quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O pé descalço de Ava Gardner



é
um pesadelo, quando não
é já possível afastá-lo

da memória
embora eu nunca mais tenha ido
ver um filme
com Ava Gardner

depois de uma vez
ter visto como o tecido
se abre

para deixar ver um dedo do pé.
Há coisas piores que os dedos dos pés, eu
sei

mas não há nada que
se possa comparar ao
dedo de Ava Gardner.

Abre-
-se uma cortina e eu
penetro no

sonho louco
de seda da China, plissé, tule
e sandálias

leves arremessadas
para o lado. Ela está descalça!
Mas para onde vai o calor

quando se dissipa?
Que significam os dedos abertos sobre
uma coxa? Quem sofreu o

trágico
acidente, quando ele quis entrar
pela primeira vez e não encontrou a chave que

costumava estar sempre debaixo do tapete, e
quem é aquele que agora jaz
meio nu no corredor

sem sangrar?
Quando saí de vez do cinema
ainda um dedo do pé

mexia.
A memória é um dos lados
o outro, nunca lá chegaremos.

Rolf Dieter Brinkmann,
in Jorge Sousa Braga, António Ferreira e Álvaro Magalhães,
O Bosque Sagrado, Porto, Gota de Água, 1986