terça-feira, 15 de novembro de 2011

Morta




podes vir chamar-me

com a brisa insinuante de um violino

marcar o meu número à hora de cada capricho

acenar-me com açucenas entre os dentes

escolher pedras de algodão

para me atirares à vidraça

subir todos os gólgotas

para te crucificares nos meus braços

reconstituir todas as minhas pegadas no deserto

reencontrar os istmos das minhas mãos

levar-me ao festival das gaivotas

presumir nos perfumes

e em todos os encantamentos

ler os meus versos

como quem se alimenta de rosaas




agora estás morta e bem morta

e nenhum beijo meu te ressuscitará


dias e noites sem conta

estive emparedado num quadrilátero minúsculo

entre desespero e tédio

entre acrimónia e indiferença

a olhar uma galáxia perdida

à espera que me baleassem as estrelas

que a neve fosse piedosa

que alguém me atirasse o primeiro torrão


não fora esta couraça de desprezo

ou de desprezo pelo teu desprezo

há muito a solidão teria estalado

a tábua do meu peito

e esmagado de vez

este relógio avariado

pela ferrugem da espera


Anthero Monteiro,

Desesperânsia, Porto, Corpos Editora, 2.ª edição, 2009



(Na foto, Anthero Monteiro por Jorge D'além-mar)