tive nos meus braços,
a minha alma não se contenta com havê-la perdido.


Embora esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

-

Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada,

Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007 (tradução de Fernando Assis Pacheco)



Retrato de Vladimir in http://www.unap.cl/imagenes/pintores/